domingo, 31 de dezembro de 2017

Haverá sempre um Marte para o desencalhe


Mais uma excelente crónica de José Pacheco Pereira sobre  a  actualidade desta nossa novela, lembrando-me um gracioso livro, presente de Natal, que ando a ler no prazer do requinte quer da sua escrita quer da intriga e perícia caracterizadora das personagens da primeira novela – A arte de morrer longe - em redor de um quelónio e de um jovem casal desavindo e resolvendo o seu conflito bem à nossa maneira, nervosa, grotesca nas pequenas perfídias ou situações de dor e humilhação recíprocas, que trazem sempre as separações entre os casais,  e, afinal, de happy end simpático, humanos que eram, no dizer de Bárbara protagonista, a justificar a cedência momentânea – em previsão de  continuidade - aos doces ardores de uma reconciliação ansiada, mascarada embora de pueril zanga, entre ambos, mas para mal da pobre tartaruga, objecto de parca estima no lar de que haviam resolvido desfazer-se, despejando-a nas águas dum lago, para posterior conforto gástrico de um milhafre atento. 
Cronovelando”, o engraçado título do livro de novelas de Mário de Carvalho que ando a ler, bem se poderia aplicar também a esta crónica de José Pacheco Pereira sobre um país encalhado, tentando livrar-se da sua “tartaruga”, em episódios e obstáculos de diversa índole, que ele excelentemente analisa, em educada ironia, sem lhe descobrir, todavia, o desenlace, talvez por desconhecer ainda o livro de novelas de Mário de Carvalho e o triste fim do quelónio. Mas as descobertas de água e de dióxido de carbono em Marte, e as previsões de ocupação humana por lá, talvez lhe sugiram que, à falta do “Encoberto”, ou de um Cristo salvador no nosso “Ourique”, haverá sempre a possibilidade de nos transferirmos para Marte, ainda que levemos a dívida atrás, num povoamento à nossa maneira. Pelo menos, iremos morrer longe, como o pobre quelónio, que os milhafres apetecem .

