Dois textos “In Memorian”,
de diferente carisma: No primeiro, a sua autora, Maria João Avillez, presta
homenagem, na sua maneira vertical, a um amigo em quem reconheceu valores como
podem coexistir, até mesmo entre nós – a riqueza económica proveniente de
esforço, trabalho, educação, aliada a riqueza moral revelada na generosidade, decência
de comportamento e brilho próprio. No segundo, um escritor, talvez mais jovem
do que Maria João Avillez, Miguel Esteves Cardoso, homenageia, na sua
forma descontraída e paradoxal, um cantor que aprecia, de uma forma onde a
emoção rasga através de denúncias de características provocatórias nas
temáticas e músicas dos Fall, que o cantor fundou.
Manuel Vinhas, o amigo
de valor, mas perseguido julgo que pelas invejas da mesquinhez em que sempre
demos provas, e porque também ouvi falar dele, transcrevo
igualmente da Internet um texto que explicita os dados da revolta de Maria João
Avillez, da dimensão do homem e da dimensão dos seus carrascos mesquinhos, como
também a dos seus mesquinhos amigos que protegeu e o ignoraram, e tudo isso me
trouxe recordações passadas de assaltos e ocupações e destruições, numa dada
altura da nossa evolução democrática entoada pelos nossos cantores alinhados.
Mas a graça da crónica de Miguel Esteves Cardoso põe travão nessas
memórias soterradas, com o sorriso do seu humor paradoxal, enquanto me apresso
a escutar esse Mark E Smith pela Internet, o cantor cuja «música
não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam,
já sinto a falta dela. E a falta dele.»
Notícias de uns portugueses que também há
OBSERVADOR, 23/1/2018,
Os Vinhas eram dois irmãos que tinham ambos, pouco portuguezmente, a
necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas pelo país e a
fazê-las bem feitas.
1. Levei metade do almoço a convencer a filha de que a vida de seu
pai, Manuel Vinhas (1920/1977), reclamava biografia e não era a
primeira vez que eu lho dizia. Em Portugal regista-se pouco, é-se avaro com a
memória e é pena: Manuel
Vinhas foi um português de
fôlego, só há uns como ele de vez em quando. Era amigo de nossa casa onde
sempre ouvia falar dele de modo invulgar. E quando mais tarde passei a
encontrá-lo, apercebi-me da sintonia entre o que me fora descrito na
adolescência e o homem que ali estava: graça, punch, inteligência, imaginação,
trabalho. Diferença.
2. Passava-se este almoço em sábado luminoso numa casa além Tejo onde
se celebravam os noventa anos do Mário Vinhas, irmão do Manuel.
Juntaram-se amigos que Vinhas é uma marca – e antes de tudo mental – com
qualidade. Eram dois irmãos diferentes entre si mas tinham ambos, pouco
portuguesmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas
no país e a fazê-las bem. Assim de repente posso falar em agricultura,
indústria, em múltiplas empresas bem sucedidas, aqui ou em África, à mistura
com uma natural prática do bom gosto: arte moderna, livros, porcelanas,
antiguidades. Depois havia a caça mas, mais que caçadores, eram os dois
formidáveis atiradores. Tão dotado era o jovem Mário que Américo Thomaz o
levava consigo, a ele e a outro jovem igualmente dotado, para poder brilhar
diante de Franco quando convidado por este para caçar em Espanha: o almirante
ficava com a fama e o proveito, por interposto atirador. Mas duvido que ao
generalíssimo, que em pessoa recebia este terceto português, escapasse o
expediente do congénere lusitano.
O culto do desporto a que Mário Vinhas e a sua família também se
dedicaram durante décadas cobriu-os de medalhas: da água à neve, do voleibol ao
ping-pong, ganharam não sei quantos campeonatos.
Uma espécie de polivalência criativa que o dinheiro só por si jamais
explicaria (e este é um dos meus pontos neste texto.) Que seria do dinheiro sem
a marca Vinhas?
