Há os que se zangam a valer, é
o caso de Alberto Gonçalves. Há os que analisam com muito cuidado os
factos. É o caso de António Barreto. Mas acho uma aberração a quantidade
dos prevaricadores, na perspectiva do primeiro: «Nove em dez portugueses
(estimativa baixa) dedicam os respectivos expedientes, e horas extra, a catar o
patrocínio dos portugueses em redor.» Julgo que ele não se inclui
nesses, se sim, não o diria com tanto rigor inflaccionário. Mas é necessário
sentir muito ódio – um ódio tão superiormente manifesto – para assim se
condenar noventa por cento dos patrícios. Quanto a António Barreto, este
é perito em analisar os prós e os contras, com muita eficiência nos dados.
Afinal, trata-se de um caso de solidariedade próprio da democracia em que
vivemos, aquilo de que tanto se fala agora, e eu sempre ouvi dizer que a caridade
bem entendida começa por nós próprios. Mas para além da prevaricação, existe um
trabalho meritório de ajuda a doentes difíceis, e essa dedicação deve ser
reconhecida, pelo menos nos que se dedicam de facto, embora a história do
aproveitamento e manipulação seja desonrosa, não há que negar. Como não sentir
vergonha? Quanto às notas de rodapé, o primeiro ministro lá veio justificar-se,
falando em contexto - europeu, por isso discreto - quando referira o ano
saboroso, a vergonha não é, de facto, com ele também. O cinismo sim.
IPSS O Estado, essa doença comum
Alberto Gonçalves OBSERVADOR, 16/12/2017
Fora do manicómio em que
saltita boa parte da “opinião”, o problema da Raríssimas não é ser “particular”
na designação, nos estatutos e na teoria: é não ser particular na prática.
Desde logo, destaca-se o
espírito de iniciativa. Enclausurada no seu quiosque de jornais, nos idos de
2000, Paula Costa sonhava com o futuro. A tempo, percebeu que o futuro da
imprensa tradicional tendia para o negro e desatou a matutar numa alternativa
airosa. A plausível falta de clientes permitia-lhe passar os olhos pelos
artigos que tentava vender e, entre as inúmeras notícias de habilidades típicas
de um país sério e formidável, procurar o que o vulgo designa por saída
profissional. Uma bela manhã (talvez fosse de tarde), encontrou-a.
Como os sindicalistas,
os estudiosos da pobreza, os fotógrafos da fome e demais benfeitores sabem
perfeitamente, é fácil ganhar a vida à custa de desgraças alheias. Difícil
é descobrir uma desgraça que ainda não tenha sido apropriada por almas
caridosas. Por sorte, palavra aqui inconveniente, Paula Costa possuía uma
desgraça dentro de portas: um filho com uma doença rara. A contrariedade
“económica” (digamos) das doenças raras é que cada uma, isolada, não justifica
grande investimento, na atenção dos “media”, na compaixão do público, na
investigação científica, na caridade. Lembrar que, nos próximos 300 anos, 14
europeus morrerão de poliomielite não é um meio eficaz de comover o semelhante.
Por isso, Paula Costa juntou, salvo seja, diversas doenças invulgares e, para o
bem e para o mal, fundou a Raríssimas. O resto é história.
E é uma história
edificante. Aos poucos, Paula Costa trocou o pretexto declarado da
associação por objectivos não declaráveis: melhorar os níveis de conforto
das pessoas envolvidas, naturalmente a começar por ela própria. Principiou pelo
essencial, leia-se mudar o nome, a que acrescentou o “Brito” e o “e”. E
continuou a fazer o que os simples imaginam que as classes sofisticadas fazem:
ser arrogante para com os funcionários, passear-se em carro alemão, vestir
roupas de marca, viajar a “trabalho”, frequentar “ilustres”, chafurdar no PS,
etc., tudo alimentado pelo dinheiro despejado na Raríssimas. Tudo, ou quase
tudo, alimentado pelo Estado. A história de Paula Brito von Costa é, em
larga medida, a história do Portugal contemporâneo.
Porém, o curioso não é a
história, mas o escândalo que provocou. Em 2017, a maioria de nós mantém
intacta a capacidade de se espantar com a vocação indígena para a trapaça, o
abuso e as encantadoras contingências do convívio – sempre desinteressado – com
o poder e em especial o poder subjugado à ética republicana. A piada é que a
minoria finge interpretar o episódio ao contrário e, numa espectacular
demonstração da inteligência que atribui ao cidadão médio, apressou-se a culpar
os culpados do costume, isto é, os que ilibam os culpados reais.
