quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

«Livros são papéis pintados com tinta»


Disse-o Fernando Pessoa, que muito amou os livros, mas ironizava sobre as sentenças que tantas cabeças menos ilustradas poderiam dizer ou pensar, no espaço da sua incúria educativa ou na sua liberdade preguiçosa de não querer saber ler, nem escrever, nem contar - «quanto é melhor, quando há bruma, esperar por D. Sebastião, quer venha ou não.» Mas pode significar, também, uma relativização de tudo o que se passa neste mundo do efémero.
O certo é que as coisas evoluem, dantes houve o pergaminho, e se recuarmos mais, existiram o papiro e a caverna, e a pedra da roseta. Ainda bem que existiram, porque ajudaram a esclarecer. Mas passaram. E homens houve que os interpretaram. O trabalho de Pacheco Pereira e os seus amigos, de procurarem vestígios nos papéis de outrora deve ser fascinante, e certamente que ajuda a reconstituir factos da História e adjacentes.  E lembra, sobretudo, as versões excitantes dos enredos policiais, com Sherlock Holmes e as suas pistas materiais, Hercule Poirot usando, de preferência, as suas nobres “células cinzentas” na reconstituição da verdade criminal. Mas a recolha de pistas várias para a elaboração da verdade histórica, que Pacheco Pereira justifica como de maior importância, os meios electrónicos suplantaram-na, talvez, por ora. Na velocidade em que a “mudança”, hoje, se processa, dentro em pouco estes serão desvalorizados também por outros de outra magnitude. Assustador. E injusto para o estudioso.
OPINIÃO  Para que é preciso guardar esse papel? Está tudo na Internet... Não. Não está e não é a mesma coisa
O conhecimento da história é mais rápido e profundo quando se lida com as coisas reais.
JOSÉ PACHECO PEREIRA                          PÚBLICO, 20 de Janeiro de 2018
No trabalho que eu e mais de uma centena de voluntários e amigos fazemos de recolha de documentos, objectos, imagens, recortes, etc., etc., é vulgar ouvir pessoas que desvalorizam as coisas físicas, em detrimento das suas digitalizações. Na recente campanha eleitoral autárquica era muito comum pedirmos aos candidatos e candidaturas os seus materiais e receber a resposta: “Está tudo na Internet” ou no Facebook, ou em qualquer outro suporte electrónico. E nós dizíamos: “Não, não é verdade.” E mesmo que muita coisa estivesse, muita coisa faltava. Podia haver a imagem de outdoor, mas não havia a fotografia da sua colocação numa praça ou rotunda, e escapavam t-shirts, canetas, cinzeiros, caixas de medicamentos, e chapéus (a novidade nos “brindes” da última campanha), que mostram linhas de desenvolvimento da propaganda política e do seu público, para além de não se saber o que é que tinha sido efectivamente publicado em papel, o que mostra que alguém deu relevância àquele panfleto e não a outro que apareceu apenas como entrada no Facebook. Sim, é importante ter toda a informação digitalizada disponível (ela própria mais perecível do que se imagina, como mostra o esforço do Arquivo.pt em arquivar os sites mortos), mas é igualmente importante ter a dimensão física, real e não virtual, daquilo que representa a actividade política, cultural e social, que é um retrato importante do nosso espaço público.
A seguir a dizer “Não, não está tudo na Internet”, acrescentamos: “Não é a mesma coisa.” E este segundo elemento é talvez até mais importante do que o primeiro. Na verdade, nós homens (ainda) somos uma entidade física real e não virtual. O nosso mundo depende dos nossos sentidos e do seu alcance, e o corpo humano é naturalmente imperfeito e, mesmo com os aparelhos e instrumentos que alargam os nossos sentidos, continuamos a ter um mundo que depende do que vemos e do que ouvimos e das noções de espaço e tempo de cada época. Esta última afirmação remete já para a existência de um espaço social que é uma construção histórica e cultural — não temos a mesma noção de espaço se formos europeus ou se formos chineses, os limites do público e do privado são distintos e “civilizacionais”, com o “encolhimento” actual da privacidade, e com o tempo também se passa a mesma coisa.