3. Mais do que ser do regime, Manuel Vinhas coincidiu
temporalmente com ele o que não é exactamente o mesmo. Avistava-se por vezes
com Salazar por causa de África, tinha amigos em todo o lado, era bem visto e
bem-vindo nas oposições onde incentivava intelectuais, artistas plásticos de
quem foi um generosíssimo e permanente mecenas, actores. Desde os mais
jovens nos recém-formados grupos independentes, (a Comuna e outros) a quem ele
ou o seu irmão cediam instalações, até Raul Solnado ou Vinicius, que lhe
devolviam a devoção que Manuel Vinhas lhes dedicava (são memoráveis algumas
histórias protagonizadas por eles em Lisboa, no Estoril, na Bahía, no Rio…)
Por uma extraordinária coincidência — e acho quer não estou a sonhar —
passei a tarde do dia 16 de Março de 1974 com o Manel Vinhas. Por puro
acaso: embora cada um pelo seu lado, ambos tínhamos ido ver uma peça (“A Ceia”)
ao teatro da Comuna justamente – fundado em 1971 por João Mota e Manuela de
Freitas, entre outros — e ao tempo instalada, por cedência de Mário Vinhas, nas
instalações da Central de Cervejas. Peça teatral onde de resto o Manuel Vinhas
já se tinha encarregue, em anteriores ocasiões, de ter levado Azeredo Perdigão,
Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, então ministro ou ex-ministro da
Educação, não me lembro. Do que me lembro foi daquela espécie de ansiedade
que a todos tingia nos bastidores, onde após a representação, se tinham reunido
alguns amigos, com o Manuel Vinhas a aparentar uma serenidade que não sentia.
Conjecturas — quem eram aqueles militares, que era aquilo?” — alegrias,
falsas alegrias, ilusões, receios. O pano caiu nos bastidores sobre a desilusão
final: o golpe das Caldas falhara. Que se seguiria?
4. Manuel Vinhas tinha paixão por Angola, era o seu
outro pulmão. Defendia a autonomia dos territórios africanos que
discutia com Salazar, o que levou a Pide a nunca se desinteressar dele –
contribuindo incansavelmente como empresário para o seu desenvolvimento
económico e social. Porventura também acreditava que quando chegasse a tal
“autonomia”, já haveria pelo menos uma rede estruturada a sustentá-la.
Um dia produziu uma cerveja que deu brado em Angola e logo outra em
Moçambique; animado, houve uma terceira no Brasil. Por lá – e por cá – os
irmãos Vinhas foram erguendo fábricas, fundaram dezenas de empresas — vidro,
cerveja, café, fruta, plástico –, criaram milhares de empregos. Mas quer em
África, quer em Portugal, sempre com a consciência da sua responsabilidade
social junto de quem com eles trabalhava e isto para resumir depressa décadas
de decente — e na altura relativamente pioneiro — procedimento patronal. Se
houve coisa que também os distinguisse foi esta.
Eram uns fazedores que acreditavam: gostavam de Portugal, tinham fé
no país, acreditaram como tantos portugueses nos amanhãs de Marcelo Caetano,
tiveram veemente esperança noutro desfecho para África. Tudo isto sem
que jamais lhes ocorresse sequer poderem ser tratados de fascistas, confundidos
nacionalistas, acusados de colonialismo quando produziam riqueza nas Áfricas,
com tanto trabalho quanto convicção de que faziam o seu melhor (e provavelmente
gerações bem abaixo das minha ignorarão que houve gente assim em Portugal se é
que lhes interessa o que estou a contar, ou sequer se me acompanham). Mas
não é por não restar já pedra sobre pedra de tudo “isto” que desistirei de
tentar reerguer algumas delas. Que “isto” é este? É a sensação de que se acha,
se pensa, se ensina, se defende que Portugal nasceu no dia 25 de Abril de 1974.
