Como sempre impecável, Clara
Ferreira Alves, na transposição dos seus descritivos e dos seus
considerandos, impregnados do brilho das suas leituras, das suas viagens, das
suas experiências vividas. Com ela viajamos nos espaços geográficos, nos espaços
culturais do passado como do presente, nos espaços humanos responsáveis pelo seu
desprezo superior ou pela preocupação que com ela sentimos e há muito
comentamos também, na modéstia do nosso próprio espaço terreno, que as
contingências da vida e dos hábitos tranquilos de gáudio calaceiro, de um carpe
diem limitado, mas apetrechado com o telemóvel para o eventual contacto
distante, banalizam.
É aterrador, de facto, o
panorama actual entre os jovens, sobretudo, solitários ou em grupo, vergados
sobre o aparelhozinho dos seus contactos, ou dos seus jogos, na mais absoluta
dependência e fuga da realidade em seu redor. Clara Ferreira Alves
descreve-o dramaticamente, em abundância de dados e comparações com outras
dependências sociais anteriores – tabaco ou drogas – mostrando como a primeira
lhes é superior em desumanização e dimensão numérica.
Mas há requinte, contudo,
entre esses jovens chineses amorfos e bem vestidos, viajando pelo mundo. Os
nossos viajantes finalistas, que dantes se limitavam aos finalistas de cursos
superiores e agora cada vez mais antecipam as suas potencialidades viageiras,
talvez também como propósito de alargamento cultural - devemos ser optimistas -
cometem selvajarias e desacatos, nos sítios para onde vão, como já foi
assinalado. Se levarem os telemóveis da sua curtição e alheamento, talvez se
abstraiam da pateguice vergonhosa de causar danos graves nos sítios onde se
instalam, finalistas principiantes – ou sem princípios. Há ainda os que se
fazem explodir, em actos de terrorismo, também manipulados, na perversão de
princípios radicalistas aterradores. Entre uns e outros vá o diabo e escolha.
De resto, o que aí vem de robotização e inteligência artificial, parece ainda
mais horroroso, em termos de desumanização e monstruosidade artificiais. E
também há a seca, mais a desertificação, anunciadas para breve… Tudo se
desvaloriza, graças ao engenho humano, carrasco da humanidade, embora de
aparência benfeitora. Daí que a sociedade dos aparelhos escravizantes do homem
tem o seu prazo, superado por outros quaisquer.
Detox digital
O barco aproximava-se de
Delos, uma das ilhas Cíclades no Mar Egeu. O sol prateava o mar azul da Grécia
e o barco tinha poucos passageiros. O país estava no apogeu da tragédia
humanitária durante a austeridade, composta pela instabilidade política. Delos,
o lugar do santuário de Apolo, cerca de 3,5 quilómetros quadrados de esplendor
da Antiguidade, estava entregue à secura das silvas e aos lagartos, víboras e
insetos que planavam sobre o rosto das estátuas desfiguradas pelo tempo. E às
aves marinhas que cirandavam livres de humanos. O museu estava meio fechado,
não havia guias nem turistas. Era o tempo perfeito para apreciar Delos. Para
admirar a harmonia clássica do berço de Apolo e Artemis, da sede da Liga de
Delos. É um lugar mitológico e arqueológico sem paralelo. Uma pequena ilha que,
pela sua importância comercial e política se tornou um depósito de tesouros e
edifícios. O barco atracou. Além de mim, um grupo de jovens chineses, mais
raparigas do que rapazes. Bem vestidos. Durante a viagem entre Mykonos e a ilha
nunca olharam o céu ou o mar. Estavam afocinhados nos telemóveis trocando
mensagens com o polegar oponível. Desembarcámos. Olharam em volta com enorme
indiferença, maçados por não haver guias, e continuaram afocinhados nos
telemóveis. Por curiosidade, andei com eles durante uns minutos, até perceber
que não tencionavam conhecer Delos. Foram até ao majestoso Terraço dos Leões,
tiraram umas fotografias deles com os telemóveis. Não foram à casa do Tridente,
ou à de Dionysos, à dos Golfinhos ou à das Máscaras, à de Cleópatra ou a do
Lago. Não viram o Teatro, a Ágora dos Italianos, a Via Sagrada ou o Templo de
Ísis. Não contemplaram os mosaicos. Ficaram no embarcadouro, à espera do barco
da volta, ensimesmados. Desistiram de saber fosse o que fosse sobre Delos.
