Disse-o Fernando Pessoa, que muito amou os livros, mas ironizava sobre
as sentenças que tantas cabeças menos ilustradas poderiam dizer ou pensar, no
espaço da sua incúria educativa ou na sua liberdade preguiçosa de não querer
saber ler, nem escrever, nem contar - «quanto é melhor, quando há bruma,
esperar por D. Sebastião, quer venha ou não.» Mas pode significar, também,
uma relativização de tudo o que se passa neste mundo do efémero.
O certo é que as coisas evoluem, dantes houve o pergaminho, e se recuarmos
mais, existiram o papiro e a caverna, e a pedra da roseta. Ainda bem que
existiram, porque ajudaram a esclarecer. Mas passaram. E homens houve que os
interpretaram. O trabalho de Pacheco Pereira e os seus amigos, de procurarem
vestígios nos papéis de outrora deve ser fascinante, e certamente que ajuda a
reconstituir factos da História e adjacentes. E lembra, sobretudo, as versões excitantes dos
enredos policiais, com Sherlock Holmes e as suas pistas materiais, Hercule
Poirot usando, de preferência, as suas nobres “células cinzentas” na reconstituição
da verdade criminal. Mas a recolha de pistas várias para a elaboração da
verdade histórica, que Pacheco Pereira justifica como de maior importância, os
meios electrónicos suplantaram-na, talvez, por ora. Na velocidade em que a “mudança”,
hoje, se processa, dentro em pouco estes serão desvalorizados também por outros de outra magnitude. Assustador. E injusto para o estudioso.
OPINIÃO Para
que é preciso guardar esse papel? Está tudo na Internet... Não. Não está e não
é a mesma coisa
O conhecimento da história é mais rápido e profundo quando se lida com
as coisas reais.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO, 20 de
Janeiro de 2018
No trabalho que eu e mais de uma centena de voluntários e amigos fazemos
de recolha de documentos, objectos, imagens, recortes, etc., etc., é vulgar
ouvir pessoas que desvalorizam as coisas físicas, em detrimento das suas
digitalizações. Na recente campanha eleitoral autárquica era muito comum
pedirmos aos candidatos e candidaturas os seus materiais e receber a resposta:
“Está tudo na Internet” ou no Facebook, ou em qualquer outro suporte
electrónico. E nós dizíamos: “Não, não é verdade.” E mesmo que muita coisa
estivesse, muita coisa faltava. Podia haver a imagem de outdoor, mas não havia a fotografia da sua
colocação numa praça ou rotunda, e escapavam t-shirts, canetas, cinzeiros,
caixas de medicamentos, e chapéus (a novidade nos “brindes” da última
campanha), que mostram linhas de desenvolvimento da propaganda política e do
seu público, para além de não se saber o que é que tinha sido efectivamente
publicado em papel, o que mostra que alguém deu relevância àquele panfleto e
não a outro que apareceu apenas como entrada no Facebook. Sim, é importante ter
toda a informação digitalizada disponível (ela própria mais perecível do que se
imagina, como mostra o esforço do Arquivo.pt em arquivar os sites mortos), mas
é igualmente importante ter a dimensão física, real e não virtual, daquilo que
representa a actividade política, cultural e social, que é um retrato
importante do nosso espaço público.
A seguir a dizer “Não, não está tudo na Internet”, acrescentamos: “Não é
a mesma coisa.” E este
segundo elemento é talvez até mais importante do que o primeiro. Na verdade,
nós homens (ainda) somos uma entidade física real e não virtual. O nosso
mundo depende dos nossos sentidos e do seu alcance, e o corpo humano é
naturalmente imperfeito e, mesmo com os aparelhos e instrumentos que alargam os
nossos sentidos, continuamos a ter um mundo que depende do que vemos e do
que ouvimos e das noções de espaço e tempo de cada época. Esta última
afirmação remete já para a existência de um espaço social que é uma construção
histórica e cultural — não temos a mesma noção de espaço se formos europeus
ou se formos chineses, os limites do público e do privado são distintos e
“civilizacionais”, com o “encolhimento” actual da privacidade, e com o tempo
também se passa a mesma coisa.
