É de José Pacheco Pereira,
sempre um prazer de leitura, pelas coisas que transmite, do seu muito saber.
Neste caso, a incompatibilidade com um presente de pragmatismo imediatista e de
espalhafato (julgo que assente em ambições ultrapassando o comedimento
racional), desinteressado de leituras e conhecimentos que já então faziam os
seus cultores estalar de orgulho e preconceito - (contra os do rebanho de
então, amansado ou indiferente, ou ignorante desses saberes contestatórios, sua
glória) e hoje se mantém na indiferença livresca dos novéis políticos criados à
sombra do proteccionismo angariado na disciplina jotista: O parágrafo final do seu texto, revela bem o
orgulho já angariado nesses tempos de leituras febris contestatárias – as do
seu saudosismo - que possibilitavam actos de pseudocoragem como esse que conta
da oposição a Salazar, e que designa o capitão vigilante do regime por “homúnculo
do canto”: Não é para as pessoas voltarem à lanterna mágica, ou
às televisões de caixa, ou ao Pacman, nem tenho qualquer nostalgia do stencil
ou do verniz corrector, nem da máquina de escrever. Mas já tenho de homens como
o esquecido e frágil Mem Verdial, com a sua gravata à Lavalière, já então tão
fora do tempo, e que levou um paralelepípedo escondido para um comício da
oposição a Salazar, patrulhado por um capitão qualquer que numa mesa podia
interromper qualquer orador. E quando foi interrompido por dizer coisas
subversivas sobre a democracia, perguntou ao homúnculo do canto: “O
senhor representante da autoridade quer que eu ponha uma pedra sobre o
assunto?”. E pegou na pedra e colocou-a em cima dos seus papéis. É
este passado que me faz falta.»
Sim, o desprezo de Pacheco
Pereira pelos «homúnculos de outrora» é o mesmo que o seu desprezo pelos
“homúnculos de agora” - “essa gentinha”, na opinião de muitos
outros ilustres intelectuais de hoje – e prova apenas que o muito saber, que
faz falar de democracia, que era aquilo sobre que escreveram alguns
homens do passado, abridores de novos caminhos para este presente de amor pelos
deserdados (caldeado pelo desamor pelos “herdeiros”), apenas lhes inspira um
orgulho incomensurável pelos valores próprios da sua intelectualidade. Orgulho
racial, de uma raça intelectual superior, nos seus pergaminhos e experiências
livrescas que, ao invés de apelarem para uma modéstia resultante do conceito de
relatividade dos saberes, se entrincheira na sua convicção de que só esse é
válido, apesar do reconhecimento de tanto modernismo tecnológico e científico
transmissor de igual orgulho aos do presente que os descobriram e mesmo aos que
deles usufruem, sem tanta leitura, é certo, mas com outras experiências que tanto bestializam (no exagero do seu
usufruto) como abrem novos caminhos e inteligências, sem dúvida.
OPINIÃO
Mas qual é o mal do passado?
O passado tem má imprensa,
o presente é o melhor que há e o futuro então não se fala, é o período da
felicidade perfeita, tanto mais perfeita quando todos já estaremos mortos.
José Pacheco Pereira
Público, 9 de Dezembro de 2017
No início de um livro de L.
P. Hartley há uma frase que eu cito bastante e vou fazê-lo de novo: “O
passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de forma diferente”. Em inglês é ainda melhor: "The past is a foreign country; they do things differently there".
E cito-a pela obsessão absurda que existe nos dias de hoje na política e
na comunicação social, de achar que “voltar ao passado” é um coisa tenebrosa e
um insulto. Este tipo de frases são o pão nosso de cada dia na competição
eleitoral no PSD, em que cada candidato atira ao outro ou aos seus apoiantes a
acusação de que são o passado. Na verdade, o candidato mais do passado é que o
faz com mais denodo e falta de vergonha, tanto mais que os “jovens” que
apresenta são infinitamente mais velhos do que os “velhos” que eles atacam de
senectude. Presumo que eles acham que têm um DeLorean ao seu dispor, visto que
a probabilidade de entenderem alguma coisa do passado, presente e futuro
dificilmente passa do Back to the Future.