Consegui a abertura do museu, por um encarregado que não recebia salário do
Ministério da Cultura há meses. No embarcadouro, os chineses pastavam à minha
espera, irritados. Afocinhados nos telemóveis. Na viagem de volta, repetiram as
mensagens com polegares oponíveis e tiraram selfies e mais fotografias uns aos
outros.
Sabe-se que existem na
China centros de desintoxicação digital. Os jovens viciados em écrans de
computador e videojogos, sobrecarregados por horas e horas de saturação digital
com prejuízo da vida e da saúde, são coagidos a frequentar campos de
concentração onde são sujeitos a privação. O sofrimento da privação é, consta,
pior do que o da toxicodependência e as tentativas de suicídio são normais. Na
prática, esta gente desistiu de viver dentro do mundo real e apenas se
relaciona de modo virtual. O modelo chinês de desintoxicação não se caracteriza
pela subtileza ou a compaixão e os internados comportam-se, ou são obrigados a
comportarem-se, como prisioneiros de um gulag. O problema consiste em
retirá-los para sempre do vício porque, uma vez libertados, a solicitação
digital é omnipresente e não proibida e regressam à dependência. Esta gente
desistiu de viver, simplesmente. Limitam-se às relações desumanizadas pela
tecnologia.
Se pensam que estamos a
salvo disto no nosso belo mundo europeu, esqueçam. Basta olhar em volta e ver
como as pessoas estão umas com as outras nos cafés e restaurantes. Cada um olha
para o seu telemóvel e só interage com o outro para mostrar algo no ecrã. O
meio é a mensagem e a perversão que isto introduz nas relações humanas é
absoluta. Não se trata apenas da selfie e do post, é um mundo mediatizado
através da informação que escorre da maquineta. Quando nos asseguram que a
tecnologia é amiga da humanidade não sabem o que dizem. Nem toda a tecnologia é
“amiga da humanidade”. A tecnologia é neutra. E gananciosa e monopolista. Do
mesmo modo que os cigarros, nos anos 50, eram considerados símbolos de promoção
social e excelentes tónicos físicos e psicológicos, um dia ficaremos a conhecer
os danos da luz azul e da tecnologia digital para os nossos cérebros. Que o
algoritmo da Google está a destruir a memória humana e a tornar-nos mais
estúpidos não tenho dúvidas. Stupid people com smartphones. Há
dados científicos que o provam. E que os telemóveis estão concebidos para
provocar a dependência extrema nos súbditos, também não tenho dúvidas. Tal como
a nicotina e as drogas foram dissimuladas nos cigarros para promoverem o vício
secretamente, um truque das tabaqueiras que só veio a ser descoberto dezenas de
anos mais tarde através de um denunciante, um dia viremos a concluir que a
intoxicação tecnológica está a dar cabo da nossa fisiologia e da nossa
humanidade. E da filosofia a que chamamos, bem ou mal, humanista, e que é
antropocêntrica. E teremos centros de rehab tecnológica.
Aquele grupinho de jovens
chineses, herdeiros de uma elite endinheirada que lhes paga viagens à Europa e
que lhes compre malinhas Chanel e Gucci, conseguiu olhar para o esplendor de
Delos sem nada ver. Ou compreender. Se é este o admirável mundo do futuro,
dirigido por quem não sabe distinguir Apolo da Apple, prefiro ficar no passado.
Nos livros de papel, nas estátuas de pedra, nas telas a óleo, nas partituras
clássicos-
Os novos bárbaros estão no
meio de Roma.
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