quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Tem toda a razão, mas…


Também enfio a carapuça. Nos meus tempos de funcionária estatal, o apelo à não poupança fazia-se por via das prestações e tinha-se crédito. Foi assim que fui facilitando a minha relação com o trabalho doméstico, comprando as máquinas de lavar imprescindíveis ao bom funcionamento do meu trabalho estatal, pela maior disponibilidade de tempo, ou mesmo os móveis ou os objectos do meu bem-estar espiritual. É claro que foi um viver de aperto sempre, mas, enfim, de satisfação, no cumprimento das minhas normas, quer de ressarcimento mensal das dívidas, quer de ilustração própria sem o esforço de ir procurar na biblioteca o que podia ter em casa – afinal, na “poupança” de tempo.
Mas o crédito, voraz e interesseiro, ampliou hoje a sua “generosidade”, como bem descreve Bagão Félix e os seus comentadores, e os governantes pós abrilinos – todos eles “socráticos” no esbanjamento, já não só do que lhes fora deixado em herança, mas do que lhes foi concedido em empréstimo – deram bem à manivela na questão do esbanjamento para o bem-estar democrático de todos nós. Não vamos só condená-los, o país está mais bonito, pese embora os campos menos trabalhados. Mas todos temos direito ao nosso quinhão de felicidade, e ficamos gratos a quem nos proporciona isso. Desde que paguemos religiosamente as contas. O ressarcimento escrupuloso das dívidas também se traduz em felicidade, ainda que menos democrático.

No não poupar é que está o endividamento
António Bagão Félix
Público, 14 de Janeiro de 2018,
A poupança é a grande enjeitada da macroeconomia. Aliás, é recorrentemente subestimada porque não faz parte da agenda político-mediática. Nem faz parte directamente das bitolas europeias. Mas é de senso comum perceber-se a sua importância para o progresso de um país. A poupança – embora sempre elogiada, mas na prática considerada como adjectiva – sofre tratos de polé recorrentes.
Poupar significa, acima de tudo, renunciar a gastar hoje para consumir amanhã. Isto é, usar o tempo para prevenir e acautelar e promover uma cultura de responsabilidade. Por outras palavras, poupar é uma atitude aliada do médio e longo prazos e adversária do imediato, do efémero e do ilusório.  A taxa de poupança atinge valores perigosamente baixos em percentagem do rendimento disponível (à volta de 6%). E, simultaneamente, a dívida dos particulares também em percentagem do rendimento disponível, apesar de alguma diminuição nos últimos anos, está ainda próxima dos 100%.
 O comum dos portugueses foi abandonado no que se refere ao seu património. Com dinheiro ilusoriamente barato, os bancos viraram as costas ao aforrador clássico. À boleia da política do BCE, as taxas de juro do aforro andam à volta de 0%! Mas, há quem lhes associe, em jeito neologista e deslocado, um qualquer balcão de “pouparia”. Ao mesmo tempo, estimula-se o investimento em produtos de maior risco sempre apresentados como oportunidades de obter melhores rendimentos.
Numa década, o IRS sobre juros das poupanças em instrumentos clássicos de aforro passou de 20% para 28% (40% de agravamento). De tal modo que nos depósitos bancários e certificados de aforro, sendo que a sua remuneração bruta é, regra geral, quase nula e nunca igual ou superior à taxa de inflação, o IRS sobre os juros acaba por incidir parcialmente sobre o próprio capital. Por outro lado, tratam-se fiscalmente do mesmo modo, um pequeno aforrador, um grande accionista ou um sofisticado especulador. Para já não falar nos paraísos fiscais e na ocultação engenhosa que a tudo resistem.
Ao mesmo tempo, o endividamento – que é como quem diz a poupança negativa – continua em níveis muito elevados. O mês de Novembro evidencia uma fortíssima aceleração do crédito ao consumo. De acordo com os dados do Banco de Portugal, nesse mês foram disponibilizados 654 milhões de euros em novo crédito ao consumo, o nível mais elevado no histórico disponibilizado pelo Banco central desde 2013, ainda que se compreenda que parte deste aumento resultará de aquisições e reposição de bens de consumo duradouro que haviam sido adiadas durante a crise (automóveis, electrodomésticos, etc.).
Mas eis que está aí uma nova vaga de facilitação desmedida do crédito ao consumo. Pelos intermediários financeiros, pelas famílias, pelas autoridades públicas. À apologia sem limites do crédito fácil, do “compra hoje e paga mais tarde”, do endividamento, por dá cá aquela palha, desde o essencial ao mais escusado e fútil bem ou serviço. Voltam a chover convites para ilusórios créditos pré-aprovados, à la carte,  por via electrónica ou telefone, ou por via da “oferta” de cartões de toda a espécie.
Em suma, nada para estimular a poupança, tudo para favorecer o endividamento. Basta uma moderada recuperação económica e tudo parece voltar aos excessos de antes da crise. Nada se aprende. Volta-se a não discernir entre utilidade e futilidade, ignora-se a poupança como valor ético, comportamental e geracional, e esbate-se a exigência de olhar para além da ilusão do dia seguinte.
A história repete-se. Com uma diferença: custará cada vez mais…

Comentários
P.C.
À boa imagem de Sócrates, o grande impulsionador do “pedir emprestado” em Portugal. A pessoa que diz que “as dívidas não são para ser pagas, são para ser geridas”. Aeroporto novo? Já temos parceiro na banca. Painéis solares para casa? Compra-se no banco. Crédito à habitação? Tem desconto no IRS. Os amigos dele estão de volta e, claro, voltamos a pedir emprestado, para pagar um dia destes. O que é importante é manter a fachada.
No caso aqui de casa, poupa-se com muito esforço. Sem luxos, sem mordomias, a pensar no futuro. Gasta-se no essencial e não no foguetório. Somos taxados como ricos e tratados como palermas pelo Estado por preferir cautelosamente juntar algum dinheiro.


Talvez o endividado compulsivo tenha aprendido algo com a crise passada. No fundo, os grandes devedores souberam camuflar o produto do endividamento e, passada a tempestade, voltam, refeitos da desgraça, mas com património renascido da ousadia. Não sei se não deva aconselhar os pequenos trastes a aprender com os grandes trastes, já todos percebemos que a economia e a justiça comungam no mesmo banco.

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