Sim. Maria João Avillez não
recua no seu posicionamento reaccionário contra um status de valorização
absurda do ego governativo que tudo leva de escantilhão no seu folclore
forjador de mitos, coisa a que de há muito, afinal, nos habituáramos, na nossa fragilidade
espiritual de competitividade essencialmente clubística, salientada em águias,
leões ou dragões, para só citar os principais. Um folclore que, deslizando num
sibilino discurso ora de ataque aos executores governamentais precedentes, ora
de auto elevação na execução de medidas atamancadas em termos astuciosos de
autopromoção, pela sua aparência de êxito, mas escondendo os sinuosos remendos de composição enganadora, vai
mergulhando o povo numa quase idolatria de adesão eleitoralista previsível. (O
que é um facto, é que António Costa está livre das visitas frequentes dos lúgubres
visitantes da Troika, a que o governo anterior estava sujeito, beneficiando,
pois, de uma situação menos aperreada, como ele deveria reconhecer, pese embora
a sua sujeição ao grupo dançarino que o ajudou a usurpar o seu governo, e que
ele vai igualmente enganando, conforme as necessidades de momento).
Mas Maria João Avillez,
naturalmente, não se deixa enganar, que não pertence ao rebanho domado por um
big brother inquietante e sem escrúpulos, e o seu texto de altivez e elegância
descritiva, explorando de início, sem receio de prováveis ironias, o cumprimento
tradicional dos preceitos católicos, na quadra natalícia, pelo seu clã seguidor
de regras, mais uma vez define o mundo inquietante que nos rodeia, centrando-se,
como motivo preocupante acima de todos, no tal novo código de conduta tolhedor
da liberdade real, desmentindo os preceitos de libertação igualitária que
presidiram à revolução socialista anterior.
E transcrevo, como remate, a sua
diatribe tão brilhantemente expressa: «Falo de uma sulfúrica espécie de
mal, insidioso veio que tem vindo a corroer valores, razões morais,
comportamentos, convicções, de uso e prática nesse ocidental lugar de onde
vimos e somos (mas parece que agora já não nos deixam ser), substituídos por um
Novo Código de Conduta, baseado em desqualificados mandamentos. E como tal aí
esta hoje uma atenta, vigilante e policial guarda pretoriana, o Novo Código
numa mão, na outra, denúncias, nomes e medidas censórias de aplicação imediata.
Excesso e perseguição sobre fundo de impostura.»
Novo código
de conduta
OBSERVADOR, 26/12/2017
Escasseiam-me os
instrumentos para navegar na irracionalidade do que aí está, nos mandamentos
politicamente correctos do “como” pensar, na perseguição/denúncia de tudo o que
não é conforme ao figurino.
1. Era quase meia noite e chovia. Íamos a entrar no
Santuário do Senhor da Pedra, para a missa do Galo. Natal fora de portas, as
muralhas do Castelo de Óbidos ali mesmo, debruadas de mil fios brilhantes,
cintilando na noite fria, o eco do coro ensaiando dentro da igreja, gente
chegando das redondezas. Subitamente apercebi-me de como era verdadeira, real,
concretíssima, aquela harmonia entre todos os que ali estávamos, uma terna
cumplicidade, uma mudez quase comovida, sentimento de pertença na convicção
comprometida com o recado do Presépio.
Mais tarde, os ciprestes, a
palmeira, as camélias e esse inconfundível silêncio do campo, deram-nos as boas
vindas quando as várias gerações da nossa tribo aportaram ao calor aconchegante
da casa, para a consoada.
E foi então que olhando
aquele milagroso pequeno-grande quadro familiar, por uns brevíssimos ilusórios
momentos, o mundo e a vida pareceram-me mais que perfeitos.
2. Alguma gente que estimo reteve o adjectivo com
que na passada semana abordei o Natal de 2017: “inquieto”. E não é? O breve
apontamento natalício que descrevi, em nada desmente a consciência da inquietação
porque as palavras acima não são desligáveis da sua efémera natureza: um
momento de luz, que iria esmorecendo, apagado pelo estado das coisas.
Olhe-se à roda, o
difícil é captar qual a mais inquietante, qual a que nos capturará
decisivamente, a que nos extinguirá como produtos de uma civilização que ao
consenti-las tão abulicamente se desmembra, fragiliza e nos fragiliza a nós.