O relógio, o device que todos temos acoplado ao nosso corpo, seja no pulso, seja no telemóvel, molda o nosso tempo pelo tempo da indústria, que tão arduamente teve de ser “imposto” às primeiras gerações de operários industriais que vinham do campo com outro tempo, o do sol a sol. E mesmo esse tempo e esse espaço estão a sofrer nos dias de hoje uma profunda mutação com o domínio de uma sociabilidade da contínua presença (gerada pelo telemóvel e pelo software de mensagens) e pela enorme aceleração do tempo, com a hegemonia do tempo rápido induzido, por exemplo, pelos jogos de vídeo e pela prevalência por todo o lado da imagem em movimento, com um enorme efeito de desatenção e dificuldade de pensar em tempo lento, assim como a percepção obsessiva dos seus sinais na moda, na publicidade, na apologia da juventude, da novidade, da rapidez, e na ausência de tempo lento.
Voltando ao que se guarda e ao que se arquiva, “não é a mesma coisa” o analógico e o digital, o real e o virtual. Um exemplo que eu e os meus amigos recolectores conhecemos bem é o efeito poderoso do “real” sobre o virtual quando se trata de fazer uma exposição. Podemos ter um ecrã a passar filmes e imagens digitalizados, podemos ter hologramas, mas é o objecto físico, seja uma faixa com as suas dimensões gigantescas — não é fácil transmitir a noção do tamanho, a não ser... pelo tamanho — ou uma pequena escultura de cerâmica, feita na Vista Alegre, com um trabalhador esmagado pelo saco que transporta e que é uma peça de reclame dos cimentos Liz, que atrai a atenção, essa preciosa e rara qualidade.
O “diálogo”, se assim se pode chamar, entre um visitante e o material que é exposto é de natureza muito diferente, porque são duas entidades reais que se confrontam. O mesmo se passa quando restauramos um antigo copiografo e o fazemos funcionar para uma plateia de jovens que não fazem nenhuma ideia do que era escrever à máquina num stencil, corrigir os erros com verniz das unhas, saber que há coisas que não se podem fazer num stencil, como seja o excesso de sublinhados que diminuem a vida útil da folha encerada que acaba por se rasgar. Não há nenhuma virtude nem mérito em ter de fazer as coisas assim para produzir um panfleto clandestino, nem temos um átomo de nostalgia. Hoje é muito mais fácil, mais rápido e melhor com um computador, um processador de texto e uma impressora a laser, mas o conhecimento da história é mais rápido e profundo quando se lida com as coisas reais. É o mesmo com as reconstituições de batalhas mais rigorosas, muito comuns nos EUA, e o conhecimento de como se matava com arco e flecha, ou a vantagem das formações militares gregas antigas, e tudo isso depende e muito da dimensão física das coisas e da sua percepção.
E voltando ao “está tudo na Internet”, dá-se um efeito perverso de distorção da memória. Primeiro, por muita coisa que já esteja na Internet, a esmagadora maioria não está. Uma das pragas, por exemplo, do jornalismo dos nossos dias é a preguiçosa utilização dos motores de busca, ou, pior ainda, da Wikipédia, para “despachar” um artigo, deixando de fora informação preciosa porque está no arquivo de recortes do jornal, mas não em linha. Uma das coisas em que insistimos em preservar, e que “salvamos”, são os arquivos de recortes que são muito comummente deitados ao lixo. Esta redução da memória àquilo que está em linha, e mesmo assim muitas vezes mal procurado, acelera a dominância de uma memória colectiva muito curta, escassa e pobre.
E mais uma vez pode-se acrescentar: e “também não é a mesma coisa”. “Folhear” continua a ser um método mais eficaz de trabalhar com documentos, como colecções de recortes, por exemplo, em que o tempo humano da atenção e a facilidade de andar para trás e para a frente, de forma “fuzzy”, é muito eficaz para encontrarmos as coisas que não sabíamos que existiam. “Folhear” não substitui “procurar”, em que os instrumentos digitais são muito mais eficazes para informação precisa, mas adequa-se mais a investigar, ou sequer a conhecer um meio ou um contexto, que a “procura” não dá.

As ameaças à memória, a destruição acelerada dos sinais físicos da história (considera-se apenas o património monumental e mesmo assim mal), a pseudomodernidade que reduz tudo o que “existe” ao que está acessível a um motor de busca são uma praga dos nossos dias. Não é um resultado de qualquer evolução tecnológica inevitável, é um processo social e cultural que vai a par com a ascensão da nova ignorância, o predomínio da superficialidade, a crise da atenção, a adolescente obsessão do “já” e a substituição da conversação pela emissão de uma forma de apitos que dizem “estou aqui”. Eu e os meus amigos recolectores combatemos tudo isto, usando como bandeira (também nós...) o dito que a “preservação da memória do passado é uma arma da democracia do presente”. E é. Ámen. 

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