domingo, 10 de dezembro de 2017

Bagão Félix, um escritor frontal - I


Tenho-o deixado de lado, na floresta de bons cronistas e na premência de artigos que os ventos da história vão fazendo abanar, largando folhagem em breve dispersa e perseguida por outra e outra, no frenesim dos acontecimentos sem tréguas que a irrequietude dos homens transpõe ao tempo.
 E, no entanto, Bagão Félix é um escritor que prezo, e que me faz recuar aos seus comentários clarividentes. São já antigos os dois que seguem, mas a justeza de observação e a qualidade da sua imagística, na natural repulsa pelo espectáculo degradante que refere – o primeiro, sobre os comentadores futebolísticos açambarcando os canais televisivos, escarrando sobre os lorpas que os escutam a imundície da sua desenvoltura em toda a pujança de um à-vontade e de uma má criação ilimitada e sem controle, que a televisão surpreendentemente acata, imune a uma função formativa que deveria ser seu apanágio; o segundo, sobre as coisas do OE e do governo de cedências e de arrogantes ficções de fortaleza, que uma forte hipocrisia conduz, na ânsia de o não perder…

A miséria do nosso futebol
António Bagão Félix
Público, 4 de Novembro de 2014
Sempre me interessei pelo futebol. Sou entusiasticamente adepto de um clube. Vibro com os seus sucessos e padeço com os seus desaires. Um sentimento naturalmente tão autêntico, como não isento. É esta aparente contradição que faz do jogo jogado simultaneamente uma delícia e um risco. Reconheço que nem sempre a racionalidade fica à frente da emoção. Como adepto, evidentemente.
Acontece que a atmosfera em redor do nosso futebol está a atingir tais níveis de inquinamento e poluição que, crescentemente, sinto necessidade de me voltar para dentro e ignorar o que quase sempre me aprazeu.
Chegou-se ao nível zero? Não, antes a um nível abaixo de zero. É como, com alguma indulgência, poderemos qualificar o estado a que chegou o ambiente no panorama futebolístico nacional. Jamais houve uma tal degradação, ainda que paradoxalmente num tempo em que até somos vitoriosos campeões europeus de selecções.
Estamos diante de um ar irrespirável. Tudo vale porque nada parece valer. Como na tourada, há todos as personagens e todas as cortesias. Os peões de brega que, mandatados na penumbra do submundo de ordenantes, fazem a figurinha (travestida de “anjo”) de mestres de graçolas, instigadores de veneno e geradores de ódios. Às vezes, até são pessoas com curricula respeitáveis que, todavia, se deixam envolver por afrodisíacos momentos de efémeros protagonismos. Depois, há os picadores que habitam em certos fora (não todos, diga-se em abono da justiça) e que têm sempre uma lógica fosforeira nos seus momentos de vã glória. Há os cavaleiros que, do alto dos seus animais, usam a táctica do toca e foge, lançando farpas e espalhando sangue e lama em jeito de ventoinha. Há os forcados (alguns até com c cedilhado) que, laboriosamente, tecem teias em troca de favores, prebendas e outras mordomias, sempre com um ar independente a fingir pegar pelos cornos do bicho. Há os toureiros, uns mais exuberantes no manejo da muleta, outros mais silenciosos e escondidos. Por fim, há o inteligente. Que sempre se considera moralmente acima dos outros, que sempre é o único e inimitável, que sempre se proclama peregrino da revolução ética que urge fazer.
Como no Titanic, todos cantam e bailam ao som da música, contribuindo para afundar o que ainda está emerso. Que lhes importa isso? Actuam na aparência de “salvadores da pátria”, quais redentores ungidos pela providência. Nem sequer querem saber que o desastre de uns é o desastre de todos. Falam como detentores de uma verdade que se esfarela no virar de um fim-de-semana seguinte. Agem como predadores sem se aperceberem que se estão a auto-mutilar. Desrespeitam-se uns aos outros com uma frequência tão regular, como institucionalmente letal. Não enxergam que, no dia seguinte, a água que os afunda lhes entra pelos poros da boçalidade e pelos pulmões da imbecilidade. Julgam-se imunes a todas as contingências e isentos de todas as formas respeitáveis de relação. Alimentados freneticamente por alguns modos ínvios de comunicação social, uns são verdadeiros vampiros à busca de sangue e raiva, outros há imperadores da má-criação, da barbárie ética, da vilanagem, da mentira, do boato, do anonimato ou da cobardia.
Os poderes públicos – com a honrosa, ainda que impotente, excepção da FPF – assobiam para o lado, ou prestam parvas vassalagens e distribuem honrarias, ou, ainda, dizem umas pias palavrinhas sem qualquer resultado. Isto já não vai lá assim. Legislem de modo a não beneficiar os infractores, actuem de maneira a não favorecer os incendiários. Todos agradeceremos, mas principalmente os futuros adultos que, hoje, enquanto crianças, só conhecem o lado mau deste entusiástico desporto.