O relógio, o device que
todos temos acoplado ao nosso corpo, seja no pulso, seja no telemóvel, molda o
nosso tempo pelo tempo da indústria, que tão arduamente teve de ser “imposto”
às primeiras gerações de operários industriais que vinham do campo com outro
tempo, o do sol a sol. E mesmo esse tempo e esse espaço estão a sofrer nos dias
de hoje uma profunda mutação com o domínio de uma sociabilidade da contínua
presença (gerada pelo telemóvel e pelo software de mensagens) e pela
enorme aceleração do tempo, com a hegemonia do tempo rápido induzido, por
exemplo, pelos jogos de vídeo e pela prevalência por todo o lado da imagem em
movimento, com um enorme efeito de desatenção e dificuldade de pensar em tempo
lento, assim como a percepção obsessiva dos seus sinais na moda, na
publicidade, na apologia da juventude, da novidade, da rapidez, e na ausência
de tempo lento.
Voltando ao que se guarda e ao que se arquiva, “não é a mesma coisa”
o analógico e o digital, o real e o virtual. Um exemplo que eu e os
meus amigos recolectores conhecemos bem é o efeito poderoso do “real” sobre
o virtual quando se trata de fazer uma exposição. Podemos ter um
ecrã a passar filmes e imagens digitalizados, podemos ter hologramas, mas é o
objecto físico, seja uma faixa com as suas dimensões gigantescas — não é fácil
transmitir a noção do tamanho, a não ser... pelo tamanho — ou uma pequena
escultura de cerâmica, feita na Vista Alegre, com um trabalhador esmagado pelo
saco que transporta e que é uma peça de reclame dos cimentos Liz, que atrai a
atenção, essa preciosa e rara qualidade.
O “diálogo”, se assim se pode chamar, entre um visitante e o material
que é exposto é de natureza muito diferente, porque são duas entidades reais
que se confrontam. O mesmo se passa quando restauramos um antigo copiografo e o
fazemos funcionar para uma plateia de jovens que não fazem nenhuma ideia do que
era escrever à máquina num stencil, corrigir os erros com verniz das
unhas, saber que há coisas que não se podem fazer num stencil, como
seja o excesso de sublinhados que diminuem a vida útil da folha encerada que
acaba por se rasgar. Não há nenhuma virtude nem mérito em ter de fazer as
coisas assim para produzir um panfleto clandestino, nem temos um átomo de
nostalgia. Hoje é muito mais fácil, mais rápido e melhor com um computador,
um processador de texto e uma impressora a laser, mas o conhecimento da
história é mais rápido e profundo quando se lida com as coisas reais. É o mesmo
com as reconstituições de batalhas mais rigorosas, muito comuns nos EUA, e o
conhecimento de como se matava com arco e flecha, ou a vantagem das formações
militares gregas antigas, e tudo isso depende e muito da dimensão física das
coisas e da sua percepção.
E voltando ao “está tudo na Internet”, dá-se um efeito perverso de
distorção da memória. Primeiro, por muita coisa que já esteja na Internet, a
esmagadora maioria não está. Uma das pragas, por exemplo, do jornalismo
dos nossos dias é a preguiçosa utilização dos motores de busca, ou, pior ainda,
da Wikipédia, para “despachar” um artigo, deixando de fora informação preciosa
porque está no arquivo de recortes do jornal, mas não em linha. Uma das
coisas em que insistimos em preservar, e que “salvamos”, são os arquivos de
recortes que são muito comummente deitados ao lixo. Esta redução da memória
àquilo que está em linha, e mesmo assim muitas vezes mal procurado, acelera a
dominância de uma memória colectiva muito curta, escassa e pobre.
E mais uma vez pode-se acrescentar: e “também não é a mesma coisa”. “Folhear”
continua a ser um método mais eficaz de trabalhar com documentos, como
colecções de recortes, por exemplo, em que o tempo humano da atenção e a
facilidade de andar para trás e para a frente, de forma “fuzzy”, é muito eficaz
para encontrarmos as coisas que não sabíamos que existiam. “Folhear” não
substitui “procurar”, em que os instrumentos digitais são muito mais eficazes
para informação precisa, mas adequa-se mais a investigar, ou sequer a conhecer
um meio ou um contexto, que a “procura” não dá.
As ameaças à memória, a destruição acelerada dos sinais físicos da
história (considera-se apenas o património monumental e mesmo assim mal), a
pseudomodernidade que reduz tudo o que “existe” ao que está acessível a um
motor de busca são uma praga dos nossos dias. Não é um resultado de qualquer evolução
tecnológica inevitável, é um processo social e cultural que vai a par com a
ascensão da nova ignorância, o predomínio da superficialidade, a crise da
atenção, a adolescente obsessão do “já” e a substituição da conversação pela
emissão de uma forma de apitos que dizem “estou aqui”. Eu e os meus amigos recolectores combatemos
tudo isto, usando como bandeira (também nós...) o dito que a “preservação da
memória do passado é uma arma da democracia do presente”. E é. Ámen.
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