domingo, 28 de janeiro de 2018

Ai como é diferente o amor em Portugal


Lá fora, as coisas fazem-se em meio de espectáculos de arte, prova de um povo consistente e rico, que pode reivindicar troçando e divertindo-se, usando um clima presidencial aparentemente detestado, para se lançar em inesperado ataque a um fenómeno que é de todos os tempos, mas a que o novo estatuto de autonomia feminina impõe extinção, com o exagero próprio, contendo algum cinismo e insinceridade, que Alberto Gonçalves magistralmente denuncia tratando o tema ao seu modo rebarbativo e poderoso de disciplina mental e conhecimento humano.
Cá dentro temos o amor-simpatia, da hábil estratégia do actual presidente, num país às voltas com o seu estatuto de pobreza, presidente que se faz amar para efeitos de manipulação um tanto cínica dos jogos do poder, contendo algo também de falsidade e artifício, na igualmente magistral explicação de Pacheco Pereira, a quem o espavento da parolice portuguesa naturalmente indigna.
Duas ou três coisas sobre sexo e Hollywood
OBSERVADOR, 27/1/2018
No instante em que escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, cada homem é suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou pensamentos pecaminosos face à sua semelhante.
Não aprecio lengalengas que tratam os homens e as mulheres como duas entidades perfeitamente distintas entre si e perfeitamente idênticas dentro de si. Reduzir o carácter de uma pessoa ou, no jargão em voga, a “identidade” ao “género” é recurso de adolescentes ou charlatães com falta de assunto. Conversas do estilo “os homens são de Marte, as mulheres de Vénus” dão vontade de enviar alguém para Saturno ou para o raio que o/a parta. E o movimento #MeToo é uma espécie de consagração desse tique enervante.
Há meses, Hollywood descobriu que certos cavalheiros do “meio” abusavam do respectivo poder para se aliviarem sexualmente com as senhoras que se punham, ou eram postas, a jeito. Antes tarde do que nunca. Pelo menos desde 1921, quando o então popularíssimo “Fatty” Arbuckle foi acusado de esventrar uma aspirante a actriz com uma garrafa de Coca-Cola, a indústria do cinema é fértil em animação de bastidores. Sob a histeria punitiva dos “media”, Arbuckle viu-se julgado, depois ilibado, e por fim profissionalmente arruinado.
No clima actual, o julgamento é imediato mas o desfecho é similar. Basta que X, soluçante, afirme ter visto o pénis de Y nos idos de 1992 para que Y seja responsável por perversões inomináveis e banido da sociedade decente. Não importa que, no mundo das fitas e no mundo cá fora, as matérias sexuais se mostrem particularmente pródigas em alegações falsas. O berreiro decidiu, está decidido: a necessidade de provas é um pechisbeque dispensável, o tipo de atitude que costuma inspirar belos episódios. No processo, quase no sentido kafkiano do termo, destroem-se vidas e carreiras. Por reflexo, lamento todos os inocentes. Por puro egoísmo de espectador, e por ser amigo de um amigo, lamento Louis C.K.
É plausível que haja violadores autênticos, a pedir penas sociais e judiciais sortidas. O chato é que, sem surpresas, muitas das mais empenhadas militantes da inquisição em curso conviveram jovialmente durante anos com muitos dos mais empenhados abusadores do ramo. Ao longo de décadas, os múltiplos talentos de Roman Polanski suscitaram apenas indiferença. E a sra. Meryl Streep, a figura que melhor representa o ridículo de Hollywood e, talvez, do Ocidente, manteve longa e frutuosa amizade com Harvey Weinstein, que hoje é, a acreditar nos “media” (eu sei, eu sei), o Demónio em forma de gente. Aparentemente, as proezas lúbricas do sr. Weinstein pertenciam ao domínio público e só se tornaram condenáveis no momento em que a condenação se converteu num espasmo colectivo e obrigatório.
