quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Segurar o barco


Maria João Avillez analisa a intriga amorosa entre o PM e o PR. Amores frágeis, de desconfiança e cautela, não fossem eles pertencentes a equipas políticas de mútua rivalidade. Ambos engoliram os respectivos sapos, e acataram-se, naturalmente, em função, sobretudo, do cargo próprio, que nenhum deles pretendia nem pretende perder. Mas, apesar dos sorrisos benévolos, também nunca acreditei muito na radiosa simpatia humana de Marcelo. É certo que um dia ficará na História como o presidente do povo, por ele amado, como o foi o rei D. Pedro V, rei que visitava, nos hospitais, sem receio de contágio, os doentes das epidemias de Cólera e de Febre Amarela causadora de muitos mortos e fugas da capital, como Cesário tão bem lembraria no seu extenso poema “Nós”:
«Foi quando em dois Verões, seguidamente, a Febre E o Cólera também andaram na cidade, Que esta população, com um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade. Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas, (Até então nós só tivéramos sarampo), Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo! Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga. …. «O LIVRO DE CESÁRIO VERDE»
De toda a maneira, temos uma história recheada de chefes amados pelo povo. Também o nosso Pedro I - e da linda Inês -  apesar da crueldade, foi amado, mas porque ia para os arraiais dançar com o seu povo. Sem televisão, é claro, e por gosto próprio, na ausência ainda de discotecas, ou mesmo de serões do Paço. O nosso Presidente também convive bem com o povo, que se sente honrado pela sua presença paternal. Não podemos esquecer o seu abraço aos familiares das vítimas nos incêndios, como as televisões e os jornais mostraram, por isso ficará na História, e também porque empurrou o nosso Primeiro Ministro para a assumpção das suas responsabilidades a respeito desses incêndios e de muitos outros casos inflamados, diz-se.
Enfim, nada disto parece sério, mas é bem nosso. Como a nossa Amália do coração. Por isso a recordo e escuto, pela justificação provável da tristeza do nosso PM, no seu desamparo, por momentâneo que seja. Que o discurso de Amália serve, na ambiguidade dos seus dizeres, de terno e mavioso exemplo de comparação. Para complementar, sem grande rigor, é certo, o artigo rigoroso de Maria João Avillez. Puro gozo recreativo.

Não Sei Porque Te Foste Embora
 Não sei por que te foste embora
Não sei que mal te fiz, que importa
Só sei que o dia corre e àquela hora
Não sei por que não vens bater-me à porta
Não sei se gostas de outra agora
Se eu estou ou não para ti já morta
Não sei, não sei nem me interessa
Não me sais é da cabeça
Que não vê que eu te esqueci
Não sei, não sei o que é isto
Já não gosto e não resisto
Não te quero e penso em ti
Não quero este meu querer no peito
Não quero esperar por ti nem espero
Não quero que me queiras contrafeito
Nem quero que tu saibas que eu te quero
Depois de este meu querer desfeito
Nem quero o teu amor sincero
Não quero mais encontrar-te
Nem ouvir-te nem falar-te
Nem sentir o teu calor
Porque eu, não quero que vejas
Que este amor que não desejas
Só deseja o teu amor
Porque eu não quero que vejas
Que este amor que não desejas
Só deseja o teu amor

