terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Ainda o FINANCIAMENTO DOS PARTIDOS


Mais Crónicas do OBSERVADOR, que, ao contextualizarem um acontecimento com aparência de pueril jogo de escondidas, mas contendo, afinal, os vírus de que desde sempre enfermou a política portuguesa, desde o seu golpe de Estado revolucionário que inverteu tendências mas não melhorou consciências, fazem, em analepse, o historial que nos permite entender a questão de dependência do Estado do financiamento dos partidos e por isso , a certa altura, talvez por menor fiscalização das cúpulas, talvez por gozo incendiário que coloca os deputados respectivos ao nível dos incendiários ocultos ou desleixados da floresta, resolvendo melhorar o seu respectivo pecúlio assaltando os cofres do Estado. As crónicas de Rui Ramos - «Os partidos não precisam de nós» - e de Manuel Villaverde Cabral - «Um ano particularmente saboroso?» - vêm, pois, explicitar melhor, historiando os factos que tanta indignação provocaram em outros mais cronistas, como os jovens já citados, João Miguel Tavares e Alexandre Homem Cristo.

Os partidos não precisam de nós
Rui Ramos
OBSERVADOR, 2/1/18
Os partidos são a prova de que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: financiados com dinheiro público, não precisam da nossa militância, nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito.
Para perceber o que está verdadeiramente em causa na lei de financiamento dos partidos, é preciso recuar no tempo, até 1975 e à Assembleia Constituinte. Portugal não esteve parado desde então. A sociedade portuguesa mudou provavelmente mais do que em qualquer outro momento da sua história. Mas na Assembleia da República, é como se o ano fosse eternamente 1975. Com uns deputados a mais ou a menos, os mesmos partidos permanecem nos mesmos lugares, com o BE como herdeiro da velha UDP e os Verdes como novo MDP-CDE. Poucas assembleias representativas europeias terão um ar tão retro. Até um velho Partido Comunista ainda lá está, indiferente à queda do muro de Berlim em 1989. É como se Portugal não fizesse parte da Europa que nos últimos anos viu emergir o En Marche de Macron, o Front National, o Podemos, os Ciudadanos, o Movimento 5 Stelle, a AfD, o Syriza ou o Labour Party de Jeremy Corbyn.
A razão pela qual os partidos portugueses parecem invulneráveis a tudo – crise do Euro, acusação a José Sócrates, revolta contra a globalização, etc. — não é misteriosa. Em 1974, havia um grande medo da democracia. Ninguém sabia o que os portugueses iriam escolher em eleições livres, nem como os eleitos se iriam comportar. Daí, um sistema, apoiado pelo MFA, que reservou o monopólio da representação política a um pequeno número de partidos, e que salvaguardou a hegemonia dos dirigentes dentro de cada partido. O modelo de financiamento público foi no mesmo sentido: tornou a actividade partidária fundamentalmente dependente do Estado e assegurou desse modo que dificilmente em Portugal apareceriam organizações políticas dotadas para desafiar os partidos pagos com o dinheiro dos impostos.
Os actuais partidos parlamentares transformaram-se assim em partidos dominantes sem nunca terem precisado de ser movimentos de massas, como os partidos sociais democratas ou democrata-cristãos da Europa ocidental. Em Portugal, os partidos tiveram sempre muito poucos militantes a pagar quotas em relação ao número de votantes, por comparação com os seus correligionários europeus. O Estado dispensou-os, em geral, do trabalho de inscrever cidadãos.
A elaboração discreta e anónima da última lei de financiamento é reveladora. Os líderes partidários não têm ilusões sobre a conta em que são tidos. Mesmo com a actual onda de prosperidade, menos de um quarto dos portugueses confia nos partidos. Mas ninguém espera que votem noutros. Em quarenta anos, a sociedade portuguesa nunca pareceu prestes a sair da camisa de forças partidária que o MFA lhe vestiu (uma breve excepção à regra, em 1985, foi propiciada pelo presidente da república). Portugal enriqueceu, mas uma grande parte da riqueza é hoje controlada por um Estado cuja despesa subiu de cerca de 25% para 50% do PIB. Ora, os partidos não se limitam a ser os gestores do Estado: são o próprio Estado, que funciona como o aviário dos seus dirigentes e clientelas. Eis porque as crises e os escândalos não geram Podemos nem Ciudadanos deste lado da fronteira. Os partidos são a prova de que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: não precisam da nossa militância, nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito. Que ainda assim tentem salvar as aparências, com leis escondidas no sapatinho de Natal, é quase comovedor.
O actual regime é uma mistura de democracia eleitoral e de autocracia partidária. Numa sociedade envelhecida, endividada e dependente do Estado, a alternativa aos partidos tem sido a abstenção: de 8,5% em 1975 para 44,1% em 2015. É muito fácil simular indignação nas redes sociais e exigir vetos ao presidente. É mais difícil saber se o regime em Portugal pode ser outra coisa.

