O de Alberto
Gonçalves.
Salve-se quem puder: um
glossário da peste
Conceito banido na prática e nas
conversas. Demonstrar preocupação pela desgraça subsequente ao vírus significa
colocar o dinheiro acima das pessoas, as quais, como se sabe, se alimentam de “likes”.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 28 mar 2020
Abril. Sempre. Após suspensão das
comemorações do 10 de Junho, os nossos amados líderes querem festejar o 25 de Abril, que da última vez que
vi era anterior no calendário.
Provavelmente com razão, acreditam que o vírus não atinge relíquias
revolucionárias com cravos na lapela. Isto é gente de categoria.
Ânimo. Nos
primeiros dias de clausura, o povo foi pródigo em graçolas alusivas.
Recentemente, noto que as graçolas tendem a desaparecer em prol de um de dois
estados de espírito: o “vai correr tudo bem” e
o “vamos morrer todos”. Ambos são
enganadores. Vai correr tudo mal e, infelizmente, 99,97% de nós estaremos cá
para desfrutar.
Bufos. Em
Setúbal, a autarquia apela à denúncia dos selvagens que passeiam. Quanto tempo
nos separa da evolução civilizacional de uma Espanha, onde se recebem velhos
transviados à pedrada?
China. Descontados
os factos de o vírus ter nascido nas pocilgas deles, de terem escondido
enquanto possível a sua disseminação, de terem eliminado jornalistas e médicos
que alertaram para o perigo e de venderem testes avariados, a China tem
prestado ao mundo um auxílio inestimável contra este flagelo.
Cobardia. Incontáveis
artistas apanham as pessoas acossadas em casa e atiram-lhes com concertos
vagamente musicais através da internet. Chamam aos concertos gratuitos, mas os
custos, em matéria de sofrimento, são imensos.
Costa. De
mentira em mentira (o homem sofre de uma incapacidade talvez física de dizer a
verdade – mal haja médicos disponíveis, devia ver isso), o primeiro-ministro
conseguiu uma proeza: ser enxovalhado pelos bastonários das três “ordens” da
saúde e beatificado pela ordem hegemónica dos comentadores, a dos Submissos.
Economia. Conceito
banido na prática e nas conversas. Demonstrar preocupação pela desgraça
subsequente ao vírus significa colocar o dinheiro acima das pessoas, as quais,
como se sabe, se alimentam de “likes”.
Estatísticas. O prazer que muitos
experimentam ao ver a subida de infectados nos EUA não contempla a subida de
mortos em Espanha, putativa recordista nesta modalidade “viral”. É natural: a
América tem o sr. Trump, um pantomineiro rude que
tinha tudo para correr mal; a Espanha tem uma trupe de parasitas “identitários”
que faz, jovialmente, as vezes de governo. Tinha tudo para correr bem.
Europa. Estaria óptima, não fosse por uns escroques que, só
porque produzem e poupam, hesitam em patrocinar as nações valentes que não
fazem nem uma coisa nem outra. Mas depois de o dr. Costa lhes chamar
“repugnantes” e a dra. Ana Gomes “pulhas”, o consenso parece provável.
Exportações. Assim de repente, lembrei-me da ministra da
Agricultura, que garantiu que o conforme o previsto?
Jornalismo. O sr. Trump quer que se continue a trabalhar? É um
doido perigoso e uma ameaça para a humanidade. Os suecos obrigam a que se continue
a trabalhar? Trata-se de uma “maneira racional” de lidar com o vírus. De resto,
o “estilo” de boa parte do nosso jornalismo revela-se quando, ao contrário do
que faz com os EUA, o Brasil e o Reino Unido, comenta Itália (“a tragédia
italiana”) e Espanha (“a tragédia espanhola”). Nestes casos, tudo decorre do
acaso (e não, por exemplo, das centenas de manifestações convocadas pelas
lombrigas do Podemos no recente Dia da Mulher). Nos casos acima, tudo decorre
dos instintos malignos dos respectivos líderes. Portugal? Boa parte do nosso
jornalismo não perde tempo com Portugal, salvo para nos declarar agradecidos
aos senhores que abençoadamente nos guiam – e repreender os dissidentes, claro.