Eles os dois
OBSERVADOR, 3/1/2018
Foi Marcelo quem sinalizou a passagem à nova qualidade de vigilante: acção governativa com medidas calendarizadas, contas certas, respostas em tempo. Nova vida para um governo em máxima fragilização.
1. António Costa é mais dado à facilidade leve das coisas, à boa notícia, a gente feliz sem lágrimas. Com vento de feição, ei-lo seguro de si, pisando forte. Com ventanias contrárias, perde de imediato o norte e com ele o critério e, depois, as boas maneiras. É como se entrasse em desregulação e testemunhámos isso: apanhado na tormenta, o primeiro-ministro reage sempre mal. Estamos lembrados da sua total e fatal insegurança e dos (alguns irremediáveis) erros que ela produziu. O espectáculo que deu de si mesmo — politicamente, humanamente, socialmente, comunicacionalmente – transformou-lhe a vida num inferno. Afinal nem tudo eram rosas. Que longe estava a tão louvada “habilidade” para lidar com a geringonça, o funcionalismo público feliz com reversões e aumentos, a esquerda à sua esquerda idem, as boas sondagens.
Mas agora tratava-se não já da sua considerável fatia de poder e influência, mas do país que de repente o abocanhava e mordia, e mesmo o Presidente — falsa bela adormecida — acordava do seu ficcional sono e virava-lhe o dente. Tudo de repente corria mal. A ele, sobretudo. Estamos lembrados, sim: o povo de Pedrogão disse-lhe que não o queria lá este Natal.
2.  O princípio da bonança – ou assim o tomou António Costa – veio com a eleição do ministro das Finanças para o Eurogrupo (num passe de mágica entre o político que em Lisboa agrada e acede a comunistas e bloquistas que tudo abominam na UE, o titular das Finanças comprometido até ao osso em Bruxelas com a ortodoxia financeira vigente e o folião que não desdenha selfizar-se com uma socialite platinada).
Seja como for, Costa rejubilou com a eleição do ministro, reivindicou para si uma boa quota parte dela e voltou a agir com aquele inconfundível sorriso das favas contadas. Não sei se serão, mas até lá a vida política do primeiro ministro será um caminho de pedras. Os distraídos discordarão — então as boas notícias na frente económica não garantirão por si só uma viagem política sem escolhos? –, porque os distraídos talvez não tenham reparado na viragem do Presidente da República: o “companheiro” virou agora um “vigilante”.
Ter um Chefe de Estado à perna é um pavoroso constrangimento político (pior que saber que haja o que houver se usará, durante dois anos, uns sapatos três números abaixo). E se o Chefe de Estado é Marcelo nem se sabe a que exemplo de, digamos, inconforto político se poderia recorrer para explicar como a “forma mentis” do Presidente da República e o seu invulgar modo der ser tornarão mais complexa a vida do chefe do governo, pretendendo embora sempre o contrário (mas Marcelo é exímio no “não parecer”). Há coisas irremovíveis e cento e muitos mortos por clamoroso falhanço do Estado é uma delas: irremovíveis das memórias e da nossa vergonha colectiva e ninguém sabe isto melhor que o Presidente da República. Foi no seu mandato que elas ocorreram e, pior, foi a ele que o país ouviu dizer, duas horas depois, ainda sem balanço credível ou dados sérios, que “tudo tinha sido feito” quando muito falhara e pouco se fizera naqueles brasidos.
3. Vi sem surpresa — foi aliás diante de nós que ele despiu uma pele e vestiu outra — esta troca do Presidente da República de companheiro para vigilante. Tempos atrás o companheiro acolhia com (infantil) alegria o chapéu de chuva que Costa, com (grotesca) solicitude, lhe estendia numa tarde de má memória em Paris. Hoje o companheiro – embora sempre de “serviço” — está mais recatado e o vigilante mais activo.
Nada disto era de resto imprevisível, havia de chegar “o” dia. Chegou pelas piores razões mesmo que até ao início do Verão passado ambos rissem muito, andassem como siameses, viajassem (desnecessariamente) juntos, e nos intervalos até cimentassem tão esbarrombante cumplicidade entretendo-se a contar histórias caricaturadas de Passos Coelho que nenhum percebe e ambos temem. Costa, é claro, sempre desconfiou de tanta fartura presidencial, como o pobre quando a esmola se agiganta, mas dizia em privado que “cada dia era um dia”: a geringonça fluía e ele também.
Agora não. Foi o próprio Marcelo quem sinalizou e depois publicitou a passagem à sua nova qualidade de vigilante: acção governativa com medidas calendarizadas, prazos, contas certas, respostas em tempo, responsabilidade. Nova vida para um governo no seu mais baixo grau de fragilização, descomunicação e desnorte. E a contas com a aplicação de um Orçamento que privilegia quem não deve e não atende a quem serve de combustível ao motor da nossa economia.
4. É certo que o “companheiro” não pode deixar o acompanhado. É até imperativo que de vez em quando entre em cena e sorria para o Governo, mais vale prevenir que remediar, tudo menos uma grave “chatice” política daqui até às eleições: o Presidente da República tem um horror visceral a situações que não controla e lhe escorregam das mãos. O vigilante vigiará mas quando for preciso um gesto cúmplice ou uma benção mais ungida, o “companheiro” há-de mostrar-se à altura do jogo: é campeão mundial na modalidade.
5. Seja como for, deixámos de ter dois políticos que por vezes não se importavam que os confundíssemos com dois adolescentes estarolas (revejam-se as imagens) para ter um Presidente da República “ocupado” pela sua própria consciência dos estragos de 2017 e querendo (bem) agir em conformidade e um primeiro ministro sob vigilância.
Eis o que muda alguma coisa nas coisas tal como elas eram.
6. Não gosto de “grandes palavras”, duvido até da sua utilidade. Não ouvi o Presidente no fim do ano mas vi a palavra “reinventar” (o “futuro” não era?) estampada mil vezes em papel ou écrans. Deve ter caído bem com tanta a gente a explicar como se “re-inventa”, eu achei-a um enfeite de Natal. Não é preciso reinventar, mas sim cumprir. Não é preciso reinventar o Estado, é preciso que ele cumpra bem as funções já há muito “inventadas” para ele. Não é preciso que o ministro da Defesa se reinvente é só necessário que — na impossibilidade de nos sair da frente — cumpra a sua tarefa e nos informe sobre ela. Não é preciso reinventar o Serviço Nacional de Saúde, bastaria só que ele funcionasse como no tempo de Paulo Macedo que tinha bem menos euros à disposição que o pobre dr. Adalberto (com “pannes” em todo o lado, a todas as horas e a todos os níveis de funcionamento, sem que isso pareça aflijir o governante, o governo, os dos écrans ou a media que agora prefere o sono dos (in)justos).

Reinventar é um semi disfarce, cumprir é sempre uma meta.

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