terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Sabedoria


Considerandos de Paulo de Almeida Sande / que penso não serem da sua avó / embora seja dela a radicalidade / que ao neto transmitiu com punhos renda / sobre a sociedade / e a bastante dose de  ironia / que Sande emprega com cortesia / e saber feito de experiência / e julgo que também de livros da vária ciência / que o seu espírito enriqueceram, / para nos transmitir em catadupa / um chorrilho de pensamentos / dos contactos que a vida e o estudo / lhe proporcionaram / e não se enganaram, / nem mesmo no sentimento de frustração / e algum sarcasmo nele envolto / tanto no início, no meio, como na conclusão / do seu texto de sentenças cheio / com bastante delicadeza mas destreza / repito, em primeira mão, / com parabéns à ditosa avó / que tal neto teve, / barão assinalado agora / não como os de outrora, embora.

Crónica de Natal: Acantologia da minha avó
OBSERVADOR, 26/12/2017

Hoje escrevo baboseiras. Palavras vulgares. Lugares-comuns. Hoje, meus queridos leitores, proponho um artigo contra os cânones e em nome dos sentimentos nobres que já quase não valorizamos, da vida que vivemos, dos dias de alegria ou de angústia ou de medo.
São epigramas da minha avó, elevação das mentes jovens: lembrei-me deles neste tempo de Natal, fruição disponível a quem deles queira fruir. A semelhança de alguns dos epigramas com personagens e factos reais é provavelmente apenas semelhança; provavelmente.
1- Se segues pelo centro meu amigo / irás sozinho e ninguém vai contigo
2- O bom senso tem limites/ditados pelo bom senso / já o mau senso é bom que evites / porque esse, não tem limites
3- Uma mulher conhecida / e um filósofo afamado / são parelha desvalida / dão um exemplo desgraçado
4- Nunca sirvas quem serviu / diz o popular ditado / mas raríssima se viu / num mais do que esperado assado
5- Juízo tem finalmente / aquele idoso senhor / que deixou galhardamente / jovem sem o seu calor / e a trocou recentemente / por um mais provecto amor
6-  Quem de seu dá o que não tem / sem querer a demasia /acabará sem vintém / milionário de alegria / mas quem só por caridade /der de sobras o que tem / acabará por vaidade / mais pobre do que ninguém
7- Um juiz douto e sabedor / não sabe nada do amor
8- Fica a imagem do mal / a arder este país / ardeu-nos Portugal / mas não foi Deus que o quis / pois Deus sendo real / não é o que se diz / Deus é menor que o ser / que em Deus se quer rever
9- Não choveu / choro eu
10 – Futebol / é meu sol /minha vida / vitriol
11- Por cada erro crasso/por cada aberração/a força de um abraço/o orgulho da nação
12 - Em cada dia o Mundo termina / para quem a vida se fina
13- Quem leu de Dostoiévski o Idiota / e na sua candura encontra Cristo / que tente descalçar agora a bota / de tantos idiotas que andam nisto
14- Um homem abusa da sua mulher /reiteradamente com ademanes vis / reencarnará, mas não como quer /em vez de xy trará dois xx
15- Escuta / o que te digo / cumpre o teu destino / eleva-te e brilha
16- Da sua voz surde / tanta coisa bela / gente que age e urde / jurando por ela / Nessa imensa mole / há milagres há /promessas, joelhos / esfolados / E crianças à disposição / ou não?
17- Se eu digo não / eu digo tudo / e sem senão / sequer de um surdo
18- Não morras ainda / tenho tanta coisa / para te dizer / ah o tempo que perdemos / nos nossos momentos de silêncio
19-  O Mundo mudou / a bola de cristal partiu-se / caminhamos alegremente / em direcção a um ocaso qualquer
20- Mais um plástico a nadar / e um peixe vai-se afogar
21- Um afecto é um toque de mão mágica / no coração dilacerado da Humanidade
22- Amar / é viver / estimar / e saber / Amar
23- Envelhecer ao lado de alguém / continua a ser envelhecer / mas é melhor envelhecer com quem / nos quer bem
24- A política é a arte do possível / alguns dizem / outros dizem/ a política é a arte do impossível / entendam-se por favor
25- Juntei os meus amigos no Natal / Comemos e bebemos e falámos / saímos era quase madrugada / com a pressa um sem abrigo atropelámos / mas não faz mal/era Natal

Orgulho neste pequeno país, neste povo que, entre poucos, sabe quem é e se identifica com o todo nacional. Somos invejosos, chico-espertos, estrangeirófilos, somos de brandos costumes, timoratos, dados a excessos e ao remorso deles, somos simpáticos, acolhedores, imaginativos, desenrascados. Temos em tese auto-estima a mais que resulta, na prática, em falta de auto-estima. Somos do fado, formais, doutores e engenheiros. O elevador social, entre nós, funciona, com soluços. Somos do café, do vinho e da gastronomia mais diversa do Mundo per capita. Acreditamos ser os melhores do mundo em tudo se outros, estrangeiros, o disserem.
São muitas as receitas que trocamos nesta quadra festiva, desejando-nos coisas boas. E é fácil, afinal: potenciar as qualidades, superar os defeitos. Conhecermo-nos. Dar mais do que receber. Acreditar que somos capazes. Não confundir pessoas com instituições, perdoar os pecados alheios quando eles espelham os nossos. Ser, não parecer, boas pessoas.

Como diria a minha avó, chegou a tua vez, ó português. Talvez avó, talvez.



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