Para cúmulo, no espasmo vale tudo e confunde-se tudo. Confunde-se estupros com festinhas no ombro, chantagens com piropos, violência com engates e, principalmente, mulheres que foram abusadas de facto com mulheres que fingem ter sido abusadas de modo a não perderem lugar na plateia dos linchamentos. É evidente que, ao valorizar-se vítimas imaginárias de crimes imaginários, acaba-se a desvalorizar-se vítimas reais de crimes medonhos. E acaba-se a colaborar no crime.
No instante em que escrevo, arriscando a ultrapassagem pelos acontecimentos, a situação é a seguinte: cada homem é suspeito, e provavelmente culpado, de praticar acções ou no mínimo pensamentos pecaminosos face à sua semelhante. A caça aos bruxos decretada pelas celebridades espalha-se pela América inteira e, alimentada por relatos sem confirmação, arrasa a título preventivo inúmeras criaturas. Vozes progressistas exigem a censura de filmes, livros, peças e pinturas em que a Mulher, com maiúscula, não é retratada segundo critérios específicos.
Como é que se chegou aqui, em Hollywood e no resto? A teoria divide-se. Uns sugerem a perversão (graçola não intencional) do feminismo original, que começou a exigir igualdade e termina a menorizar as pobres, ingénuas e desprotegidas fêmeas. Outros referem a progressão natural do “politicamente correcto”, agora em rédea solta rumo à demência. Há ainda os que lembram o ódio da esquerda à masculinidade, a tradição moralista do marxismo e diagnósticos assim discutíveis.
Se me permitem (que remédio), apresento, assaz sumariamente, a minha tese. Um pedacinho da história da humanidade é a história da repressão sexual, que antes de ser um produto das religiões é um produto da natureza humana. Mesmo sem a crença no divino, o homem – e a mulher, acrescente-se para fugir a equívocos – haveria sempre de arranjar maneira de crer no gozo em proibir o gozo alheio, na cama e onde calha. Não é a religião que tenta impedir-nos de comer sal ou bolachas. A vontade de limitar “excessos” paira por aí, à espera dos zelotas que a transformem na sua “causa”. Em Hollywood, território propenso a tarados de orientações várias, encontrou imensos.
Notas de rodapé
1. Consta que, este ano, a “taxa do audiovisual” aumentarão 6%, agravando a conta da luz. É uma óptima notícia por dois motivos. Por um lado, porque confirma a prosperidade que tomou conta dos portugueses, hoje tão prósperos que podem suportar sem dramas, e até com certo gosto, qualquer dos inúmeros aumentos de impostos que em boa hora lhes despejam em cima. Por outro lado, porque permite aos cidadãos patrocinarem com verbas crescentes uma instituição como a RTP e adjacências, instituições cujo mérito está escarrapachado nas centenas de milhões que anualmente nos custam. Não consumo a RTP e não conheço quem o faça, mas não me custa nada, excepto uns euros por mês, dispensar uns euros por mês a fim de sustentar as maravilhas que sem dúvida por lá se cometem, vulgo o “serviço público”. Não o veria nem que me pagassem. Como não vejo, pago eu. Faz sentido.
2. E aquilo do sr. Lula? Alguém acredita que um socialista possa ter delapidado em diversos milhões o povo que tanto adora? Alguém acredita que um ex-sindicalista possa ser um rematado ladrão? Alguém acredita que o homem que cruzou o oceano para apresentar uma obra de José Sócrates possa estar no centro de um dos maiores esquemas de corrupção que o mundo conheceu? Eu não acredito. Para mim, é golpe.

OPINIÃO
Marcelo no seu espelho de selfies
Mesmo a contragosto de 80% dos portugueses que “amam” Marcelo, convém lembrar que a essência da democracia não é a popularidade, em particular nestes tempos tablóides.
