Eu estava a ler a crónica de JPP,
de um
saber de experto peito e de uma mente clara e erudita, naturalmente desejosa
de que iguais dons coexistissem na maioria dos cidadãos do seu país, quando a
televisão projectou um debate parlamentar, sobre os efeitos da Covid-19 e as medidas a tomar, em discussão na
Assembleia… Confesso que fiquei indignada. Como é que, tendo ordenado a
quarentena para tudo quanto de humano é susceptível de contágio coronal,
ministério e governo se apressavam a transgredir, escarrapachando
televisivamente a desobediência a uma ordem a todos imposta - salvo aos que são
chamados, por dever de ofício, ou de humanidade, a manterem-se no seu posto,
imprescindível para a sobrevivência da espécie? Uma reunião parlamentar, embora
reduzida, não era imprescindível – há sempre hoje outras possibilidades de
diálogo ou de trabalho a distância. Com tal transgressão dos mandantes, como se
pode impor uma polícia rigorosa a multar transgressões, estas muitas vezes
dependentes de necessidades reais de sobrevivência, quer alimentar quer
psíquica, que uma claustrofobia pode agravar, além de outros problemas de
relacionamentos em espaços domésticos mais ou menos reduzidos? Como pode impor
Pacheco Pereira leituras tranquilas e enriquecedoras - que a falta de silêncio
na quarentena impede – ou o Governo exigir comportamentos de cidadania, sendo
este o primeiro a transgredir na tal cidadania?
Não, a regra não era para António Costa, que desejou continuar no seu trabalho
de exposição, talvez para dar exemplo de eficiência. O exemplo que deu foi o de
que não é possível impor leituras num país onde, manifestamente, o hábito
dessas e o respeito das normas cívicas não passam de balela, como, de resto, se
tem largamente visto. A Justiça que o diga….
Ler e saber ajudam mais a atravessar esta pandemia
Três coisas contam nesta pandemia:
vida, cultura e dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em
particular a última.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA PÚBLICO, 21 de Março de 2020
As
debilidades do nosso país face à crise
da pandemia da covid-19 não se encontram apenas no Sistema Nacional
de Saúde, ou no tecido económico, nem na falta de testes ou de ventiladores. Há uma
mais invisível, que é a falta de preparação de muitos portugueses para poderem
ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente, eficaz para o que se está a
passar. Essa debilidade está a crescer à medida que há uma substituição de uma
cultura de experiência indirecta (que se obtém nos livros, filmes, etc.), na
curiosidade e no saber, por uma ignorância atrevida e agressiva com origem nas
redes sociais. Uma protege-nos mais na crise, a outra agrava os factores de
crise e não nos protege.
Bem
sei do clamor que estas frases, que hoje são classificadas de “elitistas”,
suscitam: “Com que então, os livros, em vez da vida?” Mas qual vida? A dos
dependurados 24 horas no Facebook e noutras redes sociais? Sim, a vida
protege-nos, se transportar consigo experiência, dificuldades, sentido das
proporções, riqueza, enfim, “vida”. E se tiver em acrescento livros,
filmes, músicas, arte e jornais, ainda mais nos protege. Não é remédio
absoluto, mas ajuda.
Há
um outro clamor, mais intelectual: mas
o que é isso da “cultura”? Sim, são
questões complexas e ambíguas, mas, para o caso, basta o senso corrente, mesmo
que seja um lugar-comum. Em tempos de guerra, não se limpam armas e toda a
gente sabe o que é ser “culto”, mesmo que saiba menos o que é ser ignorante. Culto,
interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e não
necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Mas,
resumindo e concluindo, três coisas contam nesta pandemia: vida,
cultura e dinheiro.
Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a última. Mas, pelo
menos na cultura, sempre se pode combater a incultura que cresce perante a
cobardia e a inércia de muitos que acham que esta é a “realidade” dos nossos
tempos e não há nada a fazer. Há e muito. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Quem
lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para
olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o
que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma
noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico,
entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer
minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as
fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam.
Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
E
não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre
as mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como
funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar
experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia,
história, transporta. E na literatura e nos filmes também não
se trata de procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo
de situações que vivemos, como A Peste, de
Camus, ou os contos
de Edgar Allan Poe (em ambos os
casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros,
seja o 1984, de George Orwell,
seja a Montanha
Mágica, de Thomas
Mann (onde o lugar da tuberculose, o
sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar
um exemplo não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa
da mesma maneira que se não o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa
experiência estética, é provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto,
pela actividade cívica, pela opinião. Como em tudo, não é regra
absoluta, mas mais vale ter lido do que ter passado ao largo. Não é remédio
absoluto, mas ajuda.
O problema é que estamos a andar para
trás, e não se pense que isso é assim tão excepcional na história. Os progressistas acham que se anda sempre para a
frente, que a humanidade caminha sempre para o melhor, e o pior é incidental.
Não é assim, claro; há momentos da história em que tensões sociais, epidemias,
guerras, destroem o saber e o modo de vida.
O
problema com a ignorância arrogante dos nossos dias começa logo no bloqueio de
toda a informação e a sua substituição pela desinformação. Os que vivem nas
redes sociais acham que os jornais, os influentes, os políticos lhes sonegam a
verdade, lhes ocultam os factos, numa conspiração vinda do Grupo de Bilderberg,
da Internacional Sionista, do grupo de pedófilos que governa o país, de George
Soros, da Nova Ordem Mundial Maçónica, dos sistemas 5G, de Deus para punir a
homossexualidade e a generalizada dissolução dos costumes, seja lá do que for.
