Um ano que começa, menino, natural,
simples, brincalhão, talvez. E, em homenagem ao facto, envia-me João Sena
o poema de Alberto Caeiro sobre um Menino Jesus isento de manipulações teológicas,
criança inocente, e amiga de brincar aos jogos dos outros meninos malandros,
que rebolam na erva e apedrejam os burros. Um Menino como o descreve Caeiro,
desligado de efabulação teológica antinatural, segundo o seu ateísmo e
racionalidade próprios, de uma educação não superior à instrução primária, mas
uma reflexão e uma sensibilidade demonstrativas de que Caeiro é, na realidade,
o Mestre dos outros heterónimos de Pessoa. Um poema, afinal, crítico da efabulação
religiosa de valor mítico, inaceitável para um espírito antimetafísico, como é
o de Alberto Caeiro.
Mas, apesar do simbolismo de
inocência aplicado ao Jesus Cristo, tornado menino, do sonho do poeta “guardador
de rebanhos”, o caso do ano que começa, como os anteriores, em nada se parece
com o retrato de inocência daquele. Na realidade, cada ano que se inicia traz
consigo o estigma de danos ou bondades que o envelhecimento natural lhe não vai poupar, mau grado os votos que cada seu início merece. Natural é o pessimismo,
mas a intenção da oferenda do poema, por email, não deixa de ser uma gentil ideia.
Será sempre um bonito começo de
ano, no meu blog.
[VIII – Num meio-dia
de fim de primavera]
Num meio-dia de fim de
primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se
pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de
longe. Tinha fugido do céu. Era nosso de mais para fingir De segunda pessoa da
trindade. No céu era tudo falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e
pedras. No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar
outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda
à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um
trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações. Nem sequer o deixavam
ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas – Um velho
chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma
pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque não era do mundo nem era
pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe, E
nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justiça! Um dia
que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos
milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha
fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro
criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E
serve de modelo às outras. Depois fugiu para o sol E desceu pelo primeiro raio
que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e
natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as
flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos
pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigas Que vão em ranchos
pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias. A mim
ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas
que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as
tem na mão E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um
velho estúpido e doente, Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências. A
Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo
coça-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no céu é
estúpido como a Igreja Católica. Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas
que criou – «Se é que ele as criou, do que duvido» –. «Ele diz, por exemplo,
que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem
seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres». E
depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braços E
eu levo-o ao colo para casa. ………………………………………………… Ele mora comigo na minha casa
a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano
que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei
com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana
que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre
comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança Nova que
habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos
os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso
segredo comum Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E
que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direcção do meu
olhar é o seu dedo apontando. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com
o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos
e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer
brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a
um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por
isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe
histórias das coisas só dos homens E ele sorri, porque tudo é incrível. Ri dos
reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos
comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos mares. Porque ele sabe
que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com
a luz do sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos os muros
caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E
deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo
materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de
noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em
cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono.
……………………………………… Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e
humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu
tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer
dia Que tu sabes qual é. ……………………………………… Esta é a história do meu Menino Jesus.
Porque razão que se perceba Não há-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto
os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam?
Alberto Caeiro. «O Guardador de Rebanhos»
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