Mais Crónicas do OBSERVADOR,
que, ao contextualizarem um acontecimento com aparência de pueril jogo de
escondidas, mas contendo, afinal, os vírus de que desde sempre enfermou a política
portuguesa, desde o seu golpe de Estado revolucionário que inverteu tendências
mas não melhorou consciências, fazem, em analepse, o historial que nos permite
entender a questão de dependência do Estado do financiamento dos partidos e por
isso , a certa altura, talvez por menor fiscalização das cúpulas, talvez por
gozo incendiário que coloca os deputados respectivos ao nível dos incendiários
ocultos ou desleixados da floresta, resolvendo melhorar o seu respectivo
pecúlio assaltando os cofres do Estado. As crónicas de Rui Ramos
- «Os partidos não precisam de nós» - e
de - «Um
ano particularmente saboroso?» - vêm,
pois, explicitar melhor, historiando os factos que tanta indignação provocaram
em outros mais cronistas, como os jovens já citados, João Miguel Tavares
e Alexandre Homem Cristo.
Os partidos não precisam de nós
Rui Ramos
OBSERVADOR, 2/1/18
Os partidos são a prova
de que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: financiados com dinheiro
público, não precisam da nossa militância, nem do nosso afecto nem sequer do
nosso respeito.
Para perceber o que está
verdadeiramente em causa na lei de financiamento dos partidos, é preciso
recuar no tempo, até 1975 e à Assembleia Constituinte. Portugal não esteve
parado desde então. A sociedade portuguesa mudou provavelmente mais do que
em qualquer outro momento da sua história. Mas na Assembleia da
República, é como se o ano fosse eternamente 1975. Com uns deputados a
mais ou a menos, os mesmos partidos permanecem nos mesmos lugares, com o BE
como herdeiro da velha UDP e os Verdes como novo MDP-CDE. Poucas assembleias
representativas europeias terão um ar tão retro. Até um velho Partido
Comunista ainda lá está, indiferente à queda do muro de Berlim em 1989. É como
se Portugal não fizesse parte da Europa que nos últimos anos viu emergir o En
Marche de Macron, o Front National, o Podemos, os Ciudadanos, o Movimento 5
Stelle, a AfD, o Syriza ou o Labour Party de Jeremy Corbyn.
A razão pela qual os
partidos portugueses parecem invulneráveis a tudo – crise do Euro, acusação a
José Sócrates, revolta contra a globalização, etc. — não é misteriosa. Em
1974, havia um grande medo da democracia. Ninguém sabia o que os
portugueses iriam escolher em eleições livres, nem como os eleitos se iriam
comportar. Daí, um sistema, apoiado pelo MFA, que reservou o monopólio da
representação política a um pequeno número de partidos, e que salvaguardou a
hegemonia dos dirigentes dentro de cada partido. O modelo de
financiamento público foi no mesmo sentido: tornou a actividade
partidária fundamentalmente dependente do Estado e assegurou desse modo que
dificilmente em Portugal apareceriam organizações políticas dotadas para
desafiar os partidos pagos com o dinheiro dos impostos.
Os actuais partidos
parlamentares transformaram-se assim em partidos dominantes sem nunca terem
precisado de ser movimentos de massas, como os partidos sociais democratas ou
democrata-cristãos da Europa ocidental. Em Portugal, os partidos tiveram sempre
muito poucos militantes a pagar quotas em relação ao número de votantes, por
comparação com os seus correligionários europeus. O Estado dispensou-os, em
geral, do trabalho de inscrever cidadãos.
A elaboração discreta e
anónima da última lei de financiamento é reveladora. Os líderes partidários não
têm ilusões sobre a conta em que são tidos. Mesmo com a actual onda de
prosperidade, menos de um quarto dos portugueses confia nos partidos.
Mas ninguém espera que votem noutros. Em quarenta anos, a sociedade
portuguesa nunca pareceu prestes a sair da camisa de forças partidária que o
MFA lhe vestiu (uma breve excepção à regra, em 1985, foi propiciada pelo
presidente da república). Portugal enriqueceu, mas uma grande
parte da riqueza é hoje controlada por um Estado cuja despesa subiu de cerca de
25% para 50% do PIB. Ora, os partidos não se limitam a ser os gestores
do Estado: são o próprio Estado, que funciona como o aviário dos seus
dirigentes e clientelas. Eis porque as crises e os escândalos não geram
Podemos nem Ciudadanos deste lado da fronteira. Os partidos são a prova de
que em Portugal quem tem o Estado, tem tudo: não precisam da nossa militância,
nem do nosso afecto nem sequer do nosso respeito. Que ainda assim tentem salvar
as aparências, com leis escondidas no sapatinho de Natal, é quase comovedor.
O actual regime é uma
mistura de democracia eleitoral e de autocracia partidária. Numa sociedade
envelhecida, endividada e dependente do Estado, a alternativa aos partidos tem
sido a abstenção: de 8,5% em 1975 para 44,1% em 2015. É muito fácil simular
indignação nas redes sociais e exigir vetos ao presidente. É mais difícil saber
se o regime em Portugal pode ser outra coisa.
Um ano particularmente saboroso?
