sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Diversidade existencial


Dois textos “In Memorian”, de diferente carisma: No primeiro, a sua autora, Maria João Avillez, presta homenagem, na sua maneira vertical, a um amigo em quem reconheceu valores como podem coexistir, até mesmo entre nós – a riqueza económica proveniente de esforço, trabalho, educação, aliada a riqueza moral revelada na generosidade, decência de comportamento e brilho próprio. No segundo, um escritor, talvez mais jovem do que Maria João Avillez, Miguel Esteves Cardoso, homenageia, na sua forma descontraída e paradoxal, um cantor que aprecia, de uma forma onde a emoção rasga através de denúncias de características provocatórias nas temáticas e músicas dos Fall, que o cantor fundou.
Manuel Vinhas, o amigo de valor, mas perseguido julgo que pelas invejas da mesquinhez em que sempre demos provas, e porque também ouvi falar dele, transcrevo igualmente da Internet um texto que explicita os dados da revolta de Maria João Avillez, da dimensão do homem e da dimensão dos seus carrascos mesquinhos, como também a dos seus mesquinhos amigos que protegeu e o ignoraram, e tudo isso me trouxe recordações passadas de assaltos e ocupações e destruições, numa dada altura da nossa evolução democrática entoada pelos nossos cantores alinhados.
Mas a graça da crónica de Miguel Esteves Cardoso põe travão nessas memórias soterradas, com o sorriso do seu humor paradoxal, enquanto me apresso a escutar esse Mark E Smith pela Internet, o cantor cuja «música não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele


