Duas crónicas de aviso à
navegação. Repetitivas, monocórdicas, inúteis, manguais apodrecidos numa eira
esburacada. Crónicas sobre as vulnerabilidades estatais, sociais, éticas, habituais.
São a crónica de António Barreto sobre o Estado, e a de Maria de
Fátima Bonifácio sobre os concorrentes a um partido. Coisas já apontadas, e
sempre chocantes, chamadas de atenção, pontos de vista, no fervilhar pasmado do
nosso evoluir sem segurança de princípios, na flacidez libertária que se impôs em
florida revolução, e que António Gedeão tão finamente descreve:
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser
antes.
Cada um é seus caminhos.
As regras são importantes,
como a tabuada exemplifica e tudo na natureza demonstra.
Frágil. Vulnerável. O Estado
António Barreto
DN, 7/1/18
Todos os partidos precisam de pensar, com certeza. Mas os dois
principais, se o querem continuar a ser, precisam disso como de pão. Se não o
fizerem e se não esclarecerem, correrão riscos de fragmentação ou de
pulverização, a exemplo de grande parte dos países europeus.
Mais de um ano antes de
eleições, há tempo para pensar e debater. Não chegará para tudo esclarecer, mas
o processo pode ter início. Que é cada dia mais urgente, com a crise
europeia, as ameaças de nova crise financeira e as tensões internacionais.
Para o debate português,
entre outras questões vitais, uma parece emergir: a da fragilidade do
Estado. Os últimos anos foram cruéis e reveladores.
O Estado ficou frágil
diante dos interesses de meia dúzia de grupos, de famílias e de bancos sem
escrúpulos, com métodos que incluíram o banditismo, o crime de colarinho branco
e o aproveitamento de oportunidades que o regime democrático oferecia.
O Estado esteve frágil
perante as actuações predadoras de bandoleiros que conseguiram utilizar todos
os processos democráticos de organização do poder político, da Administração
Pública e dos órgãos de soberania, para corromper, enriquecer e locupletar.
O Estado expôs
fragilidades por falta de inteligência e de ciência, ao ter de recorrer a
empresas, assessores, consultores e escritórios, que, dizendo o que o Estado
queria ouvir, obrigaram o Estado a fazer o que eles queriam que fizesse.
O Estado mostrou-se
frágil por ocasião dos incêndios de Verão, os quais, apesar de previsíveis,
provocaram uma das maiores hecatombes da história do país, no quadro de um
fenómeno raro de incompetência e de irresponsabilidade.
O Estado revelou-se
frágil no momento em que, imagine-se só, até os depósitos de armas das Forças
Armadas foram violados e roubados, na ausência, por enquanto, de infractores e
de responsáveis.
O Estado patenteou
fragilidade quando, nas operações de privatização, tantas vezes para entidades
públicas estrangeiras, não defendeu os interesses nacionais com mais rigor,
seja a estabilidade das empresas sejam os direitos dos cidadãos e dos
consumidores.
O Estado exibe toda a
sua fragilidade quando o sistema de Justiça, capaz, por um lado, de resolver
centenas de milhares casos do dia-a-dia, é, por outro lado, absolutamente
incapaz de, com respeito pelos direitos dos cidadãos e em obediência às regras
de uma democracia liberal, tratar a tempo e horas dos bandidos com grau
universitário, dos criminosos de colarinho branco, dos malfeitores com nome de
família, dos facínoras com propriedade, dos celerados com empresa, dos
delinquentes eleitos e dos corruptos com cartão de partido.
O Estado evidenciou a
sua enorme fragilidade ao não conseguir levar a bom termo, em tempo decente,
processos de investigação de um primeiro-ministro, de ministros, de secretários
de Estado, de adjuntos e assessores do governo, de directores-gerais, de
presidentes de institutos públicos, de presidentes de conselhos de
administração e de administradores de empresas públicas e privadas, de oficiais
das Forças Armadas e até de um chefe de polícia acusados há anos e à espera de
não se sabe o quê.
Em tudo quanto diz
respeito à corrupção política, ao poder económico, às regalias dos partidos
políticos e ao privilégio de famílias com nome e fazenda, o Estado democrático
encontra-se jacente e moribundo.
O Estado português não
está à altura da democracia europeia, da liberdade e da protecção devida aos
cidadãos.
OPINIÃO
Nenhum me convém
O debate interessou-me
porque Rio ou Santana são candidatos a primeiro-ministro. Mas são confiáveis?
Maria de Fátima Bonifácio
OBSERVADOR, 6 de Janeiro de
2018
Acabo de ver na RTP
(05.01.18) o frente-a-frente entre Rui Rio e Santana Lopes. Não sou filiada no
PSD, mas o debate interessou-me porque qualquer deles é um candidato a
primeiro-ministro. Para este efeito, nenhum me convém.
Comecemos por Rui Rio.
