quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Dois textos de Teresa de Sousa


Ao lermos Teresa de Sousa, sentimo-nos, sem dúvida, enriquecidos, não só moralmente, pela nobreza de pensamento - opinião sobre o caso em “huis clos” do financiamento dos partidos - como politicamente, pela divulgação de dados sobre as bolandas da União Europeia, que se vai mantendo de pé, apesar de rupturas aqui e além, causadas pelos partidos “populistas” que se rebelam contra as infiltrações sucessivas dos que procuram pão ou paz, vindos dos países em guerras de terror vário. Gostamos a valer das suas observações, apoiadas por bibliografia com que se documenta, com uma seriedade que se estima e que deveria frutificar como exemplo.
OPINIÃO
1º TEXTO:      Uma “grande coligação” europeia ainda é possível?
É o sentimento de destino comum europeu que falta reconstruir. Ainda estamos longe de saber se vai ser possível, mas há alguns sinais positivos.
Público, 17 de Dezembro de 2017
1. Por uma vez, o último Conselho Europeu de 2017 não confirmou a maldição que tem perseguido a União Europeia, segundo a qual tudo o que pode correr mal, corre mesmo mal. Podia ter corrido pior. Há a sensação de que, passado o auge da crise, existe uma genuína vontade em muitas capitais europeias (incluindo Berlim) de começar a fazer o que é preciso para que a Europa se volte a pôr de pé, refaça a sua unidade e olhe de frente para os desafios que enfrenta. É este sentimento de destino comum que falta reconstruir. Ainda estamos longe de saber se vai ser possível, mas há alguns sinais positivos.
Theresa May recebeu a sua prenda de Natal: um kit de sobrevivência politica. Depois de mais uma derrota em casa, ganhou em Bruxelas a passagem para a segunda fase das negociações do “Brexit” e elogios dos seus pares europeus. A União Europeia tem de manter a sua estratégia negocial, mas sabe que não pode esticar a corda ao ponto de parti-la. O resultado final tem de ser “win-win”, de forma a não causar demasiados estragos na Europa, incluindo o Reino Unido. May pode agora anunciar uma versão mais “soft”, mesmo que ainda não se saiba exactamente que contornos terá. O Labour tem de abandonar a sua estratégia de indefinição e dizer exactamente o que quer. Os rebeldes conservadores têm de fazer melhor as contas. Um dia destes, vão ter de apresentá-las aos britânicos.
2. Angela Merkel, ainda em gestão, cumpriu o que prometera a Emmanuel Macron e a outros governos europeus, incluindo o português. A reforma da zona euro não vai ser retirada da agenda ou relegada para um lugar secundário, como se temia. O grande debate sobre o futuro do euro tem data prevista: a cimeira de Março. A chanceler foi insistindo em que não são assim tão grandes as diferenças entre ela, Macron e Juncker. “Eu quero [a reforma da zona euro] e onde há uma vontade, há um caminho”. Merkel sabe que a sua próxima tarefa é negociar uma nova “grande coligação” com o SPD e não lhe convém criar mais divisões em torno da política europeia. O Presidente francês deu também alguns sinais de que não vai carregar demasiado no acelerador, no que toca às suas propostas sobre a conclusão da reforma do euro, ainda muito distantes das de Merkel. António Costa ajudou a conseguir este compromisso (acreditem, não é uma mentira do dia 1 de Abril), ganhando apoios para Centeno em Paris e em Berlim. A Bloomberg dizia, sobre a escolha do ministro português das Finanças para presidir ao Eurogrupo, que significava um entendimento entre Merkel e Macron sobre os próximos passos da reforma da união monetária. Nada será fácil, mas Merkel parece ter aceitado que o status quo não serve a zona euro, quando tiver de enfrentar a próxima crise, e haverá uma próxima crise. O mais importante foi o ambiente bastante mais respirável em que decorreu esta cimeira europeia, apenas perturbado pela guerra em torno dos refugiados. Já lá voltamos.
