quarta-feira, 25 de março de 2020

Afinal a regra não era para ele



Eu estava a ler a crónica de JPP, de um saber de experto peito e de uma mente clara e erudita, naturalmente desejosa de que iguais dons coexistissem na maioria dos cidadãos do seu país, quando a televisão projectou um debate parlamentar, sobre os efeitos da Covid-19 e as medidas a tomar, em discussão na Assembleia… Confesso que fiquei indignada. Como é que, tendo ordenado a quarentena para tudo quanto de humano é susceptível de contágio coronal, ministério e governo se apressavam a transgredir, escarrapachando televisivamente a desobediência a uma ordem a todos imposta - salvo aos que são chamados, por dever de ofício, ou de humanidade, a manterem-se no seu posto, imprescindível para a sobrevivência da espécie? Uma reunião parlamentar, embora reduzida, não era imprescindível – há sempre hoje outras possibilidades de diálogo ou de trabalho a distância. Com tal transgressão dos mandantes, como se pode impor uma polícia rigorosa a multar transgressões, estas muitas vezes dependentes de necessidades reais de sobrevivência, quer alimentar quer psíquica, que uma claustrofobia pode agravar, além de outros problemas de relacionamentos em espaços domésticos mais ou menos reduzidos? Como pode impor Pacheco Pereira leituras tranquilas e enriquecedoras - que a falta de silêncio na quarentena impede – ou o Governo exigir comportamentos de cidadania, sendo este o primeiro a transgredir na tal cidadania?
Não, a regra não era para António Costa, que desejou continuar no seu trabalho de exposição, talvez para dar exemplo de eficiência. O exemplo que deu foi o de que não é possível impor leituras num país onde, manifestamente, o hábito dessas e o respeito das normas cívicas não passam de balela, como, de resto, se tem largamente visto. A Justiça que o diga….