Medina. Um
sujeito da câmara lisboeta. “Deixou-se” fotografar a entregar botijas de gás do
tipo “pluma”. Como precisou de ajuda, mostrou que nem para isso serve.
Ministra. A
da Saúde. Desapareceu, que eu saiba em parte incerta. Faz falta.
Orquídeas. Em situações de crise,
sobressaem os mais audazes. E os mais embaraçosos. Pelo menos dois jornais
tentaram a hagiografia da senhora da DGS (com um deles a notar que a senhora
gosta de orquídeas). Fizeram bem. Não fora a sugestão inicial de que o vírus dificilmente chegaria cá, a oposição ao fecho das
escolas, a falcatrua em volta da utilidade das máscaras, a ordem para deixar as
fronteiras ao Deus dará e os números aldrabados e desconexos que divulga
diariamente, a dra. Graça Freitas parece-me a pessoa certa no lugar certo.
Pão. Uma
empresa, a Padaria Portuguesa, queixou-se ao governo de que arriscava falir por
falta de liquidez
para pagar salários. A esquerda, que adora
falências e despedimentos, entrou em êxtase e
desatou a gozar com os privados que pedem dinheiro ao Estado. Não lhes ocorre (ocorre,
sim) que o Estado só exista porque começou por pedir, com péssimos modos,
dinheiro aos privados – com os fantásticos
resultados em curso.
Presidência. Depois de um período em que
decidiu suspender o mandato para lavar roupa e passá-la a ferro, o prof.
Marcelo regressou ao comentário televisivo. Tem comentado com propriedade os
avanços científicos, tarefa que interrompe a cada fôlego para jurar que ninguém
nos está a mentir. Numa ou duas ocasiões, não resistiu a dizer que a resposta
nacional ao vírus é um caso de estudo no mundo. Caso de estudo seria ele, se
o mundo sequer o conhecesse. Entretanto, os portugueses dividem-se em três
grupos: os que acham que o prof. Marcelo não está bem; os que acham que
nunca esteve; os que o vão reeleger e também não estão melhores.
Sondagens. De acordo com sondagens, 75% dos portugueses confiam
nas “autoridades” para lidar com o coronavírus. Isto prova que os danos na
saúde mental de tantos cidadãos não começaram com o “isolamento social” [sic].
Testes. Os
génios da DGS descobriram que quanto mais exames se fizessem, mais infectados apareceriam
nos números oficiais. Depois de muito matutar, os génios da DGS descobriram que quanto
menos exames se fizessem, menos infectados apareceriam nos números oficiais.
Vantagens. Cada um congratula-se com o
que pode. A esquerda celebra o potencial fim do capitalismo. Eu consolo-me
com o fim de manifestações, passeatas, vigílias, arruadas, plenários,
acampamentos de Verão, acampamentos de Inverno, protestos, festivais e genérico
chinfrim. Ou seja, com o fim da esquerda, de futuro condenada a abominar o
capital por iPhone e Mac.
COMENTÁRIOS:
José Dias: Integralmente
de acordo!
Afonso Aires: Brilhante!
Jorge Maria Soares Lopes de Carvalho: Estive
à espera do texto não conseguia dormir. Valeu a pena, foi a única coisa que me
fez rir durante esta semana. Como tenho por profissão activa a medicina daí a
minha grande dificuldade hilariante. Obrigado.
Ping PongYang: Atão ? O
Doutor Alberto hoje já não tem gracinhas com morcegos como na semana passada? E
logo agora que já passou a altura das grandes almoçaradas de Caldeirada de
Morcego... Será que na fábrica de conservas Imperial também passava latas de Morcego
de Escabeche? Dona Noémia que tudo sabe, esclareça por favor!
Maria L Gingeira: Ler o que
escreve, com tanta objectividade e pertinência, de forma tão brilhante é um conforto
nestes dias, tão fechados e ao mesmo tempo tão invadidos e agredidos.
Quorthon: Repugnante.
Acertou em tudo.
Pedro Silva: Absolutamente
brilhante e de uma lucidez cortante. Obrigado!
José Alves: Análise
muito lúcida quase 100% certa. Cumprimentos.
MC Santos: Brilhante o
comentário.
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