Um texto de Paulo Almeida
Sande que condena os muitos defeitos deste povo português que o envergonha,
para seguidamente lhe exaltar as virtudes que o fazem amá-lo. Creio que todos
sentimos esse misto de repulsa e simpatia relativamente a tantas marcas que nos
têm desvalorizado como seres humanos, e simultaneamente a outras que nos elevaram,
mesmo em termos de heroicidade, que ditou a expressão “portuguesinho valente”.
Reporto-me, é claro, aos tempos da formação e defesa pátrias, como igualmente
aos tempos do pioneirismo descobridor das novas terras e dos mares ainda desconhecidos,
sendo, contudo, tão débeis em recursos económicos e humanos, e de governos dum
modo geral muito pouco interessados em elevar espiritualmente o povo que os
servia, bem como às demais classes, submisso a uma condição escravizante à qual
humildemente se acomodou. Tudo isso é sabido.
Quando ouço e vejo –
televisivamente - os grandes filmes, os grandes palácios estrangeiros, as
grandes salas de espectáculos onde brilha o esplendor da beleza e da arte, que
por vezes a RTP, sobretudo, nos fornece, sinto pena de que aqui não tenhamos
acesso a espectáculos tão solenes, a não ser por essa via do empréstimo. A solenidade
e a compostura que se verificam nesses palcos tem a ver com uma educação
certamente que assente em normas rígidas de valorização humana, que ditaram comportamentos
menos desleixados que os nossos. No entanto, na sequência do apreço descrito
por Almeida Sande, saúdo o recente programa das “Vozes de Portugal” que mostrou
como se pode ser brincalhão e competente e simultaneamente esbanjador de
carinho, como era o caso dos dois elementos masculinos componentes do júri e
simultaneamente mentores – Mickel Carreira e Anselmo Ralph, disputando-se agarotadamente
os cantores para as suas aulas de preparação técnica. As próprias Áurea e
Marisa Liz, revelaram-se pessoas de grande capacidade vocal e técnica, além de jovens
sensíveis num júri bem-disposto. (A propósito, embora tivesse gostado do cantor
treinado pela Marisa, Tomás Adrião, mau grado o seu excesso de requebros
acompanhantes, não pude deixar de lamentar que a extraordinária voz da moça Ana
Paula, da equipa da Áurea, não tivesse ganho). Espectáculo igualmente aprazível,
pelo desempenho, pela criatividade, pelas caracterizações, é o dos actuais
DDT. Por isso, e algumas coisas mais, entre as quais tanta gente de vulto e
pensamento, dispersa ao longo da nossa história, nos faz manter ainda a cabeça erguida---
quando tantos outros casos contemporâneos, sobretudo, tal como Almeida Sande
refere, nos entristecem e indignam.
Mas é dia de Natal, dia do
Deus Menino. Regozijemo-nos, hoje.
Um raríssimo Portugal
12/12/2017,
Somos o povo acomodado, que
exprime a angústia latente da bondade resignada, convencido de estar destinado
à subalternidade, um povo submisso, que emula o estrangeiro e desdenha o
nacional.
Há dias de ter orgulho, de
nos sentirmos honrados por ser portugueses.
Tenho orgulho em ver
escolhidos compatriotas meus para cargos notáveis, cobiçados por muitos,
ocupados por poucos; e mais, confesso, quando de fora ecoa a surpresa alheia,
pois como bom português sou sensível, talvez demasiado, à opinião que chega do
estrangeiro, chamem-lhe xenofilia.
“Primeiro foi o campeonato
da Europa, em Janeiro chegou a ONU, em Maio a Eurovisão e este dezembro o
Eurogrupo. Portugal enche os títulos da comunicação social para incredulidade
dos peritos. (…)” (El Pais). Até os espanhóis, senhor! E ainda houve Ronaldo…
Longe vai o tempo das
vitórias morais, dos zero pontos no eurofestival e do ostracismo internacional,
em que aos nossos compatriotas não era permitido sonhar mais alto do que o
rés-do-chão das organizações internacionais. Presunção e água benta? Chamem-lhe
o que quiserem, mas eu reivindico o direito de ter orgulho na escolha de
portugueses para funções globais. Sim, na simples escolha, mas mais,
naturalmente, muito mais, se por ela e nela se elevarem.
Há dias de ter vergonha, de
nos sentirmos envergonhados por ser portugueses.
A reportagem sobre as
“Raríssimas” diz bem de um certo modo de estar português que não pode senão
envergonhar-nos. É o país da chica-espertice, da arrogância dos “pequenos
chefes”, da saloiice que se auto-cumprimenta. E quantas “raríssimas” haverá por
esse país fora, quantos casos mal explicados, quanta pesporrência maquilhada de
lantejoulas? Quanta apropriação ilícitos de recursos gerados por outros?
