Um bonito texto de Nuno
Pacheco sobre distinções a discos com instrumentos populares, como o
cavaquinho e a gaita de foles. Há dias ouvi no Canal Memória Júlio Pereira e o
seu grupo e gostei a valer, pelo que resolvi transpor o texto para o meu blog,
para aguardar, sob a bandeira nacional que dá colorido ao meu blog, a sua eleição
a património da humanidade.
Segue-se o texto de Rui
Tavares, historiando sobre a criação da Sociedade das Nações aquando
do Tratado de Versalhes, e por proposta do presidente Wilson, Sociedade de
que os EU se excluiriam, contudo, o que o muito o afectou. Mas a hegemonia da América
começaria então, com o mundo vergando-se-lhe aos pés, até estes tempos de um
indefinível – ou pluridefinível - Donald Trump, em que o epíteto de mentecapto
também se lhe aplica. E eis o texto da EDITORIAL de Diogo Queiroz de
Andrade, assustador e temerário, que se dispõe a julgá-lo, nesse tal populismo
mentecapto e ignorante, para, seguidamente, o aplicar aos que, no nosso país, pela
via digital, atacam quem o critica, pretendendo defendê-lo, numa demagogia
perversa e tola.
1º TEXTO: OPINIÃO Cavaquinho excelentíssimo
O disco Praça do
Comércio, de Júlio Pereira, vai receber o Prémio Pedro Osório da SPA. Uma
distinção merecida. Como merecida é a recordação, aqui, de outros dois discos
de 2017: Gaitas de Fole em Portugal, de Paulo Tato Marinho, e Ao
Longe Já Se Ouvia, das Sopa de Pedra.
NUNO PACHECO
Público, 4 de Janeiro de 2018
O título vem emprestado
de José Cardoso Pires, da sua célebre sátira ao finado salazarismo, mas é aqui
usado em sentido contrário, o de elogio. Mesmo a fechar 2017, fez a
Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) saber que iria entregar, no início de
2018, o Prémio Pedro Osório a Júlio Pereira pelo seu disco Praça do
Comércio, por este ser “um excelente exemplo do valor do instrumento [o
cavaquinho] e do muito que com ele pode ser feito, havendo agora dezenas de
novos executantes e construtores em todo o país.” E a esta notícia
juntava-se uma outra, de relevo: a disponibilidade da SPA “para apoiar junto
da UNESCO a candidatura do cavaquinho a património da humanidade, processo
complexo que exige muitas colaborações, iniciativas e acções concertadas.”
Este, diga-se, é um dos objectivos a que a Associação Cultural Museu Cavaquinho
(a que Júlio Pereira preside) meteu ombros desde a sua fundação, mas sem
pressas. E com uma ligeira correcção: é a prática do cavaquinho (resultante
da acção dos seus construtores e tocadores) que se candidatará na UNESCO e não
o instrumento, ele ou os seus parentes directos, do braguinha daqui ao ukulele
americano.
O que dizer, então,
senão “parabéns”? Desde que Júlio Pereira gravou Cavaquinho,
em 1981, que a prática e a notoriedade do pequeno cordofone não parou de
crescer. Cavaquinho.PT, de 2013, e em 2017 Praça do
Comércio, vieram não só reavivar esse renascimento como fortalecê-lo. Não
apenas com música (e Júlio Pereira faz questão de usar sempre músicas novas,
viradas ao futuro, para que se entenda que o cavaquinho é um instrumento de
hoje, e não sinónimo de estagnação histórica) mas também com um manancial
informativo extraordinário. Praça do Comércio, desse ponto de vista, não é
apenas um disco, é também um compêndio de saberes (pelos textos, pela
informação, pelas pautas ali transcritas) e uma obra de arte, valorizada com os
desenhos de Carlos Zíngaro. Se há disco que, de forma clara, pugne por
um objecto particular do nosso património, é este. Só ele? Não. Há mais, e já
lá iremos. Mas Praça do Comércio é um excelente exemplo desse
empenho.