No instante em que se
descobriu a cumplicidade na tramóia de um ministro confiável, um secretário de
calções e um punhado de socialistas alegres, os funcionários da propaganda
lançaram a responsabilidade para cima da jornalista Ana Leal (porque
fintou a censura, perdão, o código de decência, perdão, as regras de
preservação da privacidade), da esposa de Cavaco Silva (porque era madrinha
da Raríssimas), de Pedro Passos Coelho (porque sim) e, principalmente, do
pormenor criminoso de a Raríssimas não pertencer ao Estado. Nas televisões
nacionais, vi aquelas criaturas que só caberiam nas televisões nacionais e na
figuração do “Walking Dead” jurar que as aventuras de Paula Brito y Costa se
devem à existência de entidades, e já agora de indivíduos, objectos,
sentimentos e bolas de Berlim exteriores à esfera pública. É inegável que a
importância da privacidade varia com as circunstâncias.
Fora do manicómio em que
saltita boa parte da “opinião”, o problema da Raríssimas não é ser “particular”
na designação, nos estatutos e na teoria: é não ser particular na prática.
Os truques de Paula Brito de la Costa, apenas condenáveis pela origem dos
financiamentos, não diferem dos praticados ou invejados por milhões dos nossos
queridos conterrâneos. Num lugar em que o Estado asfixia o que pode, muitos
acham o exercício erótico e, no lado certo, lucrativo. Fora da esfera
pública, sobra pouco. Nove em dez portugueses (estimativa baixa) dedicam os
respectivos expedientes, e horas extra, a catar o patrocínio dos portugueses em
redor. Uns vão directamente à fonte e alistam-se na política e adjacências.
Outros preferem simular independência empresarial. Os terceiros, nem de propósito,
ficam-se pelo “terceiro sector”, o da “solidariedade social” e de Paula Brito
van der Costa. Descontadas as excepções da praxe, todos querem o mesmo. Em
geral, conseguem-no. Em geral, até ao dia em que o golpe se torna público, um
raríssimo momento em que os portugueses respeitam o que é privado.
Notas de rodapé
1. Em Bruxelas, o dr. Costa declarou 2017 “um
ano particularmente saboroso para Portugal”. Então não foi? A vasta maioria
dos portugueses não morreu carbonizada em fogos florestais. Nem todo o
armamento militar acabou em mãos duvidosas. Através da Web Sumitt, Lisboa
abriu-se à iniciativa privada enquanto a polícia perseguia condutores da Uber.
Houve dias em que a Autoeuropa não esteve em greve. Alguns pacientes
hospitalares não faleceram a expensas da legionella. A dívida pública continua
a dispor do infinito para se estender. E ganhámos a Eurovisão e a Bola de Ouro.
Agora a sério: se, por perversão ou primitivismo, o dr. Costa gosta de proferir
insanidades, é lá com ele. Mas podia limitar-se a fazê-lo para cá de Vilar
Formoso. Uma coisa é sermos enxovalhados cá dentro, passatempo que pelos vistos
até apreciamos. Outra coisa é saberem-no lá fora.
2. É engraçado ver tanta gente aflita pelo
facto de o sr. Trump cumprir uma promessa dos seus três antecessores mais
próximos e reconhecer a realidade: Jerusalém é a capital de Israel. E é
ainda mais engraçado notar que alguns dos aflitos vivem em Lisboa, a qual,
segundo os mesmos princípios de respeito pelo pacifismo árabe, não pode ser a
capital portuguesa, e na verdade nem sequer pode ser portuguesa. Vamos lá então
começar a desmantelar as embaixadas e enviá-las para o Porto – ou, por via das
dúvidas, para Oviedo. Se se despacharem, vão a tempo de apanhar o camião de
mudanças do Infarmed.
II- Este meu país tão raro!
António Barreto, DN,
17/12/17
O caso Raríssimas ocupa a
crónica nacional. É natural. Tem contribuído, para o clima nacional, com várias
revelações. Ou confirmações. Como seja, por exemplo, o primado do mexerico
nos costumes. Ou o papel da inveja na cultura nacional. Ou ainda a indiferença
pela realidade e pelos factos, assim como o desprezo de muitos profissionais e
comentadores pelos números. E também a facilidade com que não se resiste à
tentação da pele, da carne e do bolso. Ou, finalmente, a posição do bilhete de
avião, do carro, do vestido e da gamba na escala de valores morais.