3. A Pesco também mereceu consenso. O trabalho já estava feito pelos chefes da diplomacia europeia e por Federica Mogherini. Não é a que Paris desejava, mas espera-se que seja diferente das anteriores tentativas falhadas para garantir à Europa alguma autonomia estratégica com a indispensável capacidade militar. Há um factor novo. A Europa está a aprender a grande velocidade o que é viver sem os Estados Unidos, um “vício” que adquiriu durante décadas, justamente porque a “droga” era barata e sem quebras de abastecimento. Enquanto Donald Trump estiver na Casa Branca não podem contar com ele. O que virá depois desta fase em que a América se retira do mundo já não será o que havia antes. Outros grandes actores internacionais, que não fazem parte do clube das democracias ocidentais, estão a preencher o vazio. A Rússia não vai mudar o seu nacionalismo agressivo. Será um permanente factor de instabilidade na fronteira leste da União Europeia. Já tem, entretanto, os dois pés na Síria. O Médio Oriente entrou em roda livre, desde que Trump resolveu deitar gasolina na fogueira, alinhando com os sauditas e acelerando a guerra por entrepostos actores entre Riade e Teerão. Os europeus têm de olhar para a região do Sahel e ter um plano de estabilização urgente. A prova dos nove sobre a nova “cooperação estruturada permanente” (uma designação tipicamente europeia), como escreveu Judy Dempsy do Carnegie Europe, será saber “se mundo vai dar por ela”. A Alemanha forçou um modelo o mais alargado possível (acabaram por ser 25 em 27), aumentando o risco de diluição e de imobilismo. Foi um erro. Há dinheiro da Comissão para investir em projectos (que incluam vários países), destinados a melhorar as capacidades militares e a investir mais em I&D. É um estímulo.
4. E chegamos à questão que dividiu o Conselho Europeu e que conta uma história ainda muito preocupante sobre a saúde da Europa e das suas democracias. Os refugiados e a imigração ilegal são hoje um tema central das eleições europeias, capaz de fazer e desfazer partidos, de criar clivagens impensáveis e, em primeiro lugar, de alimentar os movimentos populistas e nacionalistas que ameaçam as democracias europeias e, como tal, a própria integração. A vitória de Macron foi saudada como o grande acontecimento político que travou a vaga antieuropeia. Le Pen passou de ameaça quase fatal a um fenómeno controlado. Por pouco tempo. A eleição quase certa de Laurent Wauquiez para liderar Os Republicanos de Sarkozy é tudo menos tranquilizadora. Wauquiez não esconde que o seu discurso se aproxima bastante da Frente Nacional em matéria de imigração, com a primazia dada à islâmica. Diz que os apoios sociais são um “cancro”. Quer uma direita que seja mesmo de direita. Acusa Macron de “não amar a França” porque defende a globalização. Começamos a habituar-nos a este discurso, que não é apenas próprio dos partidos que se situam na direita mais extrema, mas começa a fazer parte da linguagem de partidos que foram até agora centrais nas democracias europeias. Os Republicanos sofreram um revés histórico com a eleição de Macron. O Presidente foi buscar alguns dos seus dirigentes mais moderados para o governo. Na Assembleia Nacional, os seus deputados cindiram-se. Wauquiez quer encontrar espaço pela maneira mais simples. Como em outros países europeus, a cedência ao discurso identitário é o caminho mais fácil mas também o mais perigoso. Os “outros” são o inimigo interno. “Em 2018, o desafio populista vai continuar”, escreve Mathew Goodwin da Chatham House de Londres. Ignorar o problema não resolverá nada. Enunciar os valores universais que fazem parte das democracias liberais é um dever mas já não chega. É preciso ir ao encontro dos que ficaram para trás ou que têm medo do futuro, o que exige uma enorme coragem política e torna uma dimensão europeia indispensável. Na véspera da cimeira, assistimos a um confronto aberto com Donald Tusk, que defendeu publicamente o fim do sistema de quotas para a distribuição dos refugiados, que pretendia aliviar a carga daqueles que aguentaram a maior pressão, da Itália e à Grécia, passando pela Alemanha. A reacção do comissário responsável pela imigração (por sinal, um grego) foi muito dura. Ontem, a chanceler não escondeu a sua profunda irritação. São os países de Leste (o grupo de Visegrado) que rejeitam as quotas com total veemência. A sua intransigência adiou uma decisão para Junho. O problema é que ela faz parte de uma tendência para “torcer” o Estado de Direito, que esses governos praticam sem qualquer pudor, como é o caso da Hungria ou da Polónia. Não há democracia por metade. No dia em que a União Europeia cedesse num princípio que está inscrito na génese da integração, a Europa mudaria de natureza. Até agora, tem sido a Comissão a tratar do assunto junto dos governos infractores, com alguns resultados em Budapeste e nenhuns em Varsóvia. Os sinais de racismo ou de anti-semitismo já não são disfarçáveis e sabemos como são contagiosos. A questão é política e é vital. Vai ter de ser o Conselho Europeu a tratar dela, quanto mais cedo melhor. O risco é o mesmo: a China e a Rússia estão disponíveis para ocupar o vazio.

