Ando a ler os Livros
Proféticos do Antigo Testamento, no Volume III da tradução de Frederico
Lourenço, que a minha irmã me ofereceu, nas suas devoções de Natal, que não a
impedem de prover à gula da família com o magnífico peru de sete quilos cujo
interior ela recheia com castanhas, passas, pinhões, pão de forma embebido em
leite, tudo muito bem-acondicionado e cozido e temperado com vinho do Porto e
não sei que mais ingredientes que no forno se aperfeiçoarão em sabores
divinais. Passei pelos agoireiros e plangentes livros de Amós, Oseias,
Miqueias, Joel, e fixei-me em Jonas, que tinha sido mandatado pelo Senhor, para
ir pregar para Nínive, submersa em perdição, e Jonas bem que tentou fugir no
porão de um barco, para Pasárgada, perdão, para Társis, mas, responsável
confesso da turbulência no mar, foi lançado às águas, que acalmaram, e Jonas
apanhado por um peixão, que o levou a Nínive, seu destino implacável. Por lá anunciou
o castigo de Deus, dentro de três dias, mas o rei de Nínive era bom ouvinte:
vestiu-se de saco como todo o seu povo humano e animal e jejuaram e clamaram ao
Senhor, pelo que, momentaneamente se safaram da ira divina, embora Jonas viesse
a falecer, a seu pedido ao Senhor, desfalecido que se sentia, depois de tantas
fugas e provações por que passara, tal como Geppetto e o Pinóquio muito
posteriormente, que tiveram a sorte de a baleia espirrar, por prática
incendiária do Grilo, e assim serem cuspidos, como, de resto acontecera a
Jonas, mas por práticas devotas suas, no interior do peixão.
Sem ser Jonas, a mim
apetece-me falar no saco do rei de Nínive, para o nosso caso de desmandos pátrios
contínuos. Talvez um saco mais igualitário nas nossas ambições e safadezas servisse
para merecermos ainda a salvação da nossa Nínive corrupta.
OPINIÃO
A raríssima coluna vertebral
A Raríssimas é o
certificado da anomia cívica. Más notícias para os liberais.
Público, 13 de Dezembro de 2017
Público, 13 de Dezembro de 2017
A inacreditável história
da Associação Raríssimas perturba até os estômagos dos mais duros.
Perturba até ao limiar do vómito. E não apenas porque revela uma
confrangedora incapacidade do Estado para fiscalizar o dinheiro público: neste
filme sórdido, também a sociedade civil mostrou o seu profundo deleite com a
promiscuidade, a falta de exigência e a submissão a todo o tipo de abusos e
prepotência. A história é um nojo porque valida a facilidade com que a
corrupção e o nepotismo se instalam numa associação privada sem que ninguém
fosse capaz de as travar a tempo. Sim, desta vez a culpa não é apenas do
ministro, ou do secretário de Estado, ou dos políticos, ou do Governo: é também
falha de uma sociedade civil tolerante aos dirigentes que exigem aos seus
subordinados que se levantem à sua passagem, que ouve sem náusea nem protesto a
presidente da Raríssimas dizer que o filho é o seu “herdeiro da parada”, que
perante todas as suspeitas não denuncia, não questiona, não critica, não dá um
murro na mesa. A Raríssimas é o certificado da anomia cívica. Más notícias para
os liberais.
Nesta história de muitos
vilãos há poucos heróis – uma ex-dirigente que dá a cara e dois ex-tesoureiros,
com destaque para Jorge Oliveira Nunes que teve a coragem de se indignar com as
manobras de Paula Brito Costa e de as tornar públicas. Não nos venham agora
dizer que ninguém sabia o que se estava a passar. Se tantos famosos andaram por
lá e não viram nada, não ouviram nada, não suspeitaram de nada é porque usaram
esses cargos, não para serem úteis à comunidade, mas apenas para expor a sua
vaidade ao público. O BMW estava à porta. Os quilómetros extra ou as facturas
dos vestidos passavam pelo secretariado, passavam pela contabilidade e passavam
pelo controlo da Assembleia Geral, onde
gente experiente como Vieira da Silva esteve um par de anos. Ninguém viu
nada, ninguém ouviu nada, ninguém suspeitou de nada?