Ler e saber ajudam mais a atravessar esta pandemia
Três coisas contam nesta pandemia: vida, cultura e dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a última.
JOSÉ PACHECO PEREIRA  PÚBLICO, 21 de Março de 2020
As debilidades do nosso país face à crise da pandemia da covid-19 não se encontram apenas no Sistema Nacional de Saúde, ou no tecido económico, nem na falta de testes ou de ventiladores. Há uma mais invisível, que é a falta de preparação de muitos portugueses para poderem ter um olhar mais sabedor, ponderado, consciente, eficaz para o que se está a passar. Essa debilidade está a crescer à medida que há uma substituição de uma cultura de experiência indirecta (que se obtém nos livros, filmes, etc.), na curiosidade e no saber, por uma ignorância atrevida e agressiva com origem nas redes sociais. Uma protege-nos mais na crise, a outra agrava os factores de crise e não nos protege.
Bem sei do clamor que estas frases, que hoje são classificadas de “elitistas”, suscitam: “Com que então, os livros, em vez da vida?” Mas qual vida? A dos dependurados 24 horas no Facebook e noutras redes sociais? Sim, a vida protege-nos, se transportar consigo experiência, dificuldades, sentido das proporções, riqueza, enfim, “vida”. E se tiver em acrescento livros, filmes, músicas, arte e jornais, ainda mais nos protege. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Há um outro clamor, mais intelectual: mas o que é isso da “cultura”? Sim, são questões complexas e ambíguas, mas, para o caso, basta o senso corrente, mesmo que seja um lugar-comum. Em tempos de guerra, não se limpam armas e toda a gente sabe o que é ser “culto”, mesmo que saiba menos o que é ser ignorante. Culto, interessado pelo mundo, curioso, atento, respeitador do saber alheio, e não necessariamente apenas do saber académico. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Mas, resumindo e concluindo, três coisas contam nesta pandemia: vida, cultura e dinheiro. Infelizmente, estão todas muito mal distribuídas, em particular a última. Mas, pelo menos na cultura, sempre se pode combater a incultura que cresce perante a cobardia e a inércia de muitos que acham que esta é a “realidade” dos nossos tempos e não há nada a fazer. Há e muito. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
Quem lê, seja por obrigação, por interesse ou por gosto, está mais preparado para olhar para a pandemia, aprendendo sobre ela mais e melhor. Por exemplo, saber o que é um crescimento exponencial, perceber os gráficos, ler um mapa, ter uma noção sobre os comportamentos humanos em situação de tensão, travar o pânico, entender as informações que recebe, saber distinguir o trigo do joio, conhecer minimamente os mecanismos sensacionalistas da comunicação social e deixar as fábricas de conspiração, intriga e falsidades nos esgotos sociais onde pululam. Como agora se diz, literacias. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
E não se trata apenas de conhecimentos científicos sobre as epidemias, sobre as mutações, sobre os mecanismos de contágio, sobre o que é um vírus e como funciona, trata-se de muito mais. Trata-se daquilo em que ler é único, importar experiência indirecta, viver em si o que o mundo dos livros, ficção, poesia, história, transporta. E na literatura e nos filmes também não se trata de procurar apenas ficções que sejam directamente associadas ao tipo de situações que vivemos, como A Peste, de Camus, ou os contos de Edgar Allan Poe (em ambos os casos, livros que têm tido uma grande procura nestes dias), mas muitos outros, seja o 1984, de George Orwell, seja a Montanha Mágica, de Thomas Mann (onde o lugar da tuberculose, o sanatório, funciona como um microcosmos), sejam as memórias e os contos de Tchekov médico, seja, em bom rigor, tudo. A tese é, para usar um exemplo não-pandémico: quem leu Cesário Verde não vê Lisboa da mesma maneira que se não o tivesse lido. E, por muito vaga que seja essa experiência estética, é provável que defenda melhor a sua cidade pelo voto, pela actividade cívica, pela opinião. Como em tudo, não é regra absoluta, mas mais vale ter lido do que ter passado ao largo. Não é remédio absoluto, mas ajuda.
O problema é que estamos a andar para trás, e não se pense que isso é assim tão excepcional na história. Os progressistas acham que se anda sempre para a frente, que a humanidade caminha sempre para o melhor, e o pior é incidental. Não é assim, claro; há momentos da história em que tensões sociais, epidemias, guerras, destroem o saber e o modo de vida.
O problema com a ignorância arrogante dos nossos dias começa logo no bloqueio de toda a informação e a sua substituição pela desinformação. Os que vivem nas redes sociais acham que os jornais, os influentes, os políticos lhes sonegam a verdade, lhes ocultam os factos, numa conspiração vinda do Grupo de Bilderberg, da Internacional Sionista, do grupo de pedófilos que governa o país, de George Soros, da Nova Ordem Mundial Maçónica, dos sistemas 5G, de Deus para punir a homossexualidade e a generalizada dissolução dos costumes, seja lá do que for. Todos estes exemplos foram tirados das redes sociais. E o que fazem é disseminar falsas afirmações, teorias conspirativas, boatos e rumores, pseudociência, acusações caluniosas, ressentimentos e invejas sociais, que, por sua vez, são consumidas pelos seus semelhantes num eco especular, que, em tempos de crise, tende a criar um imenso ruído. E a reacção a esse ruído é frágil, porque muitos dos que se lhe deveriam opor nas instituições e individualmente têm soçobrado nessa obrigação.
Uma das grandes forças do livro de Edward Gibbon sobre a queda do império romano é descrever o desprezo pelas ruínas de muitos habitantes de Roma que, muitos séculos depois, viviam nos restos dos monumentos imperiais achando que eram empecilhos – os “romanos eram insensíveis às belezas da arte” – e a humilhação de homens como Petrarca pela “supina indiferença” com que eles eram tratados. Chegados a esta crise, confinados a casa, com os restos da ciência, da arte, da literatura, do saber atacados pelos atrevidos ignorantes, ao menos esta “guerra” tem mais sentido. E ajuda a sobreviver.
Colunista