2º TEXTO:               «Talvez devêssemos pôr a mão na consciência»
Devemos exigir mais de nós próprios quando temos como função exigir mais daqueles sobre os quais escrevemos.
7 de Janeiro de 2018
1. Por uma razão qualquer, a polémica em torno das leis de financiamento dos partidos atirou-me para um passado já longínquo, no tempo em que os animais falavam e uma simples máquina de fax era recebida na redacção do Expresso como uma verdadeira revolução tecnológica. Estávamos em meados dos anos 1980 e ainda batíamos furiosamente nas teclas das velhas máquinas de escrever. Os artigos iam para a gráfica dentro de um canudo preto, transportado a grande velocidade por um estafeta de mota. Passaram a ir por fax. Tínhamos conta no Fumaças e na Buchholz, onde comprávamos as revistas estrangeiras e encomendávamos livros de Paris e de Londres que nos permitissem ir obtendo os conhecimentos necessários para entendermos um pouco melhor a realidade sobre a qual escrevíamos. Nas campanhas eleitorais, tínhamos de recorrer ao telefone de um café de aldeia para ditarmos as crónicas. Enfim, este breve ataque de nostalgia apenas serve para lembrar outras memórias, que talvez ajudem a compreender (não a justificar) as razões pelas quais os deputados de todos os partidos resolveram adoptar o total secretismo para negociarem as alterações às respectivas leis de financiamento, agora que todos os adjectivos disponíveis na língua portuguesa para desancá-los já foram utilizados pelos comentadores.
2. O que a minha memória me diz é que, de cada vez que havia a intenção de aumentar os vencimentos dos deputados e dos políticos em desempenho de outras funções, os jornalistas lhes caíam em cima com uma fúria idêntica à que estamos agora a assistir. O país era pobre, por que razão os políticos tinham de ganhar mais? Tive grandes discussões na redacção sobre isso. Numa altura em que os jornalistas ainda eram bem pagos (antes da proletarização acelerada a que hoje assistimos), não me parecia lógico que ganhássemos mais do que um deputado cuja função é de suprema relevância numa democracia liberal. O mesmo para os ministros ou o próprio Presidente da República. No tempo espartano de Eanes, a presidência queixava-se de ter apenas dinheiro para oferecer aos convidados um arrozinho de tomate a acompanhar uns pastelinhos de bacalhau. Se queríamos que a política atraísse os melhores (como aconteceu logo depois do 25 de Abril), então teriam de ganhar razoavelmente, em vez de se manterem, muitas vezes, ligados aos grandes escritórios de advogados ou a outras actividades privadas igualmente rentáveis. 
3. O que quero dizer é que a responsabilidade pelo clima que levou deputados experientes a tentarem alterar as regras de financiamento dos partidos num pequeno grupo secreto, com todos amarrados às pernas da mesa, também é nossa. Deveríamos ter a humildade de o reconhecer. Antes do populismo, que agora invocamos a torto e a direito, havia a demagogia. E a demagogia não ficava à porta das redacções. Era a mesma que levava muita gente a acusar Mário Soares de gastos sumptuários quando se deslocava ao estrangeiro em visitas oficiais, levando consigo o que de melhor o país tinha para mostrar. Ouvi-o responder muitas vezes a esta crítica com uma simples frase: “Nunca me apresentarei lá fora de chapéu na mão.Desta vez, houve uma pequena diferença: antes de desancar nos políticos, a maioria dos comentadores teve o cuidado de lembrar que, sem partidos, não há democracia — uma verdade de La Palice que nunca é demais recordar. Mas este cuidado aparente acabou por ser um pormenor, esmagado pela violência das críticas.