Não falo só da guerra (também falo); de lideranças políticas loucas ou
miseráveis; da desordem internacional, das ameaças, do medo, pão nosso
quotidiano. Nem sequer da galopante desigualdade, cada vez mais voraz.
Falo de uma sulfúrica
espécie de mal, insidioso veio que tem vindo a corroer valores, razões morais,
comportamentos, convicções, de uso e prática nesse ocidental lugar de onde
vimos e somos (mas parece que agora já não nos deixam ser), substituídos por um
Novo Código de Conduta, baseado em desqualificados mandamentos. E como tal aí
esta hoje uma atenta, vigilante e policial guarda pretoriana, o Novo Código
numa mão, na outra, denúncias, nomes e medidas censórias de aplicação imediata.
Excesso e perseguição sobre fundo de impostura. (Sobre isto mesmo, leia-se
aqui no Observador o último
texto de Helena Matos)
Escasseiam-me os
instrumentos de bordo para navegar na irracionalidade a que nos obrigam; para
me formatar segundo esta nova geometria politicamente correcta do “como”
pensar; arrepia-me a voragem da perseguição/queixa a tudo o que não esteja
conforme aos novos usos e costumes. Pelos vistos tão pacificamente aceites e
militantemente praticados pela generalidade (?) das elites intelectuais,
culturais, científicas, do mundo livre.
Veja-se o puro gozo que
conduz as acusações/perseguições relativas ao assédio sexual, que por vezes
quase lembram processos nazis pela implacabilidade com que irrompem, sentenças
de morte sem julgamento. Ou atenda-se ao actual questionamento — imbecil e
inteiramente descontextualizado — de algumas telas ou pinturas, obras de arte
universais cujo traço ou mensagem “colide” com as alíneas do Novo Código para
captar a demencialidade desta cruzada feroz de incalculáveis e maléficas
consequências. Triste sorte.
Dir-se-á que a
civilização ocidental já conheceu pior e não soçobrou, que o valor da liberdade
tem-lhe sido guia e farol e que de tudo tem renascido. É verdade. Sucede que
conheço tais más sortes dos livros de História ou de as ter estudado enquanto
aqui — e a diferença é forte — sou testemunha pessoal. Observadora directa e
inquieta.
Não é bonito o que vejo.
Cada vez olho mais para
nós como um sonâmbulo navio que devagarinho se vai afastando da costa para lado
nenhum.
3. Já uma vez aqui deixei este bocadinho
de poesia em estado quimicamente puro. Escreveu-o há anos e anos um tio com
queda para cantar as palavras. Mas de tão belo, quase prosaico na simplicidade
do seu contar poético, lembrei-me dele outra vez este ano e fui buscá-lo à
gaveta do computador.
Boas Festas:
Quando o Menino Jesus
fez cinco anos
Encheram-lhe a caminha de presentes.
Os seus vizinhos e os seus parentes
Vieram muito honrados, muito ufanos,
Presentear Jesus, que lhes sorria…
Chegou primeiro sua avó Sant’Ana,
Com uma gaiola e uma cotovia.
Zacarias, sem falar, pois não podia,
Deu-lhe uma flauta, que Ele fez de cana.
Santa Isabel,
Que costurava quase todo o dia,
Deu-lhe um lindo vestido de burel.
S. João, filho de Zebedeu,
Trouxe-lhe um cordeirinho igual ao seu
E umas romãs, de rubicundos bagos.
E vieram lembranças dos Reis Magos…
(Um ano antes, Jesus teve uma birra
Porque tornaram a mandar-lhe mirra,
Porque voltaram a mandar-lhe incenso,
O que o Menino Jesus achou esquisito…)
E então mandaram tâmaras do Egipto,
De que o Menino Jesus gostava imenso!
Encheram-lhe a caminha de presentes.
Os seus vizinhos e os seus parentes
Vieram muito honrados, muito ufanos,
Presentear Jesus, que lhes sorria…
Chegou primeiro sua avó Sant’Ana,
Com uma gaiola e uma cotovia.
Zacarias, sem falar, pois não podia,
Deu-lhe uma flauta, que Ele fez de cana.
Santa Isabel,
Que costurava quase todo o dia,
Deu-lhe um lindo vestido de burel.