OBSERVADOR,30/12/2017
Os partidos são produtos
da sociedade e do facto de esta ser plural, mas não temos de ser nós a
pagar-lhes, a não ser voluntariamente, como houve quem o fizesse sob a
ditadura.
Faz quinze dias que o
actual primeiro-ministro declarou que 2017 é «um ano particularmente saboroso para Portugal». A
verdade é que pouca gente fora do governo e dos seus aliados terá percebido a
triste ironia de uma declaração daquelas depois da maior série de desastres
gravíssimos que puseram a nu a incompetência e a falta de consciência política
do governo. E o ano só findou com toda uma série de incidentes que fizeram
reaparecer essa corrupção larvar que nunca deixou de minar o nosso sistema
político!
O governo não só não se dá
conta que os indicadores económicos que tanto badala não são tudo, como crê que
a generalidade das pessoas se alimenta de ideologia e de tricas partidárias. Para
uma coligação governamental que fez do Estado o princípio e o fim da vida
social, é de surpreender que não perceba que os gastos públicos e o
comportamento individual e colectivo do pessoal político, bem como das suas
clientelas, constituam uma referência central da avaliação que as pessoas fazem
dos governos e dos partidos.
É por isso que todos os
actos provados e prováveis de corrupção por parte dos ocupantes do aparelho de
Estado não só aprofundam aquilo que um estudioso chamou «a distância ao
poder» sentida pelo comum dos mortais, como os afasta dos partidos e
especialmente dos governantes no pelouro. Não é um mistério que é desse
«distanciamento» que provém, em boa parte, a tendência cada vez maior de o
eleitorado se abster nas eleições, concretamente em Portugal, onde nas últimas
legislativas, entre os que não compareceram às urnas e os votos brancos e
nulos, absteve-se quase 50% do eleitorado; e nas presidenciais, onde o mais
votado não chegou a 25% dos inscritos.
Independentemente da
opinião que tenhamos acerca de um sistema político cuja Constituição nunca foi
votada, bem como nunca foram votadas as decisões relativas à União Europeia, e
de um sistema de partidos virtualmente idêntico àquele que surgiu das primeiras
eleições livres em 1975, em suma, um sistema político-partidário com 40 anos,
não referendado e praticamente imutável, onde apenas dois partidos apenas
chegam ao topo, independentemente pois das opiniões acerca destas quatro
décadas de rotativismo mal mascarado, no qual metade dos eleitores não se revê,
o certo é que sucessivas gerações de portugueses se alhearam desse sistema e
metem no mesmo saco todos os seus agentes que se aproveitam ou parecem
aproveitar-se dos benefícios materiais propiciados pelo poder estatal: dinheiro
e empregos!
Não é de admirar que
episódios lamentáveis como o da alegada IPSS das «Raríssimas», com a demissão
de mais um membro do governo e a ameaça pendente sobre um ministro, enquanto o
primeiro é substituído à pressa por um familiar próximo de um antigo ministro e
actual deputado europeu do mesmo partido, não espanta, pois, que isso surja
como a repetição dos mesmos procedimentos ilícitos de compadrio e possível
desvio de dinheiros públicos. Ao mesmo tempo, rebentam nos «media» operações de
duvidosa lisura como a do «pernil venezuelano»…
Não é isto que tornará
mais «saborosas» as memórias de 2017! E menos ainda o serão as memórias do
incidente gravíssimo com que o ano fechou. Estou a falar da reunião secreta dos
partidos na qual, sem nome dos participantes nem actas da discussão, foi
decidido à nossa revelia aumentar os proventos desses mesmos partidos. Uma
vergonha que só pode ter fabricado mais abstencionistas futuros!
A este respeito há, com
efeito, sete coisas a sublinhar. Primeiro: se não se tratasse de
algo que os partidos já sabiam ser desaprovado pela opinião pública, por que
razão se esconderam os partidos como conspiradores? Segundo: é
hipócrita o BE ao pretender, depois de ter votado com os seus cúmplices,
sacudir a água do capote de «amigo do povo» com que costuma apresentar-se ao
público. Terceiro: foi esperto o CDS ao revelar o segredo, pois
se vier a perder os benefícios aprovados, ganhará a fama de ter denunciado o
«truque» e isso pode garantir-lhe um lugar num futuro «bloco central». Quarto:
a propósito de «bloco central», esta convergência clandestina entre o PS e o
PSD, nada de bom augura quanto a este último nem quanto ao seu futuro líder.
Quinto: quase apostaria que o Presidente da República vai «vetar» o
decreto. Sexto: se o PR não tiver coragem e os partidos
persistirem com o abuso de confiança, esperemos que o Tribunal Constitucional
invente um pretexto qualquer para «chumbar» o decreto.
Por último, temo que pouco
tenham entendido do assunto os comentadores que, genuinamente convencidos que a
democracia precisa de partidos, acham que o Estado tem de lhes pagar. Não: os
partidos é que precisam da democracia para serem livres de se constituir, agir
e eventualmente exercer o poder. Os partidos são produtos da sociedade e do
facto de esta ser plural, mas não temos de ser nós a pagar-lhes, a não ser
voluntariamente, como houve quem o fizesse sob a ditadura. Pretender pagar
aos partidos desta maneira clandestina só tem contribuído para a perda de
prestígio deles e, significativamente, não da democracia!
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