COMENTÁRIOS:
Riaz Carmali INICIANTE. De facto, nas redes sociais, como o Facebook e outras do género, abundam vários tipos de informação, que são tomadas como "Verdades Absolutas", sem sequer serem submetidas a um escrutínio intelectual!!! As mesmas contêm alguma informação correcta que não nos é fornecido pelo "mainstream média"! No entanto, as redes sociais fornecem, na sua maioria, informações falsas!!! Mas para se obter uma alternativa ao mainstream, já existem bons canais de tv como o RT News, a Al-Jazeerah, France 24, e outros!! Porém não devemos abandonar o mainstream media!!! Devemos nos reger pelo que este meio de comunicação nos informa, mas é sempre bom ter uma visão alternativa!! Tudo isto para estimular a nossa capacidade de pensar de forma independente e imparcial!! Um bem haja a todos. 23.03.2020
Manuel AR INICIANTE: Pacheco Pereira esqueceu-se que também há alguma imprensa (felizmente pouca) que coloca nas suas primeiras páginas títulos alarmistas e, por vezes, pouco pacificadores que parecem ser retirados das redes sociais. 22.03.2020
Sima Qian INFLUENTE: Totalmente de acordo com este homem de Cultura. É bem verdade que quem é culto, no sentido clássico do termo ocupa muito mais o tempo neste confinamento forçado. Como PP não suporto a ignorância atrevida. 22.03.2020
fernando ferreira franco INICIANTE: Que se saiba, a iliteracia sempre foi maioritária em sociedades dadas à criação de elites cultas. PP deve sabê- lo melhor que ninguém. Se nessas sociedades e até ao advento do digital as iliteracias eram mudas, o que as redes sociais trouxeram de novo, foi tão só barulho, visibilidade e uma identidade própria ao fenómeno. Só que PP andou muito distraído até aqui e se agora se outorga o dever de combater, qual Don Quixote, esta praga de ignorantes, tal se deve à literacia e cultura que o move, desde sempre, a evitar preserva-la de não ser elite. PP não tem emenda, em vez de ver nesta realidade uma consequência do pouco alcance da literatura que defende, fecha todas as portas à hipótese de a difundir. Não se instaura uma democracia pela força, melhor é mostrar a razão pela qual a defendemos. 21.03.2020
Luis_Morgado INICIANTE: Que excelente texto. Pacheco Pereira no seu melhor, deixa subentendida uma sugestão para aqueles que estão confinados a casa e que por isso ficam com mais tempo: ler, reler e revisitar os clássicos. 21.03.2020
António Marques EXPERIENTE: Excomungar as 'redes sociais' por nela circularem fantasias perniciosas, decadentes e criminosas, obrigaria a fazer o mesmo com os outros veículos culturais que recomenda, onde sempre abundou esse tipo de fantasias, algumas delas a adquirirem o poder suficiente para hoje serem sagradas. Não adianta zurzir as 'redes sociais', as pessoas que lá estão são as mesmas de sempre, a maioria muito mais cultas do que alguma vez houve. E é importante referir que os que usam as 'redes sociais' para manipular não são os incultos ou menos cultos, mas pessoas que têm fortes motivações culturais para o fazer e objectivos culturais bem estruturados. 21.03.2020
GMA I NICIANTE: Denunciar e contrapor não é o mesmo que "excomungar" ou "zurzir". E, claro, nas chamadas "redes sociais" coexistem os papa-CMTV e quejandos e os quem têm uma agenda bem definida. Os primeiros são, em regra, um bando de acéfalos; os segundos, sim, podem ser perigosos porque alimentam os acéfalos. 21.03.2020
António Marques:  Os conteúdos tóxicos que são veiculados pelas redes sociais têm origem em centros de propaganda subliminar. São tecnicamente elaborados em todos os detalhes para se tornarem tão virais como o coronavíros. Não são pessoas comuns quem planta essas mensagens tóxicas e altamente contaminantes, mas são as pessoas comuns que se deixam manipular. A informação séria, responsável, como devia ser a dos jornalistas, é o antídoto para essa pandemia manipuladora das redes sociais. Já para a covid-19 não há antídoto ainda. Temos mesmo de nos isolar do vírus para partir a cadeia do contágio, mas bem informados, instruídos, conscientemente ativos saberemos isolar o lixo das redes sociais sem anular as redes e as suas vantagens. 21.03.2020
GMA INICIANTE: Uma única palavra, em letras MAIÚSCULAS, ao José Pacheco Pereira: GRATIDÃO!, 21.03.2020
correiaramos INICIANTE: Parabéns Pacheco Pereira. Há que prevenir e resistir à barbárie potenciada pelas redes sociais. 21.03.2020


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