S. João, filho de Zebedeu,
Trouxe-lhe um cordeirinho igual ao seu
E umas romãs, de rubicundos bagos.
E vieram lembranças dos Reis Magos…
(Um ano antes, Jesus teve uma birra
Porque tornaram a mandar-lhe mirra,
Porque voltaram a mandar-lhe incenso,
O que o Menino Jesus achou esquisito…)
E então mandaram tâmaras do Egipto,
De que o Menino Jesus gostava imenso!
Seu Pai, e sua Mãe,
Nossa Senhora,
Tinham feito os seus planos.
E numa caixa de madeira loura
Tinham metido, com o maior desvelo,
O seu presente de anos:
Tinham feito os seus planos.
E numa caixa de madeira loura
Tinham metido, com o maior desvelo,
O seu presente de anos:
Um serrote de dentes
muito finos,
Alicate, martelo,
E uma dúzia de pregos pequeninos.
E quando lhe entregaram o presente,
O Menino Jesus deu pulos de contente!
Alicate, martelo,
E uma dúzia de pregos pequeninos.
E quando lhe entregaram o presente,
O Menino Jesus deu pulos de contente!
A ideia, claro, foi de
S. José,
O melhor carpinteiro em Nazaré.
O melhor carpinteiro em Nazaré.
Ao fim da tarde,
terminada a festa
Do Natal de Jesus,
Quando a Senhora acendia a luz
E S. José dormia a sesta,
Foi acordado por barulho enorme.
“Mas então o Menino ‘inda dorme?
Que está ele a fazer?
Maria vai tu ver…”
Mas a Virgem, com um sorriso brando,
Disse-lhe: “Deixa-o lá…Está trabalhando.
Quer fazer-nos talvez uma surpresa,
A consertar, - quem sabe? - o pé da mesa
Que tu ontem partiste na cozinha…”
Do Natal de Jesus,
Quando a Senhora acendia a luz
E S. José dormia a sesta,
Foi acordado por barulho enorme.
“Mas então o Menino ‘inda dorme?
Que está ele a fazer?
Maria vai tu ver…”
Mas a Virgem, com um sorriso brando,
Disse-lhe: “Deixa-o lá…Está trabalhando.
Quer fazer-nos talvez uma surpresa,
A consertar, - quem sabe? - o pé da mesa
Que tu ontem partiste na cozinha…”
E o Menino Jesus, candeia
acesa,
Martelava com quanta força tinha…
Martelava com quanta força tinha…
Todas as tardes era a
mesma cena: -
S. José dormia a sesta vespertina;
A Virgem Intrigada, mas serena;
E um martelar sem fim na oficina…
S. José dormia a sesta vespertina;
A Virgem Intrigada, mas serena;
E um martelar sem fim na oficina…
Até que um dia… S. José
quis ver.
Disse a Maria: “É tempo de saber
O que o Menino há tantos dias faz…
Francamente, não sei…
Que pode ele fazer, não me dirás,
Com dois ou três sarrafos que eu lhe dei?
Vamos espiar, a ver o que será…
Achas feio espreitar?
Pois vai-te tu deitar,
Que eu levo esta candeia e volto já…”
Disse a Maria: “É tempo de saber
O que o Menino há tantos dias faz…
Francamente, não sei…
Que pode ele fazer, não me dirás,
Com dois ou três sarrafos que eu lhe dei?
Vamos espiar, a ver o que será…
Achas feio espreitar?
Pois vai-te tu deitar,
Que eu levo esta candeia e volto já…”
E assim fez. Pé ante
pé,
Tapando a luz da lâmpada co’a mão,
Afastou-se da Virgem S. José…
Silencioso, tal como um ladrão…
Tapando a luz da lâmpada co’a mão,
Afastou-se da Virgem S. José…
Silencioso, tal como um ladrão…
Da oficina vinha
estranha luz…
Empurrou a porta, mansamente.
Hesitou… Abriu-a, finalmente.
E S. José ficou petrificado,
Os olhos muito abertos, transtornado…
O Menino Jesus
Tinha feito uma cruz!
Empurrou a porta, mansamente.
Hesitou… Abriu-a, finalmente.
E S. José ficou petrificado,
Os olhos muito abertos, transtornado…
O Menino Jesus
Tinha feito uma cruz!
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