Notícias de uns portugueses que também há
OBSERVADOR, 23/1/2018,
Os Vinhas eram dois irmãos que tinham ambos, pouco portuguezmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas pelo país e a fazê-las bem feitas.
1. Levei metade do almoço a convencer a filha de que a vida de seu pai, Manuel Vinhas (1920/1977), reclamava biografia e não era a primeira vez que eu lho dizia. Em Portugal regista-se pouco, é-se avaro com a memória e é pena: Manuel Vinhas foi um português de fôlego, só há uns como ele de vez em quando. Era amigo de nossa casa onde sempre ouvia falar dele de modo invulgar. E quando mais tarde passei a encontrá-lo, apercebi-me da sintonia entre o que me fora descrito na adolescência e o homem que ali estava: graça, punch, inteligência, imaginação, trabalho. Diferença.
2. Passava-se este almoço em sábado luminoso numa casa além Tejo onde se celebravam os noventa anos do Mário Vinhas, irmão do Manuel. Juntaram-se amigos que Vinhas é uma marca – e antes de tudo mental – com qualidade. Eram dois irmãos diferentes entre si mas tinham ambos, pouco portuguesmente, a necessidade da desinstalação: levaram a vida a fazer coisas no país e a fazê-las bem. Assim de repente posso falar em agricultura, indústria, em múltiplas empresas bem sucedidas, aqui ou em África, à mistura com uma natural prática do bom gosto: arte moderna, livros, porcelanas, antiguidades. Depois havia a caça mas, mais que caçadores, eram os dois formidáveis atiradores. Tão dotado era o jovem Mário que Américo Thomaz o levava consigo, a ele e a outro jovem igualmente dotado, para poder brilhar diante de Franco quando convidado por este para caçar em Espanha: o almirante ficava com a fama e o proveito, por interposto atirador. Mas duvido que ao generalíssimo, que em pessoa recebia este terceto português, escapasse o expediente do congénere lusitano.
O culto do desporto a que Mário Vinhas e a sua família também se dedicaram durante décadas cobriu-os de medalhas: da água à neve, do voleibol ao ping-pong, ganharam não sei quantos campeonatos.
Uma espécie de polivalência criativa que o dinheiro só por si jamais explicaria (e este é um dos meus pontos neste texto.) Que seria do dinheiro sem a marca Vinhas?
3. Mais do que ser do regime, Manuel Vinhas coincidiu temporalmente com ele o que não é exactamente o mesmo. Avistava-se por vezes com Salazar por causa de África, tinha amigos em todo o lado, era bem visto e bem-vindo nas oposições onde incentivava intelectuais, artistas plásticos de quem foi um generosíssimo e permanente mecenas, actores. Desde os mais jovens nos recém-formados grupos independentes, (a Comuna e outros) a quem ele ou o seu irmão cediam instalações, até Raul Solnado ou Vinicius, que lhe devolviam a devoção que Manuel Vinhas lhes dedicava (são memoráveis algumas histórias protagonizadas por eles em Lisboa, no Estoril, na Bahía, no Rio…)
Por uma extraordinária coincidência — e acho quer não estou a sonhar — passei a tarde do dia 16 de Março de 1974 com o Manel Vinhas. Por puro acaso: embora cada um pelo seu lado, ambos tínhamos ido ver uma peça (“A Ceia”) ao teatro da Comuna justamente – fundado em 1971 por João Mota e Manuela de Freitas, entre outros — e ao tempo instalada, por cedência de Mário Vinhas, nas instalações da Central de Cervejas. Peça teatral onde de resto o Manuel Vinhas já se tinha encarregue, em anteriores ocasiões, de ter levado Azeredo Perdigão, Agostinho da Silva, José Hermano Saraiva, então ministro ou ex-ministro da Educação, não me lembro. Do que me lembro foi daquela espécie de ansiedade que a todos tingia nos bastidores, onde após a representação, se tinham reunido alguns amigos, com o Manuel Vinhas a aparentar uma serenidade que não sentia.
Conjecturas — quem eram aqueles militares, que era aquilo?” — alegrias, falsas alegrias, ilusões, receios. O pano caiu nos bastidores sobre a desilusão final: o golpe das Caldas falhara. Que se seguiria?
4Manuel Vinhas tinha paixão por Angola, era o seu outro pulmão. Defendia a autonomia dos territórios africanos que discutia com Salazar, o que levou a Pide a nunca se desinteressar dele – contribuindo incansavelmente como empresário para o seu desenvolvimento económico e social. Porventura também acreditava que quando chegasse a tal “autonomia”, já haveria pelo menos uma rede estruturada a sustentá-la.
Um dia produziu uma cerveja que deu brado em Angola e logo outra em Moçambique; animado, houve uma terceira no Brasil. Por lá – e por cá – os irmãos Vinhas foram erguendo fábricas, fundaram dezenas de empresas — vidro, cerveja, café, fruta, plástico –, criaram milhares de empregos. Mas quer em África, quer em Portugal, sempre com a consciência da sua responsabilidade social junto de quem com eles trabalhava e isto para resumir depressa décadas de decente — e na altura relativamente pioneiro — procedimento patronal. Se houve coisa que também os distinguisse foi esta.
Eram uns fazedores que acreditavam: gostavam de Portugal, tinham fé no país, acreditaram como tantos portugueses nos amanhãs de Marcelo Caetano, tiveram veemente esperança noutro desfecho para África. Tudo isto sem que jamais lhes ocorresse sequer poderem ser tratados de fascistas, confundidos nacionalistas, acusados de colonialismo quando produziam riqueza nas Áfricas, com tanto trabalho quanto convicção de que faziam o seu melhor (e provavelmente gerações bem abaixo das minha ignorarão que houve gente assim em Portugal se é que lhes interessa o que estou a contar, ou sequer se me acompanham). Mas não é por não restar já pedra sobre pedra de tudo “isto” que desistirei de tentar reerguer algumas delas. Que “isto” é este? É a sensação de que se acha, se pensa, se ensina, se defende que Portugal nasceu no dia 25 de Abril de 1974.
5. Neste sábado e neste lugar além Tejo festejava-se o Mário. Noventa anos. E como se tratava “dos Vinhas” em vez de um festejo banal, discursos fastidiosos e cantares lacrimejantes, os netos (quem sai aos seus) puseram uma câmara de filmar frente ao avô, ligaram um gravador, fizeram perguntas em voz off e com a ajuda de profissionais, editaram o resultado para estrear hoje.
Pelo filme, contados pela própria voz fatigada do Mário Vinhas e ilustrados com nomes e histórias, passaram vários Portugal, cada um deixando a pairar a sua quota parte de peso e memória, festa e melancolia, desastres e feitos: o Portugal ainda do império, o da revolução; o da transição democrática liderada por outro Mário, o Soares. E o Portugal de hoje, estabilizado e europeu. Viagem de sabor agridoce.
6. Manuel Vinhas morreu cedo (56 anos) num hospital da Bahía. Exilara-se no Brasil, meses após o 25 de Abril de 74. Foi maltratado, magoado por gente que prezava, provou o sabor da desilusão, inversamente proporcional à ilusão que tivera. Poisou nalguns países europeus, vindo a desaguar no Rio de Janeiro e depois, Salvador da Bahía. Foi lá que escreveu um livro triste. (Ter-se-á porventura esquecido que não se deve confiar por aí além na natureza humana.)
Mário Vinhas está vivo e bem vivo. Louva-se-lhe a memória e agradece-se-lhe o culto da amizade. O primeiro valeu muito a pena. O segundo ainda vale.


