Mais uma excelente crónica de José
Pacheco Pereira sobre a actualidade desta nossa novela, lembrando-me
um gracioso livro, presente de Natal, que ando a ler no prazer do requinte quer
da sua escrita quer da intriga e perícia caracterizadora das personagens da
primeira novela – A arte de morrer longe - em redor de um
quelónio e de um jovem casal desavindo e resolvendo o seu conflito bem à nossa
maneira, nervosa, grotesca nas pequenas perfídias ou situações de dor e humilhação
recíprocas, que trazem sempre as separações entre os casais, e, afinal, de happy end simpático, humanos que
eram, no dizer de Bárbara protagonista, a justificar a cedência momentânea – em
previsão de continuidade - aos doces
ardores de uma reconciliação ansiada, mascarada embora de pueril zanga, entre
ambos, mas para mal da pobre tartaruga, objecto de parca estima no lar de que haviam
resolvido desfazer-se, despejando-a nas águas dum lago, para posterior conforto
gástrico de um milhafre atento.
“Cronovelando”, o engraçado título do
livro de novelas de Mário de Carvalho que ando a ler, bem se poderia
aplicar também a esta crónica de José Pacheco
Pereira sobre um país encalhado, tentando
livrar-se da sua “tartaruga”, em episódios e obstáculos de diversa índole, que
ele excelentemente analisa, em educada ironia, sem lhe descobrir, todavia, o
desenlace, talvez por desconhecer ainda o livro de novelas de Mário de Carvalho
e o triste fim do quelónio. Mas as descobertas de água e de dióxido de carbono
em Marte, e as previsões de ocupação humana por lá, talvez lhe sugiram que, à
falta do “Encoberto”, ou de um Cristo salvador no nosso “Ourique”, haverá
sempre a possibilidade de nos transferirmos para Marte, ainda que levemos a dívida
atrás, num povoamento à nossa maneira. Pelo menos, iremos morrer longe, como o
pobre quelónio, que os milhafres apetecem .
OPINIÃO
Um país encalhado
Não é por acaso que usei várias vezes neste artigo palavras como
“usura”, “desgaste”, “cansaço”. Trata-se em todos os casos da velha regra de
que, nada mudando, o “tempo come as coisas”, tempus edax rerum.
José Pacheco Pereira
Público, 30 de Dezembro de 2017
Poupo-vos os balanços do
fim do ano. Um ano é uma convenção e quando termina significa que há preços
(muitos) que vão aumentar e alguns impostos (poucos) que vão descer. Espera-se.
As pessoas vêm das festas e isso embota a consciência, o que certamente ajuda.
Depois volta a rotina.
A comunicação social
torna-se absolutamente aborrecida e repete todos os anos as mesmas reportagens.
Gostava de saber o que é que aconteceria se houvesse uma estação de televisão
em que nada tivesse que ver com o Natal, nem filmes infantis, nem reportagens
sobre as consoadas nos hotéis, nem competições de árvores de Natal, nem
corridas de Pais Natal, nem multidões nas compras, nem voos cheios e esperas
nos aeroportos, nem as greves sazonais. Nem nada. Sem um átomo de “espírito
natalício”. Infelizmente ninguém o vai fazer, pelo que estamos condenados a ter
tudo igual. Na verdade, não é nada de diferente do que acontece todo ano, só
que aqui nota-se mais.
Novidades em 2017?
Houve algumas, mas só duas é que podem ser importantes para 2018. Uma foi a
crise dos incêndios, que afectou e muito o Governo, e a outra é o contínuo
“cumprimento das regras europeias” — saída do défice excessivo — Centeno no
Eurogrupo, três aspectos da mesma coisa: o Governo
socialista-comunista-bloquista vai governar com o mesmo modelo dos governos
da troika, moderado pela margem de manobra de uma melhor economia, mas
igualmente castrador.
No PSD, um demónio
vingador condenou tudo a continuar quase na mesma. Rio não é igual a Lopes, nem
em carácter, nem em competência, nem em seriedade e responsabilidade, é melhor,
mas ambos resolveram fazer uma campanha péssima de continuidade e de medo de
tomar posições, numa altura em que mais do que nunca o PSD precisava de
rupturas. Tornam-se assim um factor de conservadorismo, de bloqueio do
debate político, logo um impeditivo à abertura e à vitalidade do partido.
Colocar Passos Coelho numa redoma não diminui o poder dos seus actores menores
que conduziram um processo sinistro de mediocratização do PSD, e cuja principal
preocupação é a sua carreira. Ainda recentemente um deles fez uma exibição
televisiva de absoluta ignorância sobre o que estava a dizer e não é excepção
nesse abaixamento de bitola de qualidade mínima. Apostaram quase todos em
Lopes, mas como a sua legitimação e poder partidário vinha de Passos, deixando
os anos do “ajustamento” intactos, ou vão fazer a transumância, caso Rio ganhe,
ou estão em condições para lhe fazer a vida negra, como Passos fez a Manuela
Ferreira Leite. Por aí, infelizmente não vai haver a força necessária para
virar situação de decadênccia do partido.