Igualmente lançados em
2017, e numa lógica paralela, há outros dois trabalhos dignos de nota. Um
é Gaitas de Fole em Portugal, de Paulo Tato Marinho, que muitos
recordam dos Sétima Legião ou dos Gaiteiros de Lisboa, grupo que ajudou a
fundar. Lançado na sede da Xuventude de Galicia, à qual está ligado há
muitos anos, o disco é um compêndio de sonoridades gaiteiras, recorrendo a um
número considerável de ponteiros e roncos e “radiografando” a experiência em
textos, quadros e notas informativas. Não é, como Praça do Comércio,
alicerçado em composições actuais (que também tem, do próprio Paulo Marinho ou
de Rodrigo Leão), mas maioritariamente em temas tradicionais de várias regiões
do país, indo das cantigas de D. Dinis aos Lhaços mirandeses. Outro bom
exemplo de como valorizar um instrumento português também com parentes pelo
mundo.
O terceiro trabalho
desta curta selecção tem por base o instrumento mais antigo (e mais versátil)
que se conhece: a voz. É a luminosa estreia das portuenses Sopa
de Pedra com Ao Longe Já Se Ouvia, disco de vozes a capella (nalguns
temas com percussões) que é também uma obra de arte pelo conceito e
grafismo, embalado numa caixa de madeira com lâminas de cartão com fotos
antigas manipuladas no rosto e, no verso, as letras das canções. A
maioria vem do cancioneiro popular (Beira-Baixa, Trás-os-Montes, Açores), mas
há igualmente composições de autores contemporâneos (José Afonso, Amélia Muge e
Capagrilos). Celebração da voz, na sua plenitude harmónica e tímbrica (voz que
também existe nos discos de Júlio Pereira ou Paulo Marinho), Ao Longe Já
Se Ouvia é outro registo sonoro que vem mostrar como as mais antigas
heranças podem brilhar como novíssimas (ou excelentíssimas) criações.
2º TEXTO: OPINIÃO
Início e fim do século americano
A imagem de um Woodrow
Wilson mentalmente incapacitado em pleno mandato presidencial faz pensar que os
EUA se aguentam em plena posse dos seus sentidos mesmo quando não se pode dizer
o mesmo dos seus presidentes.
RUI TAVARES
Público, 8 de Janeiro de 2018
O século americano
começou há exatamente cem anos em 1918, neste dia 8 de janeiro, quando o
presidente Woodrow Wilson discursou perante o Congresso dos EUA propondo um
entendimento para a paz na Europa baseado em quatorze pontos.
Os Quatorze Pontos de
Wilson, como ficaram conhecidos, foram uma coisa notável. Em quatorze
parágrafos tão curtos que muitos caberiam hoje num tweet, pela primeira vez
as condições de uma paz na Europa foram impostas de fora do continente por um
poder que antes se julgava de segunda ordem. Talvez mais importante, Wilson
propunha uma revolução na forma de entender a diplomacia e as relações entre
potências.
Os EUA não entraram no
século XX pensando ser uma super-potência global. Queriam certamente ser uma
potência hegemónica no seu continente, como mandava a Doutrina Monroe de 1823,
e talvez alargar a interpretação desta doutrina. Em 1898 os EUA conquistaram as
Filipinas aos espanhóis, mas nada lhes prenunciaria que vinte anos depois
estariam a ditar aos europeus os termos da reorganização de Europa e do Médio
Oriente. Os europeus fizeram isso por eles. Entrando em 1914 numa guerra sem
ninguém perceber como, conseguindo fazer colapsar quatro impérios em quatro
anos (Alemão, Austro-Húngaro, Russo e Otomano) e endividar os restantes, como o
britânico. Aí como na IIª Guerra Mundial, os americanos vigiaram de longe a loucura
europeia, entraram tarde em combate, emprestaram dinheiro e armas, participaram
na glória da libertação e nas negociações de paz e terminaram dizendo como se
deveriam fazer as coisas dali por diante (não que antes fossem melhores).
Depois disso tudo, tiveram
dificuldades em seguir a sua própria receita. O pináculo dos Quatorze Pontos
estava na criação de uma “associação geral de nações… com o propósito de dar
garantias mútuas de independência política e integridade territorial aos
estados tanto grandes como pequenos” — a Sociedade das Nações, antepassada
da ONU.
