domingo, 7 de janeiro de 2018

Às vezes, seria bom seguir vizinhos


Duas crónicas de aviso à navegação. Repetitivas, monocórdicas, inúteis, manguais apodrecidos numa eira esburacada. Crónicas sobre as vulnerabilidades estatais, sociais, éticas, habituais. São a crónica de António Barreto sobre o Estado, e a de Maria de Fátima Bonifácio sobre os concorrentes a um partido. Coisas já apontadas, e sempre chocantes, chamadas de atenção, pontos de vista, no fervilhar pasmado do nosso evoluir sem segurança de princípios, na flacidez libertária que se impôs em florida revolução, e que António Gedeão tão finamente descreve:
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.

As regras são importantes, como a tabuada exemplifica e tudo na natureza demonstra.

Frágil. Vulnerável. O Estado
António Barreto
DN, 7/1/18
 Todos os partidos precisam de pensar, com certeza. Mas os dois principais, se o querem continuar a ser, precisam disso como de pão. Se não o fizerem e se não esclarecerem, correrão riscos de fragmentação ou de pulverização, a exemplo de grande parte dos países europeus.
Mais de um ano antes de eleições, há tempo para pensar e debater. Não chegará para tudo esclarecer, mas o processo pode ter início. Que é cada dia mais urgente, com a crise europeia, as ameaças de nova crise financeira e as tensões internacionais.
Para o debate português, entre outras questões vitais, uma parece emergir: a da fragilidade do Estado. Os últimos anos foram cruéis e reveladores.
O Estado ficou frágil diante dos interesses de meia dúzia de grupos, de famílias e de bancos sem escrúpulos, com métodos que incluíram o banditismo, o crime de colarinho branco e o aproveitamento de oportunidades que o regime democrático oferecia.
O Estado esteve frágil perante as actuações predadoras de bandoleiros que conseguiram utilizar todos os processos democráticos de organização do poder político, da Administração Pública e dos órgãos de soberania, para corromper, enriquecer e locupletar.
O Estado expôs fragilidades por falta de inteligência e de ciência, ao ter de recorrer a empresas, assessores, consultores e escritórios, que, dizendo o que o Estado queria ouvir, obrigaram o Estado a fazer o que eles queriam que fizesse.
O Estado mostrou-se frágil por ocasião dos incêndios de Verão, os quais, apesar de previsíveis, provocaram uma das maiores hecatombes da história do país, no quadro de um fenómeno raro de incompetência e de irresponsabilidade.
O Estado revelou-se frágil no momento em que, imagine-se só, até os depósitos de armas das Forças Armadas foram violados e roubados, na ausência, por enquanto, de infractores e de responsáveis.
O Estado patenteou fragilidade quando, nas operações de privatização, tantas vezes para entidades públicas estrangeiras, não defendeu os interesses nacionais com mais rigor, seja a estabilidade das empresas sejam os direitos dos cidadãos e dos consumidores.
O Estado exibe toda a sua fragilidade quando o sistema de Justiça, capaz, por um lado, de resolver centenas de milhares casos do dia-a-dia, é, por outro lado, absolutamente incapaz de, com respeito pelos direitos dos cidadãos e em obediência às regras de uma democracia liberal, tratar a tempo e horas dos bandidos com grau universitário, dos criminosos de colarinho branco, dos malfeitores com nome de família, dos facínoras com propriedade, dos celerados com empresa, dos delinquentes eleitos e dos corruptos com cartão de partido.
O Estado evidenciou a sua enorme fragilidade ao não conseguir levar a bom termo, em tempo decente, processos de investigação de um primeiro-ministro, de ministros, de secretários de Estado, de adjuntos e assessores do governo, de directores-gerais, de presidentes de institutos públicos, de presidentes de conselhos de administração e de administradores de empresas públicas e privadas, de oficiais das Forças Armadas e até de um chefe de polícia acusados há anos e à espera de não se sabe o quê.
Em tudo quanto diz respeito à corrupção política, ao poder económico, às regalias dos partidos políticos e ao privilégio de famílias com nome e fazenda, o Estado democrático encontra-se jacente e moribundo.
O Estado português não está à altura da democracia europeia, da liberdade e da protecção devida aos cidadãos.