O supermercado orçamental
Público, 7 de Novembro de 2017,
António Bagão Félix

O itinerário orçamental para 2018 revelou, de um modo indisfarçável, a lógica de sustentação de um governo minoritário através de uma maioria parlamentar ad hoc que, sem ter a responsabilidade de governar, é capaz de condicionar o Executivo, senão mesmo de o acorrentar.
O governo não tem uma estratégia minimamente consistente. Navega ao sabor do cardápio da reversão austeritária, procura satisfazer as clientelas eleitorais pensando obsessivamente nas próximas eleições, dança alternadamente com o PCP e o BE em função dos assuntos, manipula as expectativas de um modo ilusório, põe de lado qualquer laivo de reformas de fundo, aliás incompatíveis com o seu tacticismo calculista.
Nunca é responsável por nada que corra mal. Nos últimos tempos, a tragédia dos fogos foi culpa do acaso, Tancos uma historieta, a Legionella num hospital público um acidente inimputável, a  candidatura para a Agência Europeia do Medicamento uma vitória moral. Por sua vez, a “Web Summit” foi um pretexto para ver o poder português em permanente genuflexão bajulante perante uns “rapazes do futuro”. Nem vale a pena falar dessa “panteãominice” em que a lógica de Pilatos passou, como um furacão, pelo Primeiro-ministro e outros responsáveis públicos. Ou da mudança demagógica do Infarmed para consolar o Porto (paixão serôdia e oportunista do governo) e, no fim, aumentar a despesa.
A discussão na especialidade do OE para 2018 é a expressão do carácter errático da política nacional. É o tempo de o PCP e o BE abrirem o supermercado das medidas das suas clientelas e de o grupo parlamentar do PS as acompanhar “assim, assim” num exercício de trapezismo e contorcionismo para fingir que ganhou seja qual for o resultado final. O Governo promete hoje uma coisa em abstracto (usando a linguagem do PM), amanhã diz que, em concreto, não há condições ou que, talvez sim, em pseudo concreto a partir de 2019… Honra seja feita ao ministro das Finanças que é o único que verdadeiramente sente quão nefasta é esta lógica e procura limitar os danos.
O caso dos professores é paradigmático. Independentemente da razão (parcial) que cada uma das partes tem, eis novamente o Estado a pôr e a dispor dos impostos para alimentar as pretensões do seu aparelho. Os sindicatos até terão razão em dizer que tempo de carreira congelado não é o mesmo que tempo de carreira eliminado. Mas são os mesmos sindicatos que sempre se têm oposto a uma avaliação efectiva (e não meramente formal ou procedimental) dos professores. Entretanto, com o ministro-sindicalista ausente, houve apenas horas e horas de negociação e fingimento de acordo, com jogos de palavras entre recomposição, reconstrução e recuperação no “quadro das especificidades desta carreira unicategorial” (mais um palavrão criado).
E já se perfilam outras categorias da Administração com a mesma pretensão dos professores. É no que dá o estilo ambíguo, pouco frontal e pretensamente “abrangente” do governo.
Há, ainda, dois pontos que merecem ser referidos. Um tem a ver com a obsessiva lógica dos sindicatos afectos à função pública sempre a invocar injustiças face à actividade privada, excepto quando não lhes convém (foi o caso das 35 horas de trabalho semanal). Neste caso, porque é que o dinheiro dos impostos deve ir inteirinho para os descongelamentos públicos e não também, directa ou indirectamente, ser afecto aos trabalhadores não públicos? É que foi nestes que o desemprego atingiu valores socialmente insuportáveis e houve congelamentos de toda a espécie, sem possibilidade de recuperação do tempo perdido.
Por fim e sempre, a lógica sindical só olha para os activos. Por que razão não se fala dos professores aposentados no período de congelamento das suas carreiras que viram inexoravelmente a sua pensão ficar mais reduzida? Será porque não podem fazer greves?



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