Também enfio a carapuça. Nos meus tempos de
funcionária estatal, o apelo à não poupança fazia-se por via das prestações e
tinha-se crédito. Foi assim que fui facilitando a minha relação com o trabalho
doméstico, comprando as máquinas de lavar imprescindíveis ao bom funcionamento
do meu trabalho estatal, pela maior disponibilidade de tempo, ou mesmo os
móveis ou os objectos do meu bem-estar espiritual. É claro que foi um viver de
aperto sempre, mas, enfim, de satisfação, no cumprimento das minhas normas,
quer de ressarcimento mensal das dívidas, quer de ilustração própria sem o
esforço de ir procurar na biblioteca o que podia ter em casa – afinal, na “poupança”
de tempo.
Mas o crédito, voraz e interesseiro, ampliou hoje a
sua “generosidade”, como bem descreve Bagão Félix e os seus
comentadores, e os governantes pós abrilinos – todos eles “socráticos” no
esbanjamento, já não só do que lhes fora deixado em herança, mas do que lhes
foi concedido em empréstimo – deram bem à manivela na questão do esbanjamento
para o bem-estar democrático de todos nós. Não vamos só condená-los, o país
está mais bonito, pese embora os campos menos trabalhados. Mas todos temos
direito ao nosso quinhão de felicidade, e ficamos gratos a quem nos proporciona
isso. Desde que paguemos religiosamente as contas. O ressarcimento escrupuloso das
dívidas também se traduz em felicidade, ainda que menos democrático.
No não poupar é que está o endividamento
António Bagão Félix
Público, 14 de Janeiro de 2018,
A poupança é a grande enjeitada da macroeconomia. Aliás, é recorrentemente subestimada porque
não faz parte da agenda político-mediática. Nem faz parte directamente das
bitolas europeias. Mas é de senso comum perceber-se a sua importância para o
progresso de um país. A poupança – embora sempre elogiada, mas na prática
considerada como adjectiva – sofre tratos de polé recorrentes.
Poupar significa, acima de tudo, renunciar a gastar hoje para consumir
amanhã. Isto é, usar o tempo para prevenir e acautelar e promover uma cultura
de responsabilidade. Por outras palavras, poupar é uma atitude aliada do médio
e longo prazos e adversária do imediato, do efémero e do ilusório. A taxa
de poupança atinge valores perigosamente baixos em percentagem do rendimento
disponível (à volta de 6%). E, simultaneamente, a dívida dos particulares
também em percentagem do rendimento disponível, apesar de alguma diminuição nos
últimos anos, está ainda próxima dos 100%.
O comum dos portugueses foi abandonado no que se refere ao seu
património. Com dinheiro ilusoriamente barato, os bancos viraram as costas ao
aforrador clássico. À boleia da política do BCE, as taxas de juro do aforro
andam à volta de 0%! Mas, há quem lhes associe, em jeito neologista e
deslocado, um qualquer balcão de “pouparia”. Ao mesmo tempo, estimula-se o
investimento em produtos de maior risco sempre apresentados como oportunidades
de obter melhores rendimentos.
Numa década, o IRS sobre juros das poupanças em instrumentos clássicos
de aforro passou de 20% para 28% (40% de agravamento). De tal modo que nos depósitos bancários e
certificados de aforro, sendo que a sua remuneração bruta é, regra geral, quase
nula e nunca igual ou superior à taxa de inflação, o IRS sobre os juros acaba
por incidir parcialmente sobre o próprio capital. Por outro lado,
tratam-se fiscalmente do mesmo modo, um pequeno aforrador, um grande accionista
ou um sofisticado especulador. Para já não falar nos paraísos fiscais e na
ocultação engenhosa que a tudo resistem.
Ao mesmo tempo, o endividamento – que é como quem diz a poupança
negativa – continua em níveis muito elevados. O mês de Novembro evidencia uma fortíssima
aceleração do crédito ao consumo. De acordo com os dados do Banco de Portugal,
nesse mês foram disponibilizados 654 milhões de euros em novo crédito
ao consumo, o nível mais elevado no histórico disponibilizado pelo Banco
central desde 2013, ainda que se compreenda que parte deste aumento resultará
de aquisições e reposição de bens de consumo duradouro que haviam sido adiadas
durante a crise (automóveis, electrodomésticos, etc.).
Mas eis que está aí uma nova vaga de facilitação desmedida do crédito ao
consumo. Pelos intermediários financeiros, pelas famílias, pelas autoridades
públicas. À apologia sem limites do crédito fácil, do “compra hoje e paga
mais tarde”, do endividamento, por dá cá aquela palha, desde o
essencial ao mais escusado e fútil bem ou serviço. Voltam a chover convites
para ilusórios créditos pré-aprovados, à la carte, por via
electrónica ou telefone, ou por via da “oferta” de cartões de toda a espécie.
Em suma, nada para estimular a poupança, tudo para favorecer o
endividamento. Basta uma moderada recuperação económica e tudo parece voltar
aos excessos de antes da crise. Nada se aprende. Volta-se a não discernir entre
utilidade e futilidade, ignora-se a poupança como valor ético, comportamental e
geracional, e esbate-se a exigência de olhar para além da ilusão do dia
seguinte.
A história repete-se. Com uma diferença: custará cada vez mais…
Comentários
P.C.
À boa imagem de Sócrates, o grande impulsionador do “pedir emprestado”
em Portugal. A pessoa que diz que “as dívidas não são para ser pagas, são para
ser geridas”. Aeroporto novo? Já temos parceiro na banca. Painéis solares para
casa? Compra-se no banco. Crédito à habitação? Tem desconto no IRS. Os amigos
dele estão de volta e, claro, voltamos a pedir emprestado, para pagar um dia
destes. O que é importante é manter a fachada.
No caso aqui de casa, poupa-se com muito esforço. Sem luxos, sem mordomias,
a pensar no futuro. Gasta-se no essencial e não no foguetório. Somos taxados
como ricos e tratados como palermas pelo Estado por preferir cautelosamente
juntar algum dinheiro.
Talvez o endividado compulsivo tenha aprendido algo com a crise passada.
No fundo, os grandes devedores souberam camuflar o produto do endividamento e,
passada a tempestade, voltam, refeitos da desgraça, mas com património
renascido da ousadia. Não sei se não deva aconselhar os pequenos trastes a
aprender com os grandes trastes, já todos percebemos que a economia e a justiça
comungam no mesmo banco.
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