Um ano particularmente saboroso?
OBSERVADOR,30/12/2017
Os partidos são produtos da sociedade e do facto de esta ser plural, mas não temos de ser nós a pagar-lhes, a não ser voluntariamente, como houve quem o fizesse sob a ditadura.
Faz quinze dias que o actual primeiro-ministro declarou que 2017 é «um ano particularmente saboroso para Portugal». A verdade é que pouca gente fora do governo e dos seus aliados terá percebido a triste ironia de uma declaração daquelas depois da maior série de desastres gravíssimos que puseram a nu a incompetência e a falta de consciência política do governo. E o ano só findou com toda uma série de incidentes que fizeram reaparecer essa corrupção larvar que nunca deixou de minar o nosso sistema político!
O governo não só não se dá conta que os indicadores económicos que tanto badala não são tudo, como crê que a generalidade das pessoas se alimenta de ideologia e de tricas partidárias. Para uma coligação governamental que fez do Estado o princípio e o fim da vida social, é de surpreender que não perceba que os gastos públicos e o comportamento individual e colectivo do pessoal político, bem como das suas clientelas, constituam uma referência central da avaliação que as pessoas fazem dos governos e dos partidos.
É por isso que todos os actos provados e prováveis de corrupção por parte dos ocupantes do aparelho de Estado não só aprofundam aquilo que um estudioso chamou «a distância ao poder» sentida pelo comum dos mortais, como os afasta dos partidos e especialmente dos governantes no pelouro. Não é um mistério que é desse «distanciamento» que provém, em boa parte, a tendência cada vez maior de o eleitorado se abster nas eleições, concretamente em Portugal, onde nas últimas legislativas, entre os que não compareceram às urnas e os votos brancos e nulos, absteve-se quase 50% do eleitorado; e nas presidenciais, onde o mais votado não chegou a 25% dos inscritos.
Independentemente da opinião que tenhamos acerca de um sistema político cuja Constituição nunca foi votada, bem como nunca foram votadas as decisões relativas à União Europeia, e de um sistema de partidos virtualmente idêntico àquele que surgiu das primeiras eleições livres em 1975, em suma, um sistema político-partidário com 40 anos, não referendado e praticamente imutável, onde apenas dois partidos apenas chegam ao topo, independentemente pois das opiniões acerca destas quatro décadas de rotativismo mal mascarado, no qual metade dos eleitores não se revê, o certo é que sucessivas gerações de portugueses se alhearam desse sistema e metem no mesmo saco todos os seus agentes que se aproveitam ou parecem aproveitar-se dos benefícios materiais propiciados pelo poder estatal: dinheiro e empregos!
Não é de admirar que episódios lamentáveis como o da alegada IPSS das «Raríssimas», com a demissão de mais um membro do governo e a ameaça pendente sobre um ministro, enquanto o primeiro é substituído à pressa por um familiar próximo de um antigo ministro e actual deputado europeu do mesmo partido, não espanta, pois, que isso surja como a repetição dos mesmos procedimentos ilícitos de compadrio e possível desvio de dinheiros públicos. Ao mesmo tempo, rebentam nos «media» operações de duvidosa lisura como a do «pernil venezuelano»…
Não é isto que tornará mais «saborosas» as memórias de 2017! E menos ainda o serão as memórias do incidente gravíssimo com que o ano fechou. Estou a falar da reunião secreta dos partidos na qual, sem nome dos participantes nem actas da discussão, foi decidido à nossa revelia aumentar os proventos desses mesmos partidos. Uma vergonha que só pode ter fabricado mais abstencionistas futuros!
A este respeito há, com efeito, sete coisas a sublinhar. Primeiro: se não se tratasse de algo que os partidos já sabiam ser desaprovado pela opinião pública, por que razão se esconderam os partidos como conspiradores? Segundo: é hipócrita o BE ao pretender, depois de ter votado com os seus cúmplices, sacudir a água do capote de «amigo do povo» com que costuma apresentar-se ao público. Terceiro: foi esperto o CDS ao revelar o segredo, pois se vier a perder os benefícios aprovados, ganhará a fama de ter denunciado o «truque» e isso pode garantir-lhe um lugar num futuro «bloco central». Quarto: a propósito de «bloco central», esta convergência clandestina entre o PS e o PSD, nada de bom augura quanto a este último nem quanto ao seu futuro líder. Quinto: quase apostaria que o Presidente da República vai «vetar» o decreto. Sexto: se o PR não tiver coragem e os partidos persistirem com o abuso de confiança, esperemos que o Tribunal Constitucional invente um pretexto qualquer para «chumbar» o decreto.
Por último, temo que pouco tenham entendido do assunto os comentadores que, genuinamente convencidos que a democracia precisa de partidos, acham que o Estado tem de lhes pagar. Não: os partidos é que precisam da democracia para serem livres de se constituir, agir e eventualmente exercer o poder. Os partidos são produtos da sociedade e do facto de esta ser plural, mas não temos de ser nós a pagar-lhes, a não ser voluntariamente, como houve quem o fizesse sob a ditadura. Pretender pagar aos partidos desta maneira clandestina só tem contribuído para a perda de prestígio deles e, significativamente, não da democracia!




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