quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Preocupações fugazes


Como sempre impecável, Clara Ferreira Alves, na transposição dos seus descritivos e dos seus considerandos, impregnados do brilho das suas leituras, das suas viagens, das suas experiências vividas. Com ela viajamos nos espaços geográficos, nos espaços culturais do passado como do presente, nos espaços humanos responsáveis pelo seu desprezo superior ou pela preocupação que com ela sentimos e há muito comentamos também, na modéstia do nosso próprio espaço terreno, que as contingências da vida e dos hábitos tranquilos de gáudio calaceiro, de um carpe diem limitado, mas apetrechado com o telemóvel para o eventual contacto distante, banalizam.
É aterrador, de facto, o panorama actual entre os jovens, sobretudo, solitários ou em grupo, vergados sobre o aparelhozinho dos seus contactos, ou dos seus jogos, na mais absoluta dependência e fuga da realidade em seu redor. Clara Ferreira Alves descreve-o dramaticamente, em abundância de dados e comparações com outras dependências sociais anteriores – tabaco ou drogas – mostrando como a primeira lhes é superior em desumanização e dimensão numérica.
Mas há requinte, contudo, entre esses jovens chineses amorfos e bem vestidos, viajando pelo mundo. Os nossos viajantes finalistas, que dantes se limitavam aos finalistas de cursos superiores e agora cada vez mais antecipam as suas potencialidades viageiras, talvez também como propósito de alargamento cultural - devemos ser optimistas - cometem selvajarias e desacatos, nos sítios para onde vão, como já foi assinalado. Se levarem os telemóveis da sua curtição e alheamento, talvez se abstraiam da pateguice vergonhosa de causar danos graves nos sítios onde se instalam, finalistas principiantes – ou sem princípios. Há ainda os que se fazem explodir, em actos de terrorismo, também manipulados, na perversão de princípios radicalistas aterradores. Entre uns e outros vá o diabo e escolha. De resto, o que aí vem de robotização e inteligência artificial, parece ainda mais horroroso, em termos de desumanização e monstruosidade artificiais. E também há a seca, mais a desertificação, anunciadas para breve… Tudo se desvaloriza, graças ao engenho humano, carrasco da humanidade, embora de aparência benfeitora. Daí que a sociedade dos aparelhos escravizantes do homem tem o seu prazo, superado por outros quaisquer.

Detox digital
O barco aproximava-se de Delos, uma das ilhas Cíclades no Mar Egeu. O sol prateava o mar azul da Grécia e o barco tinha poucos passageiros. O país estava no apogeu da tragédia humanitária durante a austeridade, composta pela instabilidade política. Delos, o lugar do santuário de Apolo, cerca de 3,5 quilómetros quadrados de esplendor da Antiguidade, estava entregue à secura das silvas e aos lagartos, víboras e insetos que planavam sobre o rosto das estátuas desfiguradas pelo tempo. E às aves marinhas que cirandavam livres de humanos. O museu estava meio fechado, não havia guias nem turistas. Era o tempo perfeito para apreciar Delos. Para admirar a harmonia clássica do berço de Apolo e Artemis, da sede da Liga de Delos. É um lugar mitológico e arqueológico sem paralelo. Uma pequena ilha que, pela sua importância comercial e política se tornou um depósito de tesouros e edifícios. O barco atracou. Além de mim, um grupo de jovens chineses, mais raparigas do que rapazes. Bem vestidos. Durante a viagem entre Mykonos e a ilha nunca olharam o céu ou o mar. Estavam afocinhados nos telemóveis trocando mensagens com o polegar oponível. Desembarcámos. Olharam em volta com enorme indiferença, maçados por não haver guias, e continuaram afocinhados nos telemóveis. Por curiosidade, andei com eles durante uns minutos, até perceber que não tencionavam conhecer Delos. Foram até ao majestoso Terraço dos Leões, tiraram umas fotografias deles com os telemóveis. Não foram à casa do Tridente, ou à de Dionysos, à dos Golfinhos ou à das Máscaras, à de Cleópatra ou a do Lago. Não viram o Teatro, a Ágora dos Italianos, a Via Sagrada ou o Templo de Ísis. Não contemplaram os mosaicos. Ficaram no embarcadouro, à espera do barco da volta, ensimesmados. Desistiram de saber fosse o que fosse sobre Delos. Consegui a abertura do museu, por um encarregado que não recebia salário do Ministério da Cultura há meses. No embarcadouro, os chineses pastavam à minha espera, irritados. Afocinhados nos telemóveis. Na viagem de volta, repetiram as mensagens com polegares oponíveis e tiraram selfies e mais fotografias uns aos outros.
Sabe-se que existem na China centros de desintoxicação digital. Os jovens viciados em écrans de computador e videojogos, sobrecarregados por horas e horas de saturação digital com prejuízo da vida e da saúde, são coagidos a frequentar campos de concentração onde são sujeitos a privação. O sofrimento da privação é, consta, pior do que o da toxicodependência e as tentativas de suicídio são normais. Na prática, esta gente desistiu de viver dentro do mundo real e apenas se relaciona de modo virtual. O modelo chinês de desintoxicação não se caracteriza pela subtileza ou a compaixão e os internados comportam-se, ou são obrigados a comportarem-se, como prisioneiros de um gulag. O problema consiste em retirá-los para sempre do vício porque, uma vez libertados, a solicitação digital é omnipresente e não proibida e regressam à dependência. Esta gente desistiu de viver, simplesmente. Limitam-se às relações desumanizadas pela tecnologia.
Se pensam que estamos a salvo disto no nosso belo mundo europeu, esqueçam. Basta olhar em volta e ver como as pessoas estão umas com as outras nos cafés e restaurantes. Cada um olha para o seu telemóvel e só interage com o outro para mostrar algo no ecrã. O meio é a mensagem e a perversão que isto introduz nas relações humanas é absoluta. Não se trata apenas da selfie e do post, é um mundo mediatizado através da informação que escorre da maquineta. Quando nos asseguram que a tecnologia é amiga da humanidade não sabem o que dizem. Nem toda a tecnologia é “amiga da humanidade”. A tecnologia é neutra. E gananciosa e monopolista. Do mesmo modo que os cigarros, nos anos 50, eram considerados símbolos de promoção social e excelentes tónicos físicos e psicológicos, um dia ficaremos a conhecer os danos da luz azul e da tecnologia digital para os nossos cérebros. Que o algoritmo da Google está a destruir a memória humana e a tornar-nos mais estúpidos não tenho dúvidas. Stupid people com smartphones. Há dados científicos que o provam. E que os telemóveis estão concebidos para provocar a dependência extrema nos súbditos, também não tenho dúvidas. Tal como a nicotina e as drogas foram dissimuladas nos cigarros para promoverem o vício secretamente, um truque das tabaqueiras que só veio a ser descoberto dezenas de anos mais tarde através de um denunciante, um dia viremos a concluir que a intoxicação tecnológica está a dar cabo da nossa fisiologia e da nossa humanidade. E da filosofia a que chamamos, bem ou mal, humanista, e que é antropocêntrica. E teremos centros de rehab tecnológica.
Aquele grupinho de jovens chineses, herdeiros de uma elite endinheirada que lhes paga viagens à Europa e que lhes compre malinhas Chanel e Gucci, conseguiu olhar para o esplendor de Delos sem nada ver. Ou compreender. Se é este o admirável mundo do futuro, dirigido por quem não sabe distinguir Apolo da Apple, prefiro ficar no passado. Nos livros de papel, nas estátuas de pedra, nas telas a óleo, nas partituras clássicos-
Os novos bárbaros estão no meio de Roma.



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