Mas se fosse só nestes
conflitos de menores, passávamos bem. Mas é no debate parlamentar, no
comentário, na moda, e nessa ecologia em que vivemos no tempo presente e que
se chama “comunicação social”. A obsessão pela “novidade” da comunicação
social, é da mesma natureza destes jogos retóricos. Estão sempre a descobrir
génios jovens e prometedores cuja fama não dura um ano, e que em muitos casos
são os amigos deles, ou noutros são os que estão na “moda”, essa tenebrosa
forma de identidade fugaz, cujas raízes no passado são aliás sempre mais
importantes do que as folhas do presente. Resumindo e concluindo: o
passado tem má imprensa, o presente é o melhor que há e o futuro então não se
fala, é o período da felicidade perfeita, tanto mais perfeita quando todos já
estaremos mortos.
Mas ainda me hão-de
explicar o que é que tem de fascinante o presente, e como é que sabem que o
futuro vai ser melhor. Nem o presente é brilhante, o que acontece é que estamos
presos nele, temos que viver nele, e nem ninguém sabe o que vai ser o futuro
porque a essência da história é a surpresa. Pelo contrário, no
passado podemos escolher algum proveito e exemplo, mesmo que saibamos que ele
nunca se repete, e se se repete, como dizia Marx, tem sempre tendência para ser
como comédia. Corrijo aqui o velho Karl, nos nossos dias há uma alta
probabilidade de começar como comédia e acabar como tragédia outra vez. Veja-se
Donald Trump.
O passado tem imensas
virtualidades, exactamente porque nós vivemos no presente e podemos escolher as
“formas diferentes” como se faziam as coisas nesse “país estrangeiro”, usando a
frase de Hartley. E é porque o passado transporta, no seu uso, a
possibilidade de uma moral, de uma escolha, que é tão incómodo para aqueles que
pensam que apenas podem beneficiar do presente, sem essa maçada de ter limites
às suas acções. Os limites são aquelas coisas malditas como seja o saber, em
vez da ignorância, a virtude em vez do vale tudo, a prudência em vez do meia
bola e força, e o parar para pensar em vez do imediato e do “já” que cada vez
mais pesa numa sociedade onde a adolescência se prolonga pelo Facebook e ersatzes de vida similares.
Não admira por isso que
haja nos nossos dias algo que não tem precedente na nossa civilização
ocidental, a que nos fez e ainda remotamente nos faz, que é o ataque aos mais
velhos. Nos anos do “ajustamento”, os pseudo-jovens que tiveram a sua
oportunidade nesses anos de lixo, dedicaram-se a querer empobrecer os seus avós
e os seus pais, em nome de uns longínquos e putativos filhos e netos, pelos
quais mostravam tanto mais amor quanto na realidade o que faziam era tirar a
uns pais e avós para dar a outros pais e avós, só que da classe certa.
Tudo quanto é argumento
neo-malthusiano foi usado para explicar a “injustiça geracional”, em que pais e
avós hipotecam o futuro dos filhos e netos, para viverem bem no presente. Eles
que eram “passado” viviam bem no presente e punham em causa o futuro. E o
futuro destinado aos jovens era não ter casa, nem emprego, nem dinheiro, nem
pensões, nem reformas, porque os malvados dos pais e avós não queriam perder os
“direitos adquiridos”, nem as leis que protegiam o emprego, nem as suas
reformas, nem o Estado Providência. Todo um argumentário conservador, que
desaguava depois nos excessos da direita radical, se desenvolveu para dar um
lugar ao sol não a todos os jovens, porque continuavam a ser precisos
soldadores, mecânicos de automóveis, electricistas, padeiros e empregados de
mesa, mas aqueles que nas elites se sentiam deserdados de um estatuto ou de um
poder que lhes parecia devido, por família ou riqueza natural, ou aqueles que
invejavam este estatuto de poder. Já repararam como este argumentário tem
sucesso ou em jovens políticos profissionais das “jotas”, ou em pessoas que
participam em “think tanks” de fundações e universidades bem providas, ou em
pessoas com empregos como “consultores”, “assessores”, jovens advogados de
negócios, e jornalistas da imprensa económica ou colaboradores dessa mesma imprensa
ou afim. Há excepções, mas não invalidam a regra.