OPINIÃO
Um país encalhado
Não é por acaso que usei várias vezes neste artigo palavras como “usura”, “desgaste”, “cansaço”. Trata-se em todos os casos da velha regra de que, nada mudando, o “tempo come as coisas”, tempus edax rerum.
José Pacheco Pereira
Público, 30 de Dezembro de 2017
Poupo-vos os balanços do fim do ano. Um ano é uma convenção e quando termina significa que há preços (muitos) que vão aumentar e alguns impostos (poucos) que vão descer. Espera-se. As pessoas vêm das festas e isso embota a consciência, o que certamente ajuda. Depois volta a rotina.
A comunicação social torna-se absolutamente aborrecida e repete todos os anos as mesmas reportagens. Gostava de saber o que é que aconteceria se houvesse uma estação de televisão em que nada tivesse que ver com o Natal, nem filmes infantis, nem reportagens sobre as consoadas nos hotéis, nem competições de árvores de Natal, nem corridas de Pais Natal, nem multidões nas compras, nem voos cheios e esperas nos aeroportos, nem as greves sazonais. Nem nada. Sem um átomo de “espírito natalício”. Infelizmente ninguém o vai fazer, pelo que estamos condenados a ter tudo igual. Na verdade, não é nada de diferente do que acontece todo ano, só que aqui nota-se mais.
Novidades em 2017? Houve algumas, mas só duas é que podem ser importantes para 2018. Uma foi a crise dos incêndios, que afectou e muito o Governo, e a outra é o contínuo “cumprimento das regras europeias” — saída do défice excessivo — Centeno no Eurogrupo, três aspectos da mesma coisa: o Governo socialista-comunista-bloquista vai governar com o mesmo modelo dos governos da troika, moderado pela margem de manobra de uma melhor economia, mas igualmente castrador.
No PSD, um demónio vingador condenou tudo a continuar quase na mesma. Rio não é igual a Lopes, nem em carácter, nem em competência, nem em seriedade e responsabilidade, é melhor, mas ambos resolveram fazer uma campanha péssima de continuidade e de medo de tomar posições, numa altura em que mais do que nunca o PSD precisava de rupturas. Tornam-se assim um factor de conservadorismo, de bloqueio do debate político, logo um impeditivo à abertura e à vitalidade do partido. Colocar Passos Coelho numa redoma não diminui o poder dos seus actores menores que conduziram um processo sinistro de mediocratização do PSD, e cuja principal preocupação é a sua carreira. Ainda recentemente um deles fez uma exibição televisiva de absoluta ignorância sobre o que estava a dizer e não é excepção nesse abaixamento de bitola de qualidade mínima. Apostaram quase todos em Lopes, mas como a sua legitimação e poder partidário vinha de Passos, deixando os anos do “ajustamento” intactos, ou vão fazer a transumância, caso Rio ganhe, ou estão em condições para lhe fazer a vida negra, como Passos fez a Manuela Ferreira Leite. Por aí, infelizmente não vai haver a força necessária para virar situação de decadênccia do partido.
Por isso, em 2018, digam o que disserem as sondagens, o Governo está mais fragilizado, o PSD idem, e o país está condenado a uma política de estagnação para a qual parece não haver forças endógenas que alterem o rumo. Daí que por muito que a situação pareça de estabilidade ela é inerentemente instável. A única efectiva criação na política portuguesa dos últimos anos, a aliança PS-PCP-BE, está por isso condenada a traduzir essa instabilidade de fundo, e, a continuarem as coisas como estão, não vai acabar bem nas eleições de 2019. O excesso de tacticismo que domina a política portuguesa faz com que todos os membros da aliança estejam a fazer navegação de cabotagem e a ver se ganham alguma coisa pelo meio, sem qualquer plano consistente para o futuro. O PS pode esperar por ter uma maioria absoluta, o que até agora, mesmo no contexto mais favorável antes dos incêndios, não estava adquirido. Penso que Costa, que já aprendeu com os erros da campanha de 2015, é mais prudente e deseja uma forma qualquer de acordo eleitoral prévio, mas no PS há muita gente a desejar alijar o PCP e o BE, ou a negociar com eles na base de uma posição de força. Saliente-se que uma das razões por que foi possível o acordo de governo PS-PCP-BE foi o facto de o PS não ter condições para negociar a partir de uma situação de força.
O BE é pessimamente dirigido no contexto do acordo, porque pensa que a dimensão tribunícia pode continuar na mesma num partido que partilha o poder político, como de facto partilha, reivindicando os louros mas recusando as responsabilidades. E o PCP está preso num enorme conservadorismo de linguagem, métodos e acção e já começou a perceber que, a não haver mudanças sérias, está condenado a perder posições em cada eleição. Não é a aliança com o PS e o BE que está a erodir o eleitorado do PCP, é o autismo da sua linguagem que nem sequer vagamente comunista é. Veja-se o seu último cartaz que diz “salários — emprego — produção — soberania”. E depois? Há um enorme cansaço no PCP, e isso é um dos factores de crise da “geringonça”.
O PS permitiu também um processo de usura, ao aceitar haver algum mérito em questões casuísticas e anedóticas, mas mediáticas, que a oposição usa bem. A questão é que à falta de questões de fundo e com uma comunicação social muito limitada ao “caso” da semana, explorado ad nauseam, seja ou não importante, o Governo desgasta-se ao actuar ao ritmo dos jornais e televisões, ou, ainda pior, das chamadas “redes sociais”. A oposição ao Governo socialista, liderada pelo CDS, afina pelo mesmo estilo casuístico, com um método de actuação pobre, simples, mas que o PS tem permitido ser eficaz ao morder o isco todos os dias. O CDS cria ou explora todos os casos sem excepção, sempre com o mesmo método: o Governo diz que vai dar 20, o CDS reclama 50; o Governo diz que o prazo é seis meses, eles reivindicam de imediato três, ou “já”; o Governo diz que vai dinheiro para isto, o CDS diz que o dinheiro deve ser dado àquilo, ou deve ser mais, ou deve ser menos. Muito barulho, mas pouca substância, com um PSD acéfalo atrás.
O Presidente da República vai ser também um factor suplementar de instabilidade. O Governo vai olhar para o lado, aquiescer, concordar, dizer que não se importa, com o contínuo metadiscurso da governação que o Presidente faz. Mas o próprio desgaste desse discurso vai tentar o Presidente a dar-lhe mais acutilância, logo em suscitar a atenção, através de recados, inuendos, sugestões ou críticas veladas. Ocasionalmente fará críticas mais abertas, ou opor-se-á frontalmente, em particular se se tratar de um tema populista. Os momentos em que mais se aproximou do Governo já estão no passado, até porque o Presidente encontrou naquilo a que se chama os “afectos”, que de afectos tem pouco, uma fórmula de aumentar tanto a sua popularidade que ela lhe serve de poder em matérias em que constitucionalmente não se devia meter.
O Presidente, que é o zelador dos efeitos dos incêndios, que é o zelador das “regras europeias” (onde não tem tido muito que zelar), está  a preparar-se para ser o zelador de tudo aquilo que entende ser “eleitoralista”, o que claramente está longe de ser uma função presidencial, porque implica opções de conteúdo que são eminentemente governativas.

Não é por acaso que usei várias vezes neste artigo palavras como “usura”, “desgaste”, “cansaço”. Trata-se em todos os casos a velha regra de que, nada mudando, o “tempo come as coisas”, tempus edax rerum. É por isso que estamos encalhados, num país que não pode ter as políticas de que precisa, onde as forças políticas ou são subservientes ao exterior, ou olham apenas para o seu umbigo, onde todos os dias a qualidade da governação e da oposição é menor, onde aumenta o ruído em correlação directa com a diminuição da substância. É mau para os costumes e péssimo para o futuro, mas é o que é.

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