Por isso, em 2018, digam
o que disserem as sondagens, o Governo está mais fragilizado, o PSD idem, e o
país está condenado a uma política de estagnação para a qual parece não haver
forças endógenas que alterem o rumo. Daí que por muito que a situação pareça de
estabilidade ela é inerentemente instável. A única efectiva criação na política
portuguesa dos últimos anos, a aliança PS-PCP-BE, está por isso condenada a
traduzir essa instabilidade de fundo, e, a continuarem as coisas como estão,
não vai acabar bem nas eleições de 2019. O excesso de tacticismo que domina a
política portuguesa faz com que todos os membros da aliança estejam a fazer
navegação de cabotagem e a ver se ganham alguma coisa pelo meio, sem qualquer
plano consistente para o futuro. O PS pode esperar por ter uma maioria
absoluta, o que até agora, mesmo no contexto mais favorável antes dos
incêndios, não estava adquirido. Penso que Costa, que já aprendeu com os erros
da campanha de 2015, é mais prudente e deseja uma forma qualquer de acordo
eleitoral prévio, mas no PS há muita gente a desejar alijar o PCP e o BE, ou a
negociar com eles na base de uma posição de força. Saliente-se que uma das
razões por que foi possível o acordo de governo PS-PCP-BE foi o facto de o PS
não ter condições para negociar a partir de uma situação de força.
O BE é pessimamente
dirigido no contexto do acordo, porque pensa que a dimensão tribunícia pode
continuar na mesma num partido que partilha o poder político, como de
facto partilha, reivindicando os louros mas recusando as responsabilidades.
E o PCP está preso num enorme conservadorismo de linguagem, métodos e acção
e já começou a perceber que, a não haver mudanças sérias, está condenado a
perder posições em cada eleição. Não é a aliança com o PS e o BE que está a
erodir o eleitorado do PCP, é o autismo da sua linguagem que nem sequer
vagamente comunista é. Veja-se o seu último cartaz que diz “salários — emprego
— produção — soberania”. E depois? Há um enorme cansaço no PCP, e isso é um dos
factores de crise da “geringonça”.
O PS permitiu também um
processo de usura, ao aceitar haver algum mérito em questões casuísticas e
anedóticas, mas mediáticas, que a oposição usa bem. A questão é que à falta de
questões de fundo e com uma comunicação social muito limitada ao “caso” da
semana, explorado ad nauseam, seja ou não
importante, o Governo desgasta-se ao actuar ao ritmo dos jornais e televisões,
ou, ainda pior, das chamadas “redes sociais”. A oposição ao Governo
socialista, liderada pelo CDS, afina pelo mesmo estilo casuístico, com um
método de actuação pobre, simples, mas que o PS tem permitido ser eficaz ao
morder o isco todos os dias. O CDS cria ou explora todos os casos sem excepção,
sempre com o mesmo método: o Governo diz que vai dar 20, o CDS reclama 50; o
Governo diz que o prazo é seis meses, eles reivindicam de imediato três, ou
“já”; o Governo diz que vai dinheiro para isto, o CDS diz que o dinheiro deve
ser dado àquilo, ou deve ser mais, ou deve ser menos. Muito barulho, mas pouca
substância, com um PSD acéfalo atrás.
O Presidente da
República vai ser também um factor suplementar de instabilidade. O Governo vai
olhar para o lado, aquiescer, concordar, dizer que não se importa, com o
contínuo metadiscurso da governação que o Presidente faz. Mas o próprio
desgaste desse discurso vai tentar o Presidente a dar-lhe mais acutilância,
logo em suscitar a atenção, através de recados, inuendos, sugestões ou críticas
veladas. Ocasionalmente fará críticas mais abertas, ou opor-se-á frontalmente,
em particular se se tratar de um tema populista. Os momentos em que mais se
aproximou do Governo já estão no passado, até porque o Presidente encontrou
naquilo a que se chama os “afectos”, que de afectos tem pouco, uma fórmula de
aumentar tanto a sua popularidade que ela lhe serve de poder em matérias em que
constitucionalmente não se devia meter.
O Presidente, que é o
zelador dos efeitos dos incêndios, que é o zelador das “regras europeias” (onde
não tem tido muito que zelar), está a preparar-se para ser o zelador de
tudo aquilo que entende ser “eleitoralista”, o que claramente está longe de ser
uma função presidencial, porque implica opções de conteúdo que são
eminentemente governativas.
Não é por acaso que
usei várias vezes neste artigo palavras como “usura”, “desgaste”, “cansaço”.
Trata-se em todos os casos a velha regra de que, nada mudando, o “tempo come as
coisas”, tempus edax rerum. É por isso que
estamos encalhados, num país que não pode ter as políticas de que precisa, onde
as forças políticas ou são subservientes ao exterior, ou olham apenas para o
seu umbigo, onde todos os dias a qualidade da governação e da oposição é menor,
onde aumenta o ruído em correlação directa com a diminuição da substância. É
mau para os costumes e péssimo para o futuro, mas é o que é.