Da Internet:
(Foi o empresário mais espiado durante o Estado Novo, mas o 25 de Abril também não lhe deu tréguas. Milionário dedicado ao fabrico de cervejas, Manuel Vinhas foi também um mecenas irrepreensível. Protegeu poetas e pintores, mas na hora da verdade só Luiz Pacheco o defendeu. 
Em Angola, tinha a cerveja Cuca, em Portugal a Sagres, a Skol, no Brasil, e a Laurentina, em Moçambique. Detentor de um grande grupo económico que em África se alargava à agro-pecuária, transportes e comunicação social, foi um dos menos convencionais empresários do pré-25 de Abril. Mecenas irrepreensível para artistas como Luiz Pacheco, que escreveu certa vez sobre Vinhas: "Do mecenas Manuel Vinhas falo pelo que me toca. Durante anos, mais de dez, auxiliou-me em dinheiros, renda da casa pontualmente paga, bolsa de estudos em livros, máquina de escrever. Sem me conhecer pessoalmente, apenas alertado para a minha difícil situação económica por um amigo comum. Nunca tive nem creio que venha a ter mecenas tão delicado e escrupuloso." Apoiou ainda Júlio Pomar, Ary dos Santos e Cesariny e financiou a construção do Teatro Villaret.
Manuel Carvalho Brito das Vinhas nasceu em Lisboa em 1925. Filho de Francisco Vinhas e de Luísa Carvalho, descendia de uma família com negócios ligados à indústria das bebidas: águas, vinhos e cervejas.
Com o seu irmão Mário Vinhas, reconstruiu na década de 60 a coudelaria tradicional da herdade do Zambujal, mediante a aquisição da eguada de João Coimbra.
Uma herdade onde estiveram a caçar a convite da família os condes de Barcelona, os duques de Windsor e o casal Patiño. Hoje em dia, os Vinhas continuam a receber nomes grandes da alta sociedade como o príncipe Ernst de Hannover e a sua mulher, Carolina do Mónaco.
Manuel Vinhas viveu a maior parte da sua vida em Angola, onde a PIDE o vigiou atentamente. Os problemas políticos começaram quando publicou um pequeno livro chamado Para Um diálogo sobre Angola. Foi acusado de todos os impropérios. Diziam que era colaborador do MPLA e que estabelecia encontros com facções revolucionárias em Leopoldville.
Como revelaram Filipe Fernandes e Luís Villalobos no livro Negócios Vigiados, Manuel Vinhas foi o empresário português mais vigiado de sempre, apesar de se ter casado com Concha Bustorff Silva, filha de um colaborador de Salazar. A 13 de Março de 1963 foi impedido pela PIDE de embarcar para Copenhaga. Nessa altura, foram apreendidos 400 exemplares da 2.ª edição do seu livro Para Um Diálogo sobre Angola.
"A vigilância de Manuel Vinhas pela PIDE começou em 1961 e foi intensa ao longo da década de 1960, e culmina com a informação recolhida a 25 de Agosto de 1969 quando Manuel Vinhas recebeu na sua herdade do Zambujal os duques de Windsor e o casal Patiño para uma festa, que, como diz o recorte de A Capital, arquivado pela PIDE-DGS, se caracterizou pela maior discrição", lê-se em Negócios Vigiados.
Depois do 25 de Abril, a história não foi muito diferente para Manuel Vinhas. O empresário foi acusado de ser um dos maiores latifundiários do País, milionário sem escrúpulos que tinha um urinol em prata revestido a veludo na sua herdade do Zambujal. Muitos dos amigos que ajudou, nomeadamente artistas a quem deu a mão, viraram-lhe as costas depois da revolução. Luiz Pacheco foi a excepção, chegando a escrever o prefácio do livro que o empresário publicou no Brasil, Profissão Exilado, onde descreveu em detalhe a perseguição de que foi alvo pelos novos poderes instituídos.
"Milícias do Partido Comunista assaltaram nos últimos dias de Setembro a minha residência. Procurando-me de metralhadoras em punho, obrigando os meus filhos a saírem da cama de madrugada, interrogando-os com ameaças, despejando garrafas de vinho, roubando as espingardas de caça. Como não me encontraram, avisado que tinha sido por um amigo, repetiram a visita na noite seguinte, beberam mais vinho, o que tomei como uma homenagem ao meu critério selectivo", escreveu.
Refugiado no Brasil após o 25 de Abril, Manuel Vinhas morreu em Março de 1977 em Salvador da Baía. Hoje, a coudelaria da herdade do Zambujal mantém-se activa e nas mãos da família Vinhas.|

PESSOAS CULTURA ÍPSILON
CRÓNICA
Mark is dead
A música dos The Fall não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
Público, 25 de Janeiro de 2018
Mark E. Smith morreu de microfone em punho, tendo vivido toda a vida como muito bem entendeu. A imensa obra que deixou, em que nunca se deu ao incómodo de separar o trigo do joio, dará trabalho a gerações de exegetas.
As letras dele são denúncias hilariantes em que ele livremente exprime a misantropia que o animava, deliciando-se com observações de leviandades, modas e pretensões.
Mark E. Smith era um artista extremamente original e originalmente extremista. Não se filtrava nem diluía. O talento verbal é tão grande que lhe bastava fazer associações livres até chegar ao fim da canção. Bastava-lhe uma embirração para arrancar.
Ele era um Samuel Johnson da classe trabalhadora e do Norte que adorava picar as classes satisfeitas, a começar e acabar pelos músicos e pelos jornalistas. Era um dos maiores críticos que já conheci.
Tudo isto faz com que soe como um chato — e era. Não se calava. Era mais um heckler do que um cantor. Mesmo nos primeiros concertos eu ficava sempre com a sensação que ele estava a insultar-nos. Por sermos estudantes, por termos gabardinas compridas, por estarmos armados em intelectuais, por gostarmos de Joy Division e de pastis. Estavam a começar os anos 80 — mas o Mark já estava farto deles.
Os Fall são um prazer. A música maníaca e repetitiva manteve sempre a electricidade do improviso, da espontaneidade e da preguiça para fazer melhor. A música não era má de propósito — não tinha era pachorra para ser boa. Raios a partam, já sinto a falta dela. E a falta dele.



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