Há dias de ter orgulho, de
nos sentirmos orgulhosos por ser portugueses.
Portugal foi designado pelo
World Travel Awards melhor destino turístico do Mundo. Considerando as
alternativas, comecei por achar exagero. Mas depois pensei que Lisboa é das
cidades mais belas que já vi, e já vi muitas; que os Açores deslumbram de bruma
e mar, donde emana o calor das entranhas da terra e a natureza explode em lápis
lazúli e verde, cor de laranja e castanho e cor-de-rosa; que o Porto cresce em
sedução e o Algarve quente, e o Alentejo seco e vivo, e a Madeira, farol de
cruzeiros. Trás-os-Montes-do-Mundo. Tanta beleza.
Tenho orgulho em ti,
Portugal, orgulho em vós, portugueses. Na vossa, nossa, língua única. O grande
Torga assinalou o povo mais enamorado da Europa, inventor do amor puro: o
português morre de amor como ninguém. E a saudade, que Garrett definiu.
Coexiste a nacional melancolia, pessimismo masoquista, com o pendor
sebastianista, inevitável regresso do encoberto, esperança perene de um povo.
Lusitanos, de antigo.
E contudo há dias de
vergonha, de nos sentirmos envergonhados por ser portugueses.
Somos o povo acomodado, que
exprime a angústia latente da bondade resignada, convencido de estar destinado
à subalternidade, como explicou Eduardo Lourenço, um povo submisso, que emula o
estrangeiro e desdenha o nacional. E às vezes reage, abrupto, desproporcionado,
expressa o orgulho pátrio em rivalidades pessoais, invejas viciosas,
maledicências insensatas.
Será o escusado complexo de
inferioridade, ou antes um devastador sentimento de superioridade? Explica bem
a diferença Eduardo Lourenço: superioridade em recusar-se a ser a pequena nação
cristã que somos, inferioridade em desacreditar da possibilidade de alguma vez
sermos grandes. Nem uma nem outra são Portugal, pois Portugal é o que é,
diversamente; simplesmente.
Vergonha: a
pequena vigarice, o pé sempre a fugir para a chinela, a submissão às modas
alheias – só nós para inventar os estrangeirados -, a inveja, que condena os
espíritos elevados a procurar além-fronteiras o sucesso que a Pátria nega.
Tenho vergonha.
Mas também tenho cada vez
mais orgulho, orgulho em ser português.
Não por acaso citei Miguel
Torga: o seu “Portugal” é o bilhete de identidade de um povo, tão
singular na sua singularidade que poucos há que o cotejem. O lirismo occitânico
misturou-se com o anterior romantismo primitivo galaico-português e criou uma
lírica focada no sofrimento do enamorado, sempre incorrespondido. O português
morre de amor, tem saudade, angustiado e alegre, melancólico e folião, por
vezes excessivo, quase sempre generoso.
Somos poucos, periféricos,
pobres? Fomos e somo-lo. Depois, num depois de antes, sem mais queixumes
inventámos a nossa própria estratégia, lançámo-nos ao mar Oceano, misturámo-nos
com outros povos, fizemo-nos mais do que os menos que eramos; gastámos acima da
conta, foi sempre assim. E chegámos ao topo: “Entre gregos e troianos, é melhor
um português. … Nem do Norte nem do Sul, nem muito vermelho nem muito azul, …
nem – importantíssimo – primeira opção. A diplomacia portuguesa joga
tradicionalmente o trunfo da segunda opção”, explica o El País no artigo citado: emergimos no
deserto dos outros, aproveitámos a justa dos grandes, somos o orgulhoso povo da
alternativa, o que não deixa ninguém ficar mal. Orgulho, claro.
Embora haja dias de
vergonha, de nos sentirmos tristes portugueses quando as televisões regurgitam
do futebol falado, rio de insultos no mar do fanatismo; da incapacidade de nos
protegermos, porque o Estado que mandatámos (para o fazer) não é capaz; da
intrigazinha, da caluniazinha, do acintezinho. Dias de vergonha, quando
facínoras, sejam eles banqueiros, directoras de IPSS com financiamentos
garantidos ou ex-primeiros-ministros, roubam o que é de todos, se locupletam
com riqueza que não lhes pertence. Vergonha.
Orgulho. Sermos afáveis com
os visitantes. Humanidade e universalidade, “não há povo mais global do que tu,
ó português; é contigo que falo, não te escondas, não tens razões para isso”.
Até dos defeitos fizemos virtudes, escreveu Torga.
Uma frase que caiu no meu
facebook, de um anónimo estrangeiro, rezava assim: “I am constantly impressed
by the leaders Portugal produces (…). Must be that global outlook set by the early explorers!”.
Tenho orgulho, tanto
orgulho, até da vergonha que por vezes sinto em ser português. Este povo
insignificante do cabo da Europa ainda não deixou de espantar o Mundo.
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