5. Neste sábado e neste lugar além Tejo festejava-se o Mário. Noventa
anos. E como se tratava “dos Vinhas” em vez de um festejo banal, discursos
fastidiosos e cantares lacrimejantes, os netos (quem sai aos seus) puseram uma
câmara de filmar frente ao avô, ligaram um gravador, fizeram perguntas em voz
off e com a ajuda de profissionais, editaram o resultado para estrear hoje.
Pelo filme, contados pela própria voz fatigada do Mário Vinhas e
ilustrados com nomes e histórias, passaram vários Portugal, cada um deixando a
pairar a sua quota parte de peso e memória, festa e melancolia, desastres e
feitos: o Portugal ainda do império, o da revolução; o da transição democrática
liderada por outro Mário, o Soares. E o Portugal de hoje, estabilizado e
europeu. Viagem de sabor agridoce.
6. Manuel Vinhas morreu cedo (56 anos) num hospital
da Bahía. Exilara-se no Brasil, meses após o 25 de Abril de 74. Foi maltratado,
magoado por gente que prezava, provou o sabor da desilusão, inversamente
proporcional à ilusão que tivera. Poisou nalguns países europeus, vindo a
desaguar no Rio de Janeiro e depois, Salvador da Bahía. Foi lá que escreveu um livro
triste. (Ter-se-á porventura esquecido que não se deve confiar por aí além na
natureza humana.)
Mário Vinhas está vivo e bem vivo. Louva-se-lhe a memória e
agradece-se-lhe o culto da amizade. O primeiro valeu muito a pena. O segundo
ainda vale.
Da Internet:
(Foi o empresário mais espiado
durante o Estado Novo, mas o 25 de Abril também não lhe deu tréguas. Milionário
dedicado ao fabrico de cervejas, Manuel Vinhas foi também um mecenas
irrepreensível. Protegeu poetas e pintores, mas na hora da verdade só Luiz
Pacheco o defendeu.
Em Angola, tinha a cerveja
Cuca, em Portugal a Sagres, a Skol, no Brasil, e a Laurentina, em Moçambique.
Detentor de um grande grupo económico que em África se alargava à
agro-pecuária, transportes e comunicação social, foi um dos menos convencionais
empresários do pré-25 de Abril. Mecenas irrepreensível para artistas como Luiz
Pacheco, que escreveu certa vez sobre Vinhas: "Do mecenas Manuel
Vinhas falo pelo que me toca. Durante anos, mais de dez, auxiliou-me em
dinheiros, renda da casa pontualmente paga, bolsa de estudos em livros, máquina
de escrever. Sem me conhecer pessoalmente, apenas alertado para a minha difícil
situação económica por um amigo comum. Nunca tive nem creio que venha a ter
mecenas tão delicado e escrupuloso." Apoiou ainda Júlio Pomar, Ary
dos Santos e Cesariny e financiou a construção do Teatro Villaret.
Manuel Carvalho Brito das
Vinhas nasceu em Lisboa em 1925. Filho de Francisco Vinhas e de Luísa Carvalho,
descendia de uma família com negócios ligados à indústria das bebidas: águas,
vinhos e cervejas.
Com o seu irmão Mário Vinhas, reconstruiu
na década de 60 a coudelaria tradicional da herdade do Zambujal, mediante a
aquisição da eguada de João Coimbra.
Uma herdade onde estiveram a
caçar a convite da família os condes de Barcelona, os duques de Windsor e o
casal Patiño. Hoje em dia, os Vinhas continuam a receber nomes grandes da alta
sociedade como o príncipe Ernst de Hannover e a sua mulher, Carolina do Mónaco.
Manuel Vinhas viveu a maior
parte da sua vida em Angola, onde a PIDE o vigiou atentamente. Os problemas
políticos começaram quando publicou um pequeno livro chamado Para Um diálogo
sobre Angola. Foi acusado de todos os impropérios. Diziam que era colaborador
do MPLA e que estabelecia encontros com facções revolucionárias em
Leopoldville.