Tudo bem, vamos às
práticas quotidianas. Os funcionários sabiam que tinham de se levantar à
passagem de Sua Excelência e fizeram-no sem protesto. Muitos sabiam do plano
dinástico que a dona daquilo tudo que tinha na manga, sabiam das ameaças e da
intimidação que fazia sobre quem questionasse a sua iluminada inteligência e,
que se saiba, nunca reagiram. É esta tolerância com o abuso que torna o
caso insuportável. Porque certifica a proverbial tolerância de tantos à
prepotência e à corrupção. E ao relativismo que leva muitos a dizer que
queixinhas e invejosos há em todo o lado. Que obrigar alguém a levantar-se à
passagem da majestade é apenas uma pequena extravagância. Que alguém ter um
carro pago por uma IPSS e ainda por cima cobrar quilómetros pode ser estranho,
mas que é lá com eles, os de cima, os que têm desígnios inalcançáveis pelos de
baixo. Que pagar com o cartão de crédito da associação roupa de marca com a
justificação que a honra da Raríssimas se avalia pelo tailleur da presidente e
não pelos serviços que presta também acontece noutros lados.
A existência desta
cultura de subserviência, de falta de coragem, de medo, assusta. O respeitinho
ganha aqui o estatuto de atitude oficial. Começa nas praxes onde
meia dúzia de brutos se deliciam a humilhar os colegas e onde os colegas se
submetem com deleite à humilhação. Continua na turma que aceita que os mais
fortes se imponham aos mais fracos. Acentua-se nas duras disputas de acesso ao
mercado de trabalho. E cristaliza-se quando chegar a vez dos humilhados se
vingarem quando chegarem ao poder. Forma-se assim uma sopa mole onde a
liberdade cívica, a consciência ética, a noção do dever, o respeito pelos mais
fracos se esvanece sempre que aparece na cúpula uma chefe com a desfaçatez e o
prazer pela intimidação como a que a presidente das Raríssimas foi revelando ao
longo dos tempos. Essa forma de estar morna, de brandos costumes, limita-nos a
autonomia, torna-nos queixinhas e leva-nos a pensar que a salvação da Pátria,
do Mundo, está não em nós mas no Estado ou no Governo. É por isso que anda
agora meio mundo a pedir demissões dos políticos. As dezenas, ou centenas, de
figuras públicas que passaram pela Raríssimas escapam entre as pingas da chuva.
Limitaram-se a tapar os olhos e os ouvidos. A fazer o que os “bons pais de
família” fazem todos os dias.
Essa forma de estar
letárgica e demissionária ajuda explicar a condescendência
com que o país, todo o país, assistiu aos desastres do Verão. A morte de quatro
pessoas na Galiza na vaga de incêndios
de 15 de Outubro arrastou centenas de milhares de pessoas para as ruas
das principais cidades; cá foi o que se viu. Mas ajuda também a explicar o
branqueamento de Tancos ou o empenho de um dos mais credíveis ministros deste
Governo, Vieira da Silva, em salvar a pele recorrendo ao lamentável hábito de
chutar para canto. Ele não sabia de nada, diz. Acreditemos. Mas não faça de nós
tolos. Dizer, como disse, que as queixas que recebeu em Agosto não revelavam
actos de “gestão danosa” é pura semântica – a carta de 9 de Agosto falava de
“irregularidades”, qualificativo que está longe de se enquadrar numa gestão
meritória. Um ministro tem o dever político de saber o que se passa com a
gestão de dinheiros públicos que gere.
Manuel Delgado, o
secretário de Estado, fez o que devia: demitiu-se. Não tinha outra forma de
responder ao desafio que a cidadania lhe colocava, desafio que no editorial
de terça-feira do PÚBLICO, assinado por David Dinis, se colocava nestes
singelos termos: “Alguém vai ter de nos explicar devagarinho como é que o
Estado dá 327 mil euros do Fundo de Socorro que acabou por pagar estudos de um
consultor” (o próprio secretário de Estado da Saúde).
A vergonha, e a
grande lição, que Paula Brito Costa deixa é a certeza de que neste país se pode
ser como ela é e fazer o que ela fez durante anos sem que apareça alguém para
lhe fazer frente. Que há maus no mundo, que há personagens de opereta com
vocação para ditadores já sabíamos; mas não sabíamos que numa associação
apoiada pela generosidade das pessoas e pelo Estado fosse possível abusar de
forma tão flagrante e tão tolerada durante anos como na Raríssimas. Isso é que dói.
Isso é que custa. O salazarismo subserviente completado pelo capitalismo
anacrónico e pelo esquerdismo conservador e anestésico deu no que deu: num
Estado barrigudo, labiríntico e disfuncional e numa sociedade amorfa e
tolerante a pequenos ditadores. Raríssimo é haver quem, como Jorge Oliveira
Nunes, tenha coragem para bater com a porta e travar alguém que se serviu da
dor dos outros para pavonear a sua execrável vaidade. Uma vénia...
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