José Pacheco Pereira
Público, 27 de Janeiro de 2018
Os ciclos de amor e desamor políticos com o Presidente da República são isso mesmo, ciclos. Até aos incêndios e as reprimendas públicas que fez ao Governo, o Presidente era detestado à direita, que via nele uma muleta essencial da “geringonça”, e era afavelmente tolerado pela esquerda, que o via como inesperado aliado. Depois dos incêndios, passou a ser amado pela direita a tal ponto que foi a direita portuguesa a principal força “comemorativa” dos seus dois anos de Presidência. Antes via nele uma força perversa que funcionava atrás de António Costa por ódio a Passos Coelho, agora considera-o o grande disciplinador do Governo, que o impede de se deitar nos braços malditos do BE e do PCP.
Há depois uma terceira tese, que certamente não desagradará ao Presidente — é de que estas oscilações de simpatias e antipatias revelam a independência do seu mandato, nem dependente da esquerda, que governa, nem da direita, que é oposição. E, em anexo, uma quarta tese, muito vocal nos “homens do Presidente” que são comentadores em prime time, de que a sua enorme popularidade lhe dá uma força política própria, que o coloca por cima dos partidos e que em última instância lhe permite fazer literalmente o que quiser. Quem manda no país é ele, em união directa com o povo sem intermediários, que faz do Presidente o primeiro dirigente político genuinamente “popular” de há muito tempo a esta parte. Por último, uma humilde e solitária quinta tese, a minha, é de que nada disto é o que é, e apenas “parece” ser, porque não há verdadeiro escrutínio dos actos presidenciais e do seu significado e o Presidente, assim solto das amarras da crítica e da razão, faz uma política própria que tem aspectos positivos, mas também aspectos negativos e alguns mesmo mais do que negativos — perigosos.
Marcelo Rebelo de Sousa ganhou a Presidência por uma combinação de méritos próprios, uma intensa campanha conduzida na e pela comunicação social, por ele ser “um deles”, e uma conjuntura de cansaços e esperanças que teve o seu apogeu como momento de viragem em 2015 e lhe deu um país politicamente estável. Como já disse e repito, Marcelo não seria o Presidente que é sem ter por detrás uma conjuntura que todos imaginavam como altamente instável, mas que se revelou solidamente estável: a aliança política do PS com o BE e o PCP e mesmo o PAN. Pela primeira vez, havia uma alternativa à esquerda que podia competir com a tradicional aliança PSD-CDS, este grupo de partidos que funcionava como uma “frente de rejeição” do PAF, mudava a realidade nacional, pondo a direita longe de poder governar sem ter maioria absoluta. O risco de tal solução para todos envolvidos gerava uma moral de resistência, que hoje está já um pouco esbatida, mas que permitia assegurar que seriam ultrapassadas todas as dificuldades que poderiam pôr em causa a solução de governo.
Cavaco Silva fez tudo para que tal solução não fosse possível, Marcelo acolheu-a como favorável a uma estabilidade política de que ele faria parte e cujos frutos seria capaz, como foi, de recolher. Já era evidente na campanha que o terreno que desejava para a sua presidência era o da estabilidade política, e António Costa era o único que lho podia dar. Quando os primeiros resultados económicos favoráveis começaram a surgir, era ouro sobre azul e a colaboração entre Marcelo e Costa correspondia a uma respiração natural que irritava profundamente o PSD do Diabo.
Marcelo começou a ser o Presidente dos afectos, dos abraços, dos beijos, das selfies com enorme sucesso. Antes havia antipatia, quer pelo anterior Presidente, quer pelo Governo da troika, agora havia um período de um novo optimismo que precisava de um símbolo. O “povo” tinha um enorme cansaço, recusa e hostilidade para com Cavaco Silva, que faria de um qualquer seu sucessor que sorrisse uma vez por mês um génio de afabilidade. Marcelo sorriu quinhentas vezes por dia e conquistou o país. Mas a história não ficou por aí, porque ele sabe melhor do que ninguém que beijos, abraços e selfies só dão poder político se houver um adversário, se forem contra alguém. Não podia haver na cena política portuguesa dois optimistas, por isso passou a haver um que era “irritantemente optimista”, António Costa, e outro que era o príncipe dos afectos, sempre do lado do “povo” contra os poderosos, que é quem o “povo” quer sempre ao seu lado.