Como revelaram Filipe
Fernandes e Luís Villalobos no livro Negócios Vigiados, Manuel Vinhas foi o
empresário português mais vigiado de sempre, apesar de se ter casado com Concha
Bustorff Silva, filha de um colaborador de Salazar. A 13 de Março de 1963 foi
impedido pela PIDE de embarcar para Copenhaga. Nessa altura, foram apreendidos
400 exemplares da 2.ª edição do seu livro Para Um Diálogo sobre Angola.
"A vigilância de Manuel
Vinhas pela PIDE começou em 1961 e foi intensa ao longo da década de 1960, e
culmina com a informação recolhida a 25 de Agosto de 1969 quando Manuel Vinhas
recebeu na sua herdade do Zambujal os duques de Windsor e o casal Patiño para
uma festa, que, como diz o recorte de A Capital, arquivado pela PIDE-DGS, se
caracterizou pela maior discrição", lê-se em Negócios Vigiados.
Depois do 25 de Abril, a
história não foi muito diferente para Manuel Vinhas. O empresário foi
acusado de ser um dos maiores latifundiários do País, milionário sem escrúpulos
que tinha um urinol em prata revestido a veludo na sua herdade do Zambujal.
Muitos dos amigos que ajudou, nomeadamente artistas a quem deu a mão,
viraram-lhe as costas depois da revolução. Luiz Pacheco foi a excepção,
chegando a escrever o prefácio do livro que o empresário publicou no Brasil,
Profissão Exilado, onde descreveu em detalhe a perseguição de que foi alvo
pelos novos poderes instituídos.
"Milícias do Partido
Comunista assaltaram nos últimos dias de Setembro a minha residência.
Procurando-me de metralhadoras em punho, obrigando os meus filhos a saírem da
cama de madrugada, interrogando-os com ameaças, despejando garrafas de vinho,
roubando as espingardas de caça. Como não me encontraram, avisado que tinha
sido por um amigo, repetiram a visita na noite seguinte, beberam mais vinho, o
que tomei como uma homenagem ao meu critério selectivo", escreveu.
Refugiado no Brasil após o
25 de Abril, Manuel Vinhas morreu em Março de 1977 em Salvador da Baía. Hoje, a
coudelaria da herdade do Zambujal mantém-se activa e nas mãos da família
Vinhas.|
PESSOAS CULTURA ÍPSILON
CRÓNICA
Mark is dead
A música dos The Fall não era má de propósito — não
tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a
falta dele.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
Público, 25 de
Janeiro de 2018
Mark E. Smith morreu de microfone em
punho, tendo vivido toda a vida como muito bem entendeu. A imensa obra
que deixou, em que nunca se deu ao incómodo de separar o trigo do joio, dará
trabalho a gerações de exegetas.
As letras dele são
denúncias hilariantes em que ele livremente exprime a misantropia que o
animava, deliciando-se com observações de leviandades, modas e pretensões.
Mark E. Smith era um
artista extremamente original e originalmente extremista. Não se
filtrava nem diluía. O talento verbal é tão grande que lhe bastava fazer
associações livres até chegar ao fim da canção. Bastava-lhe uma embirração para
arrancar.
Ele era um Samuel
Johnson da classe trabalhadora e do Norte que adorava picar as classes
satisfeitas, a começar e acabar pelos músicos e pelos jornalistas. Era um dos
maiores críticos que já conheci.
Tudo isto faz com que
soe como um chato — e era. Não se calava. Era mais um heckler do que um
cantor. Mesmo nos primeiros concertos eu ficava sempre com a sensação que ele
estava a insultar-nos. Por sermos estudantes, por termos gabardinas compridas,
por estarmos armados em intelectuais, por gostarmos de Joy Division e de
pastis. Estavam a começar os anos 80 — mas o Mark já estava farto deles.
Os Fall são um prazer. A
música maníaca e repetitiva manteve sempre a electricidade do improviso, da
espontaneidade e da preguiça para fazer melhor. A música não era má de
propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a
falta dela. E a falta dele.
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