É
o último de “O Dia cinzento e outros contos” de Mário Dionísio, 4ª
edição em «livros de bolso Europa-América», presente de Natal, “Entre
cafés e pensamentos”, livro que lera há mais de quarenta anos, aquando de
um trabalho sobre “A Literatura da Resistência”, inserto em “Cravos
Roxos”. Lembro-me de que o distinguira, como superior em escrita, entre os
muitos que contavam proezas de miséria, quer no campo, quer na fábrica, para
exemplificação da injustiça social cometida sobre um povo que uma ditadura
mantinha na indignidade da sua pequenez iletrada, e que se tornara tema
constante de uma corrente literária de monocórdia intervencionista desgastante,
de bipolarização entre os bons e os maus, a fazer ansiar por leituras de um
realismo mais alegre e sadio de espíritos anteriores, entre os quais Eça
figurava como o épico da graça crítica e leve, por vezes feroz, e acordando
igualmente para a consciência da problemática social, que a caricatura
aligeirava, sem o rancor sempre presente, em que os seguidores dos ditames
marxistas se compraziam, contra os exploradores fazedores da desigualdade e da injustiça.
O
livro de Contos de Mário Dionísio, todavia, parecia-me menos mergulhado na
versão do rancor contra os dirigentes sociais e mais dirigido à análise introspectiva,
de um ego sofredor embora, mas não cristalizado sobre a sacrificada aventura
alheia, porque debruçado igualmente sobre si próprio, intelectual atento à
caracterização psicológica.
Tal
é o caso deste “Entre cafés e pensamentos”, história de um jovem pobre,
num dia de chuvinha mole, olhando as casas por onde passava, muros fechados e
recolhidos, à hora da comida, um jovem esfomeado, apertando no bolso a única
moeda que tinha, para o café combinado com os amigos, amigos pertencentes à
burguesia, que teriam, a essa hora, uma voz carinhosa a chamar para a sopa na
mesa – tais o Carlos, o Alfredo, o Eurico, a Mariana, o Júlio, o João – com quem
trocava os seus ideais revolucionários, os da juventude insatisfeita dos tempos
transviados de James Dean e das flores no cabelo do “make love not war”, que,
todavia, condenando os seus familiares ricos, atentos às leituras dos
intelectuais da época, sobre o remédio contra a injustiça social, não
prescindiam do seu conforto e das suas sopas, avessos a compromissos de
partilha aventureira com a miséria alheia, que João experimentava e seguia, na
sua coerência doutrinária, apertando na mão a única moeda, para o café
combinado.
Em
meio dos seus pensamentos e deambulação molhada, a figura bem descrita de uma
ex-namorada, graciosa e falsa – Mariana - puramente exibicionista desses ideais
de fraternidade a que parecera aderir e que o desconcertara na ficção de
leituras que não possuía. E de repente um dos amigos, Júlio, que conhecia as
suas penúrias, aparecendo-lhe como benfeitor, com uma nota que ele recusaria, com
desprezo. Mais tarde, no café combinado com os amigos, que ele pagaria com a
sua moeda, saboreando devagar, o café enganador da sua fome, o aparecimento de
Mariana, com requebros de hesitações a referir o seu próximo casamento com o
mesmo Júlio que lhe oferecera anteriormente a nota, e a descoberta da traição, envolta
no penhor antecipado que tal oferta implicava.
Um
conto breve, bem estruturado, com uma análise caracterológica de elegância
descritiva, como se revela nos passos seguintes:
« … Nem o Carlos, nem o Alfredo, nem o Eurico, nem mesmo a Mariana.
Nenhum deles vira alguma vez as casas do lado de fora. Nenhum deles sentira a
hostilidade dessa muralha. Nenhum deles voara, assim, por cima das árvores e
dos prédios, olhando lá para dentro, como se telhas e paredes tivessem a
transparência do vidro. Nem experimentara esta tristeza de ir percebendo que os
amigos mais próximos estão, na verdade, tão distantes. Mesmo a Mariana. Mesmo o
Júlio, sobretudo o Júlio, com os seus olhos humildes de cão fiel e a sua tendência
para se anichar, por qualquer preço, na vida de cada um, indispensável – insuportável.»
« …Tinha-lhe agradado tanto no princípio, a Mariana… A testa alta, o
nariz quase recto, os olhos transparentes, os dentes muito certos brilhando no
sorriso discreto que, de onde em onde, iluminava a sua expressão habitualmente
séria, inteligente, convicta… Raramente desconhecia uma obra ou um facto de que
se falasse. Dizia que sim com a cabeça ou insinuava, com um simples mover de
lábios, qualquer discordância que não valia a pena discutir na altura.
Os conhecimentos e a experiência de Mariana, aquela capacidade de
julgar e de impor o seu juízo, espontaneamente, quase sem palavras, junta a
tanta beleza e frescura juvenil, deslumbravam-no. Depois viera a história do
baile da escola e a admiração sumira-se. Num grupinho de amigos mais chegados,
que só suportavam o baile por ser um processo cómodo e rendoso de angariar
fundos, ouvira-a dizer sobre um caso passado com dois outros amigos que não
estavam presentes: “Não foi bem assim, eu estava lá…» E isso passara-se – ele tinha
a certeza – num dia em que ela saíra de Lisboa. Logo a seguir, discutia-se um
livro e ouviu-a proferir, com certa sobranceria, um juízo definitivo que calou
toda a gente. E tratava-se de um livro de que ele próprio lhe falara horas
antes, depois de ela confessar que não conhecia o autor. Por acaso,
naturalmente… Toda aquela superioridade que o fascinava se reduzia afinal a uma
habilidade prodigiosa para mentir. Sentira-se logrado, desinteressara-se,
deixara de ver motivo para continuar a opor-se ao cerco sentimental que o Júlio
lhe fazia...»
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