A sua visão governativa é de longe mais consistente do que a do outro
concorrente. Subscrevo a linha geralíssima que presidiria ao exercício do seu
mandato: colocar o interesse de Portugal a prazo muito à frente da popularidade
imediata — exactamente o contrário do que faz António Costa. Tenho razões para
crer que teria a necessária coragem política para tal: demonstrou-o ao longo de
oito anos durante a sua presidência da Câmara do Porto. Mas a solidez técnica
não resolve toda a política, que requere empatia, sensibilidade e intuição que
não vêm descritas nos manuais. Portugal inteiro não cabe na Av. dos Aliados; e
a volumetria dos interesses que procuram capturar o governo não é comparável à
do paroquial Futebol Clube do Porto. Uma boa formação técnica, que julgo
indispensável, não deve transformar-se em tecnocratismo ou sobrepor-se a uma
visão integrada do país, que abrange inevitavelmente matérias que são mais do
foro da compreensão do que de equações e medições quantitativas; trata-se de
matérias que não cabem numa folha Excel. Governar um país começa por ser uma
imersão num mundo humano, num universo emocional que escapa à técnica e à
ciência.
O que ouvi a Rui Rio
sobre a reforma do Estado peca por um simplismo confrangedor: explicou como o
Estado se deve organizar, mas omitiu o princípio de tudo, ou seja, a definição
das funções que competem ou não ao Estado desempenhar. É que nessa definição
entram as ideologias, as preferências subjectivas, e as escolhas serão
puramente políticas, não se decidem com uma regra de três simples.
O resto é pessoal.
Durante o consulado de Passos Coelho, Rui Rio, quer queira ou não queira,
passou a imagem de alguém com muita pressa de arredar o líder e desembaraçar o
caminho para ele próprio chegar ao poder. Em política, o que parece é. E Rio,
pelos meios que frequentava e pelas declarações que fazia, mais parecia adversário
do que apoiante do governo de Passos Coelho, na fase da existência mais dura e
difícil que o PSD regista na sua história desde Sá Carneiro. A meu ver, e ao
ver de muita gente, Rio violou a obrigação de lealdade partidária. É
confiável?!
Santana. Igualzinho a si
próprio. Doce, charmoso, afectivo, é (quase) impossível não ser cativado por
ele. Um homem bom, sem dúvida. Se pudesse, distribuiria felicidade por toda a
gente, embora a felicidade ou o seu contrário seja do foro privadíssimo de cada
um, e nada que se espere de um primeiro-ministro. Esta noite tentou ser
comedido: que não devíamos falar em “sonhos”, que os tempos exigiam “realismo”.
Mas na mensagem final aos militantes do PSD, o coração e a imaginação falaram
mais alto: tinham — pelo menos eles, militantes — de acreditar com toda a força
que Portugal podia crescer muito, podia até tornar-se num dos países mais
atractivos e desenvolvidos da Europa! Quer dizer: acreditar, ter fé, é mais
de meio caminho andado! “Chassez le naturel et il revient au galop”,
disse um sábio francês cujo nome já esqueci.
Em 2005, Santana inventou
uma cabala das empresas de sondagens destinada a roubar-lhe a vitória eleitoral
nas eleições de Fevereiro de 2005. Ainda hoje — esta noite — não percebe por
que perdeu para Sócrates, não sabe que “trapalhadas” eram essas que lhe
atribuíam e que Sampaio aproveitou para o remover do cargo. No PÚBLICO de
28.02.05, escrevi: “Daqui a uns anos haverá um livro [de história] com um
capítulo intitulado As trapalhadas.” Vou dar um
exemplo.
Pouco depois de Santana
Lopes tomar posse como primeiro-ministro, sucedendo a um Barroso muito mais
interessado no lustro da sua carreira pessoal do que no país que governava, Bagão
Félix, ministro das Finanças, fez uma aparição televisiva, encenada da forma
mais solene possível, em que explicou aos nativos que aqueles eram tempos de
vacas magras e o Estado tinha, consequentemente, de cortar despesa. Tudo isto,
é claro, com um ar tão grave que até eu acreditei que o ministro falava a sério.
Menos de um mês depois desta comunicação ao país, Santana foi aos Açores. Vimo-lo,
se bem me lembro, numa pradaria sob um céu nublado, rodeado de câmaras e
microfones, jornalistas, personalidades regionais e mirones indescritos.
Vimo-lo rodeado de carinho. Vai daí, o primeiro-ministro, emocionado com tanto
afecto, abriu o seu coração: “Não quero impor mais sacrifícios às portuguesas e
aos portugueses...” (cito de memória). Pensei nessa altura, ingenuamente, que o
primeiro-ministro acabara de perder o seu ministro das Finanças, dada a
vexatória desautorização. Mas nada: Bagão continuou no seu posto, e Santana não
deve ter achado que fizera “trapalhada” alguma! É confiável?!
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