Um dos aspectos desta nova
forma de luta de classes, na verdade a mesma de sempre, foi a minimização do
saber e da experiência, tudo coisas que vem com a vida e o trabalho
árduo, combate que assumiu e assume todo o seu esplendor naqueles que vivem nas
chamadas “redes sociais” onde há uma ideia igualitária sobre o conhecimento, ou
seja, uma apologia da ignorância. Se todos se podem pronunciar sobre
tudo e por isso mesmo tudo o que dizem tem o mesmo valor, não vale a pena
estudar, nem trabalhar para conhecer uma determinada matéria, basta só
escrevinhar umas frases que pretendem ser engraçadas. Esta nova forma de
ignorância agressiva, tem sido um instrumento para minimizar não só as
hierarquias profissionais e académicas, como para dar o mesmo papel na
sociedade a exercícios vulgares e superficiais mais ou menos intuitivos que se
tornam virais e pela comunidade cultural entre as “jotas” políticas e as
“jotas” jornalísticas que usam as “redes sociais” deles, os seus Facebooks e
Twitters para “interpretar” movimentos colectivos que são dos mesmos de sempre,
sendo esses mesmos muito poucos.
Há igualmente um ataque
à memória, com o encolhimento sistemático do que se lembra no presente a um
passado de escassos meses e anos. No limite, apenas ao que se
encontra nas pesquisas do Google, ou está na Internet. O que acontece é que
esse “passado” para além de ser considerado arqueológico, e portanto inútil de
lembrar, afunda-se nas trevas do esquecimento. Por sobre esta memória de
passarinho, crescem mitos, falsidades e memórias selectivas quase sempre
instrumentais para as necessidades dos conflitos do presente. Os mais
velhos são também um incómodo porque se lembram de coisas demais e de como,
nesse “país estrangeiro” do passado, alguns dos próceres do
presente, já mostraram o que valiam ou o que não valiam, os defeitos de
carácter ou de incompetência, ou por semelhança de atitudes, podem conduzir aos
mesmos sucessos ou, mais comummente aos mesmos desastres.
Eu sei bem que isto já
foi tantas vezes dito, quantas gerações passaram sobre a terra. O passado está
cheio de previsões sobre de como as coisas se degradam entre os mais velhos e
os mais jovens. É verdade, é quase um lugar-comum. Mas isso não significa que
às vezes, às vezes, possa ser verdade. Suspeito que hoje é.
Não sou, por isso, um fã
do presente, onde vivo, principalmente quando se quer esconjurar o saber, a
experiência e a memória, que são coisas que precisam do tempo do passado.
Não é para as pessoas voltarem à lanterna mágica, ou às televisões de caixa, ou
ao Pacman, nem tenho qualquer nostalgia do stencil ou do verniz corrector, nem
da máquina de escrever. Mas já tenho de homens como o esquecido e frágil Mem
Verdial, com a sua gravata à Lavalière, já então tão fora do tempo, e que levou
um paralelepípedo escondido para um comício da oposição a Salazar, patrulhado
por um capitão qualquer que numa mesa podia interromper qualquer orador. E
quando foi interrompido por dizer coisas subversivas sobre a democracia,
perguntou ao homúnculo do canto: “O senhor representante da autoridade quer que
eu ponha uma pedra sobre o assunto”. E pegou na pedra e colocou-a em cima dos
seus papéis. É este passado que me faz falta.
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