OPINIÃO
Nenhum me convém
O debate interessou-me porque Rio ou Santana são candidatos a primeiro-ministro. Mas são confiáveis?
Maria de Fátima Bonifácio
OBSERVADOR, 6 de Janeiro de 2018

Acabo de ver na RTP (05.01.18) o frente-a-frente entre Rui Rio e Santana Lopes. Não sou filiada no PSD, mas o debate interessou-me porque qualquer deles é um candidato a primeiro-ministro. Para este efeito, nenhum me convém.
Comecemos por Rui Rio. A sua visão governativa é de longe mais consistente do que a do outro concorrente. Subscrevo a linha geralíssima que presidiria ao exercício do seu mandato: colocar o interesse de Portugal a prazo muito à frente da popularidade imediata — exactamente o contrário do que faz António Costa. Tenho razões para crer que teria a necessária coragem política para tal: demonstrou-o ao longo de oito anos durante a sua presidência da Câmara do Porto. Mas a solidez técnica não resolve toda a política, que requere empatia, sensibilidade e intuição que não vêm descritas nos manuais. Portugal inteiro não cabe na Av. dos Aliados; e a volumetria dos interesses que procuram capturar o governo não é comparável à do paroquial Futebol Clube do Porto. Uma boa formação técnica, que julgo indispensável, não deve transformar-se em tecnocratismo ou sobrepor-se a uma visão integrada do país, que abrange inevitavelmente matérias que são mais do foro da compreensão do que de equações e medições quantitativas; trata-se de matérias que não cabem numa folha Excel. Governar um país começa por ser uma imersão num mundo humano, num universo emocional que escapa à técnica e à ciência.
O que ouvi a Rui Rio sobre a reforma do Estado peca por um simplismo confrangedor: explicou como o Estado se deve organizar, mas omitiu o princípio de tudo, ou seja, a definição das funções que competem ou não ao Estado desempenhar. É que nessa definição entram as ideologias, as preferências subjectivas, e as escolhas serão puramente políticas, não se decidem com uma regra de três simples.
O resto é pessoal. Durante o consulado de Passos Coelho, Rui Rio, quer queira ou não queira, passou a imagem de alguém com muita pressa de arredar o líder e desembaraçar o caminho para ele próprio chegar ao poder. Em política, o que parece é. E Rio, pelos meios que frequentava e pelas declarações que fazia, mais parecia adversário do que apoiante do governo de Passos Coelho, na fase da existência mais dura e difícil que o PSD regista na sua história desde Sá Carneiro. A meu ver, e ao ver de muita gente, Rio violou a obrigação de lealdade partidária. É confiável?!
Santana. Igualzinho a si próprio. Doce, charmoso, afectivo, é (quase) impossível não ser cativado por ele. Um homem bom, sem dúvida. Se pudesse, distribuiria felicidade por toda a gente, embora a felicidade ou o seu contrário seja do foro privadíssimo de cada um, e nada que se espere de um primeiro-ministro. Esta noite tentou ser comedido: que não devíamos falar em “sonhos”, que os tempos exigiam “realismo”. Mas na mensagem final aos militantes do PSD, o coração e a imaginação falaram mais alto: tinham — pelo menos eles, militantes — de acreditar com toda a força que Portugal podia crescer muito, podia até tornar-se num dos países mais atractivos e desenvolvidos da Europa! Quer dizer: acreditar, ter fé, é mais de meio caminho andado! “Chassez le naturel et il revient au galop”, disse um sábio francês cujo nome já esqueci.
Em 2005, Santana inventou uma cabala das empresas de sondagens destinada a roubar-lhe a vitória eleitoral nas eleições de Fevereiro de 2005. Ainda hoje — esta noite — não percebe por que perdeu para Sócrates, não sabe que “trapalhadas” eram essas que lhe atribuíam e que Sampaio aproveitou para o remover do cargo. No PÚBLICO de 28.02.05, escrevi: “Daqui a uns anos haverá um livro [de história] com um capítulo intitulado As trapalhadas.” Vou dar um exemplo.
Pouco depois de Santana Lopes tomar posse como primeiro-ministro, sucedendo a um Barroso muito mais interessado no lustro da sua carreira pessoal do que no país que governava, Bagão Félix, ministro das Finanças, fez uma aparição televisiva, encenada da forma mais solene possível, em que explicou aos nativos que aqueles eram tempos de vacas magras e o Estado tinha, consequentemente, de cortar despesa. Tudo isto, é claro, com um ar tão grave que até eu acreditei que o ministro falava a sério. Menos de um mês depois desta comunicação ao país, Santana foi aos Açores. Vimo-lo, se bem me lembro, numa pradaria sob um céu nublado, rodeado de câmaras e microfones, jornalistas, personalidades regionais e mirones indescritos. Vimo-lo rodeado de carinho. Vai daí, o primeiro-ministro, emocionado com tanto afecto, abriu o seu coração: “Não quero impor mais sacrifícios às portuguesas e aos portugueses...” (cito de memória). Pensei nessa altura, ingenuamente, que o primeiro-ministro acabara de perder o seu ministro das Finanças, dada a vexatória desautorização. Mas nada: Bagão continuou no seu posto, e Santana não deve ter achado que fizera “trapalhada” alguma! É confiável?!


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