A Sociedade das Nações
ficou decidida nas negociações de Versalhes. Mas, chegado a casa, Wilson
foi surpreendido pela política americana: o Senado não aceitava a entrada dos
EUA na Sociedade das Nações. Em desespero, Wilson tentou anular os
senadores pela retaguarda, iniciando uma digressão em comboio pelos estados
americanos para convencer diretamente os eleitorados locais a apoiarem a sua
iniciativa. Exausto, teve um colapso. Voltou a Washington, incapacitado e
derrotado. O resto da sua presidência foi exercida na prática (e em segredo)
pela sua mulher e por aliados políticos.
Donald Trump que perde
as estribeiras ao tentar silenciar um livro que lança dúvidas sobre as suas
capacidades mentais. Agora, o resto do mundo, da Europa à China, olha e ri-se.
Neste fim-de-semana,
Trump teve mais um chilique em público, escrevendo uma dezena de tweets em que
se auto-proclama “um génio muito estável”. Não sei se chegará aos quatorze
tweets até ao fim do dia. Mas a comparação entre os quatorze pontos de Wilson,
que eram sobre o mundo à sua volta, e os tweets de Trump, que são sempre apenas
e só sobre ele próprio, pode bem ajudar a descrever o arco que vai da alvorada
ao crepúsculo do século americano.
3º TEXTO: EDITORIAL Trump sufoca-se a si mesmo
A realidade é preocupante.
Os Estados Unidos neste momento têm uma imagem completamente degradada e estão
a perder a credibilidade que sempre tiveram.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
Público, 4 de Janeiro de
2018
Donald Trump está cada
vez mais acossado pela justiça. O novo livro que relata segredos da vida na Casa Branca,
mesmo incluindo relatos duvidosos, deixa completamente exposto um Presidente
que tem feito pouco pela credibilização do cargo que ocupa. E isto
acontece no mesmo dia em que o Presidente americano fala do tamanho do seu arsenal
nuclear, ameaçando usá-lo; e dois dias depois de comparar o
aquecimento global ao arrefecimento sazonal, mostrando não compreender um
módico de ciência ou sensatez que satisfaça um americano médio.
A realidade é
preocupante. Os Estados Unidos neste momento têm uma imagem
completamente degradada e estão a perder a credibilidade que sempre tiveram.
Não está em causa concordar ou discordar com as políticas que vêm de
Washington, está apenas em questão olhar com respeito e aceitar uma dimensão
de credibilidade que emane da Casa Branca. Isso desapareceu com Trump, que está
a fazer mais mal aos EUA e aos republicanos do que Richard Nixon alguma vez
conseguiu. Nixon foi um acidente de percurso num partido sério, Trump é o
reflexo da transformação do sistema político americano num reality-show para
milionários e da transformação do partido republicano numa plataforma de
promoção de ignorância sistemática.
O mais extraordinário é
que nem é preciso que a oposição democrata se organize. Os esquemas de Trump e
dos seus acólitos bastam-se a si próprios e podem mesmo provocar a própria
queda pela via da justiça, que é a melhor esperança de quem ainda acredita nos
méritos da América. Os acontecimentos deste ano e meio confirmam os
riscos de apostar nos populistas que subvertem o modelo democrático a partir de
dentro. Nesse sentido, a presidência Trump pode vir a revelar-se histórica, por
permitir tipificar a cartilha de um modelo demagogo que facilita a chegada ao
poder mas torna impossível a gestão desse mesmo poder.
Tudo isto pode acontecer
em Portugal um destes dias. Já há muitos que, nas plataformas digitais, se
dispõem a fazer o trabalho sujo do populismo e degradam o discurso público.
Querem a terra queimada para abrir caminho a demagogos que tomem o poder, e
para isso precisam de pôr em causa as nossas liberdades civis. É um risco que,
como se vê na Hungria e na Polónia, pode acontecer na Europa – mas é
garantidamente o pior que nos poderia acontecer.
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