O caso despertou velhos
fantasmas. O dos polícias e inquisidores que entendem que se devem vigiar as
organizações de solidariedade e criar uns milhares de vigilantes para cuidar de
uns milhares de organizações. O da rústica simplicidade com que se afirma que é
necessário nacionalizar as instituições privadas e estatizar as funções sociais.
A estúpida candura dos que garantem que o Estado não corrompe, não
desperdiça, não se deslumbra e não mente.
Milhões! Palavra mágica!
Número mágico! Desencadeia imediatamente todos os maus sentimentos do mundo.
Inveja. Desconfiança. Ambição. Milhões! Quem os tem guarda-os, não distribui e
quer mais. Quem os não tem quer ter. Quem não tem desconfia. E quem desconfia
tem inveja.
Infelizmente, a inveja e
o mexerico são suficientes para muita gente. É verdade que a corrupção, o
nepotismo e o deslumbramento são insuportáveis e não devem ser financiados. Mas
não podem fazer esquecer os factos e as situações a analisar. Na verdade, "milhões"
pode ser muito ou pouco. Depende dos resultados e para quê. Quem se interessou
realmente por saber quanto era gasto com cada doente e a que título? Quantas
pessoas eram auxiliadas e acompanhadas? Quais as condições de acesso a estes tratamentos?
Quantas pessoas trabalham nestes casos de doenças especiais muito exigentes?
Quantas famílias vivem nas mesmas condições? Quantos não conseguem ter o mesmo
apoio? O que pode ser feito com voluntários e o que deve ser feito com técnicos
remunerados?
Quantas crianças doentes
estão a ser tratadas naquela organização? Quantas pessoas estão internadas? Que
outras formas de tratamento estão a ser seguidas? Quantas pessoas foram
tratadas desde que a associação começou a receber subsídios do Estado? O
acompanhamento implica técnicos em tempo inteiro? Quantas horas por dia?
Quantos dias por semana? Há outras instituições semelhantes? Gastam mais ou
menos? Muito mais ou muito menos? Tratam mais pessoas ou menos? Há voluntários
ou só técnicos remunerados? Quantas pessoas existem em Portugal com doenças
semelhantes e com exigências deste mesmo género? Há pessoas que não conseguem
subsídios ou tratamento?
O que sabemos com
segurança da Raríssimas não nos permite chegar a uma conclusão certa. É
possível concluir que o seu trabalho é precioso, bem pago, justamente
remunerado, devidamente recompensado, deve ser continuado, pode ser replicado e
constitui uma função útil e necessária.
É possível concluir que
aquele dinheiro é bem empregue, que os sacrifícios que aquele trabalho exige
devem ser devidamente recompensados e que o facto de se tratar de milhões é
indiferente dado que as necessidades custam isso e muito mais.
Mas também é possível
concluir que há dinheiro a mais, que muitos recursos são ilicitamente
aproveitados por pessoas e famílias que se aproveitam, que aquele trabalho é
mais bem feito por outras associações privadas e por instituições públicas.
E também seria legítimo
concluir que aquele trabalho é desperdício, fonte de corrupção e promiscuidade,
factor de propaganda eleitoral e demagogia política e motor de promoção pessoal
e deslumbramento.
Mas, para concluir o que
quer que seja, é indispensável prestar atenção aos factos, aos números, à
realidade e à história. Enfim, minudências. Pois
ANTÓNIO BARRETO
As minhas fotografias - Um copo de ginjinha ao sol,
com mulheres e homens
À porta de uma chapelaria e
ao lado de uma tasca famosa na Baixa de Lisboa, duas mulheres fumam um cigarro
e bebem ginjinha. Uma exibe alguns encantos modernos, um piercing, uma tatuagem
e unhas azul-escuras. Perto delas, uma rapariga, sozinha, bebe um copo. Lá
dentro, outra rapariga bebe a sua ginjinha e conversa com dois latagões. À
entrada da porta, um valente português olha para a situação e para o fotógrafo.
Esta imagem, recente, vale páginas inteiras sobre a mudança na sociedade
portuguesa contemporânea. Vale manifestos feministas e proclamações sobre a liberdade
das mulheres. Na sua normalidade banal e quotidiana, aquelas quatro mulheres
dizem mais sobre os costumes e as relações sociais do que um tratado ou um
manual. Em pano de fundo, o reflexo nas montras da chapelaria mostra o Palácio
da Independência.
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