Todos estes exemplos foram tirados das redes sociais. E o que fazem é
disseminar falsas afirmações, teorias conspirativas, boatos e rumores,
pseudociência, acusações caluniosas, ressentimentos e invejas sociais, que, por
sua vez, são consumidas pelos seus semelhantes num eco especular, que, em
tempos de crise, tende a criar um imenso ruído. E a reacção a esse ruído é
frágil, porque muitos dos que se lhe deveriam opor nas instituições e
individualmente têm soçobrado nessa obrigação.
Uma das grandes forças do livro de Edward
Gibbon sobre a queda do império romano é descrever o desprezo pelas ruínas de
muitos habitantes de Roma que, muitos séculos depois, viviam nos restos dos
monumentos imperiais achando que eram empecilhos – os “romanos eram
insensíveis às belezas da arte” – e a humilhação de homens como Petrarca
pela “supina indiferença” com que eles eram tratados. Chegados a esta crise, confinados a casa, com os
restos da ciência, da arte, da literatura, do saber atacados pelos atrevidos
ignorantes, ao menos esta “guerra” tem mais sentido. E ajuda a sobreviver.
Colunista
COMENTÁRIOS:
Riaz Carmali INICIANTE. De facto, nas redes sociais, como o Facebook e outras
do género, abundam vários tipos de informação, que são tomadas como "Verdades
Absolutas", sem sequer serem submetidas a um escrutínio intelectual!!!
As mesmas contêm alguma informação correcta que não nos é fornecido pelo
"mainstream média"! No entanto, as redes sociais fornecem, na sua
maioria, informações falsas!!! Mas para se obter uma alternativa ao mainstream,
já existem bons canais de tv como o RT News, a Al-Jazeerah, France 24, e
outros!! Porém não devemos abandonar o mainstream media!!! Devemos nos reger
pelo que este meio de comunicação nos informa, mas é sempre bom ter uma visão
alternativa!! Tudo isto para estimular a nossa capacidade de pensar de forma
independente e imparcial!! Um bem haja a todos. 23.03.2020
Manuel AR INICIANTE: Pacheco Pereira esqueceu-se que também há alguma
imprensa (felizmente pouca) que coloca nas suas primeiras páginas títulos
alarmistas e, por vezes, pouco pacificadores que parecem ser retirados das
redes sociais. 22.03.2020
Sima Qian INFLUENTE: Totalmente de acordo com este homem de Cultura. É bem
verdade que quem é culto, no sentido clássico do termo ocupa muito mais o tempo
neste confinamento forçado. Como PP não suporto a ignorância atrevida.
22.03.2020
fernando ferreira franco INICIANTE: Que se saiba, a iliteracia sempre foi maioritária em
sociedades dadas à criação de elites cultas. PP deve sabê- lo melhor que
ninguém. Se nessas sociedades e até ao advento do digital as iliteracias eram
mudas, o que as redes sociais trouxeram de novo, foi tão só barulho,
visibilidade e uma identidade própria ao fenómeno. Só que PP andou muito
distraído até aqui e se agora se outorga o dever de combater, qual Don Quixote,
esta praga de ignorantes, tal se deve à literacia e cultura que o move, desde
sempre, a evitar preserva-la de não ser elite. PP não tem emenda, em vez de ver
nesta realidade uma consequência do pouco alcance da literatura que defende, fecha
todas as portas à hipótese de a difundir. Não se instaura uma democracia pela
força, melhor é mostrar a razão pela qual a defendemos. 21.03.2020
Luis_Morgado INICIANTE: Que excelente texto. Pacheco Pereira no seu melhor,
deixa subentendida uma sugestão para aqueles que estão confinados a casa e que
por isso ficam com mais tempo: ler, reler e revisitar os clássicos. 21.03.2020
António Marques EXPERIENTE: Excomungar as 'redes sociais' por nela circularem
fantasias perniciosas, decadentes e criminosas, obrigaria a fazer o mesmo com
os outros veículos culturais que recomenda, onde sempre abundou esse tipo de
fantasias, algumas delas a adquirirem o poder suficiente para hoje serem
sagradas. Não adianta zurzir as 'redes sociais', as pessoas que lá estão são as
mesmas de sempre, a maioria muito mais cultas do que alguma vez houve. E é
importante referir que os que usam as 'redes sociais' para manipular não são os
incultos ou menos cultos, mas pessoas que têm fortes motivações culturais para
o fazer e objectivos culturais bem estruturados. 21.03.2020
GMA I NICIANTE: Denunciar e contrapor não é o mesmo que
"excomungar" ou "zurzir". E, claro, nas chamadas
"redes sociais" coexistem os papa-CMTV e quejandos e os quem têm uma
agenda bem definida. Os primeiros são, em regra, um bando de acéfalos; os
segundos, sim, podem ser perigosos porque alimentam os acéfalos. 21.03.2020
António Marques: Os conteúdos tóxicos que são veiculados pelas
redes sociais têm origem em centros de propaganda subliminar. São tecnicamente
elaborados em todos os detalhes para se tornarem tão virais como o coronavíros.
Não são pessoas comuns quem planta essas mensagens tóxicas e altamente
contaminantes, mas são as pessoas comuns que se deixam manipular. A informação séria,
responsável, como devia ser a dos jornalistas, é o antídoto para essa pandemia
manipuladora das redes sociais. Já para a covid-19 não há antídoto ainda. Temos
mesmo de nos isolar do vírus para partir a cadeia do contágio, mas bem
informados, instruídos, conscientemente ativos saberemos isolar o lixo das
redes sociais sem anular as redes e as suas vantagens. 21.03.2020
GMA INICIANTE: Uma
única palavra, em letras MAIÚSCULAS, ao José Pacheco Pereira: GRATIDÃO!, 21.03.2020
correiaramos INICIANTE: Parabéns Pacheco Pereira. Há que prevenir e resistir à
barbárie potenciada pelas redes sociais. 21.03.2020
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