A tragédia dos incêndios foi o que mudou tudo. E mesmo que não apareça nas sondagens, mudou mesmo tudo. Não estou a dizer que o Presidente “usou” a tragédia para encontrar o contraponto que precisava para transformar os beijos, abraços e selfies em poder político duro — estou convencido que nos fogos no essencial a postura de Marcelo foi genuína e sincera; o que acontece é que a atitude do Presidente foi a certa na tragédia e a de Costa e do Governo a errada. E, se as coisas tivessem ficado por aí, o Presidente recolhia os méritos de uma vez por todas ter usado a sua personalidade e proximidade para sarar feridas, e o Governo recebia o demérito através de uma quebra do estado de graça que potenciará sempre qualquer coisa negativa que lhe aconteça. Mas a partir daí Marcelo passou a comportar-se como proprietário da dor dos portugueses, afirmando um poder político que extravasa as funções presidenciais. Assumiu comportamentos que são populistas — o que nele não era novidade, já os tinha tido como comentador — e passou a ter um aproveitamento pessoal dos beijos, abraços e selfies. Tudo isto já lá estava antes? Já, mas passou a funcionar como um contraponto de poder que é negativo para a democracia portuguesa, mais do que para o Governo.
Esses aspectos negativos são vários. O Presidente faz um contínuo meta-discurso sobre tudo o que acontece, seja na governação, seja na vida partidária, seja na Justiça, seja nas questões europeias, seja na cultura e, se esse metadiscurso era visto de forma benévola como a dificuldade de Marcelo-Presidente deixar de ser Marcelo-comentador, hoje é sujeito a uma interpretação que procura (e encontra) distanciações e reservas face aos outros poderes, seja o executivo, seja o legislativo. Desde sempre critiquei essa pletora verbal, porque desgastava o poder da palavra presidencial para quando fosse necessária, mas hoje está-se noutro patamar e esse mesmo metadiscurso aparece agora como um conjunto de prevenções, de sinais, de avisos que, não sendo novo nos discursos dos anteriores presidentes, no caso de Marcelo ganha outra amplitude, porque vem mais em continuidade do que foi o seu discurso de comentador de décadas conhecido pelo seu cinismo, a propensão para a intriga e mesmo ajustes de contas nas antipatias próprias. Uma espécie de amnésia colectiva esquece que esta era a “imagem” de Marcelo antes de ser Presidente, e, se se pode mudar, nunca se muda tanto.
E o que torna perigoso esse processo é que, em vez de valores de audiências, hoje temos uma base muito mais complexa que é a da “popularidade” política pessoal e intransmissível. Numa altura em que as democracias estão sujeitas ao assalto populista, temos um presidente que não se coíbe de usar as armas dos políticos populistas modernos, feitos pela televisão, para cultivar uma “proximidade” cujo sucesso é sempre ser “contra” alguma coisa.
Os gregos antigos não se caracterizavam por matar por razões políticas. Os poucos assassinatos políticos ocorridos na Grécia fazem da Atenas democrática uma excepção quase única na história antiga e moderna. Mas um dos instrumentos principais da democracia ateniense, a expulsão da cidade, era usado contra todos os que pareciam ser muito “populares”, mesmo tratando-se de generais vitoriosos. Os atenienses, nessa experiência também única, que foi a democracia antiga, temiam o efeito para a saúde da sua democracia da popularidade, porque a consideravam perigosa para o poder dos cidadãos que na colina do Pnyx se reuniam e votavam.
Mesmo a contragosto de 80% dos portugueses que “amam” Marcelo, convém lembrar que a essência da democracia não é a popularidade, em particular nestes tempos tablóides.


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