4. A crise das democracias europeias, com a emergência de forças populistas e nacionalistas, é um problema sério, talvez o mais sério que a Europa enfrenta, mas tem razões profundas e exige mudanças igualmente profundas, que aliás já estão a ocorrer. O partido que levou Emmanuel Macron ao Eliseu foi criado há pouco mais de um ano, colocando-se no centro político e não abdicando dos valores sobre os quais a Europa se reconstruiu, em vez de ceder ao populismo para estancar o crescimento dos populistas. Vimos partidos portadores de uma longa história, como o PS francês, desaparecerem de um dia para o outro, substituídos por um movimento progressista, integrado maioritariamente por gente que cresceu fora das máquinas partidárias, que vem dos sectores mais dinâmicos e mais jovens da sociedade e que pode corresponder a uma outra forma de organização partidária, talvez mais conforme com o mundo em que vivemos. Vai ser interessante acompanhar a vida dos “Republicanos em Marcha” ou dos pequenos grupos de deputados do centro-direita que se organizaram autonomamente, rompendo com os Republicanos de Sarkozy, para estabelecerem pontes com o partido de Macron nas matérias em que estão de acordo. Seja como for, os partidos, uns e outros, novos e velhos, precisam de se financiar. O ideal seria a subvenção pública, mas ainda não estão reunidas as condições para que isso aconteça, ao mesmo tempo que a fragmentação política está a criar novas organizações ainda não devidamente legitimadas pelos votos como fenómenos duradouros. A qualidade dos políticos, nomeadamente por cá, também não tem melhorado muito, graças à contenção dos salários mas também ao desgaste inerente a uma atenção mediática permanente (sobretudo das redes sociais, óptimas a contar histórias que não têm nada a ver com a realidade), o que seria uma coisa positiva, caso não fosse, mais vezes do que o desejável, uma suspeita permanente.
5. Também é conveniente sabermos onde é que estamos. A economia corre bem, afastando um terreno fértil para o debate político. O PSD está a viver num limbo, que não recomenda insistir demasiado no passado recente. Há dias, passando numa livraria, deparei-me com o título do que creio ser o mais recente livro de João César das Neves e que fala por si: As Dez Questões do Colapso que Portugal Poderá Sofrer em 2016-2017. Talvez por isso, enquanto esperamos que a crise volte, deixámo-nos cair no debate público pendurado numa sucessão de palavras que, sabe-se lá por quê, todos repetimos e que vão mudando quase todos os dias. Passámos da Raríssimas, que não permitiu derrubar um ministro, ao pernil de porco, do pernil de porco ao financiamento dos partidos, do financiamento dos partidos para qualquer outra coisa que chegue amanhã de manhã. E já me esquecia da “reinvenção” do país que Marcelo nos recomendou como mote do ano que agora começa e que já toda a gente parece disposta a adoptar. Temos o dever de acompanhar a realidade, mas não precisamos de fazer de cada pequeno episódio uma guerra total, todos os dias.
6. Faz hoje um ano sobre o desaparecimento de Mário Soares. Uma das características que mais o distinguiu foi precisamente a sua enorme coragem política. É de coragem que a política precisa se quer estar à altura dos tempos de mudança em que vivemos. Precisamos de gente que dê a cara, como ele. Que diga a verdade sobre a crise das democracias, que tente inovar a forma como os partidos se organizam, que já não parece servir uma sociedade que deixou de estar dividida em classes, que é hoje muito mais fragmentada mas também mais qualificada e mais informada. A demagogia é o pior dos vícios da democracia, porque se apresenta com uma capa moralista, embora se sirva dos instintos mais primários de cada um de nós. Devemos exigir mais de nós próprios, quando temos como função exigir mais daqueles sobre os quais falamos e escrevemos.


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