terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Não sei porque se indignam


De facto, sempre ouvi que a caridade bem entendida começa por nós próprios. Até temos um provérbio de apoio: «Quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo ou não tem arte». Os deputados dos respectivos partidos o provaram, defendendo o presente do respectivo sapatinho, pois estávamos no Natal. Alexandre Homem Cristo é muito severo com eles, com efeito, e João Miguel Tavares muito irónico, na metáfora do chocolate comido, para mais, às escondidas. Não era preciso tanta infantilidade. O Pai Natal é protector, e o ano começa em doçura. Como se previu.
Iº TEXTO:    ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
O Natal dos partidos políticos (é à grande)
Alexandre Homem Cristo    OBSERVADOR, 25/12/2017
Há uma fórmula infalível para, no Natal, se receber como prenda o que mais se deseja: ser o próprio a escolher o que os outros lhe oferecem. No final da semana passada, os partidos políticos com representação na Assembleia da República decidiram seguir a regra. E o que é que meteram no seu próprio sapatinho? Uns milhões de euros, à conta do Estado – isto é, de nós.
Na passada quinta-feira, em plenário, os partidos discutiram e votaram um conjunto de alterações legislativas que, primeiro, acaba com o limite para os fundos angariados por partidos e que, segundo, permite aos partidos receberem o IVA de volta. Traduzindo. Os partidos estavam limitados a angariar por ano um máximo de 632 mil euros, não podendo receber doações ou verbas de origens privadas que totalizassem um valor superior. Ora, agora esse limite deixou de existir – podem receber todo o dinheiro que conseguirem angariar. Mais: até agora, a isenção do IVA aplicou-se a bens e serviços directamente ligados à sua actividade política, mas, por decisão dos partidos em causa própria, a isenção passará a aplicar-se sobre todos os bens e serviços adquiridos. Basicamente, os partidos deixarão de pagar IVA. Sempre.
O impacto financeiro desta decisão é tremendo e de grande benefício para os partidos. Veja-se, a título de exemplo, os casos mais flagrantes. De um lado, o PCP há anos e anos que apresenta a Festa do Avante!, que é um festival de Verão, como um evento de divulgação política, de modo a fugir aos impostos. A partir de agora, já não vai ser preciso fingir: todos os habituais custos com o IVA na contratação de serviços de restauração e artistas (entre outros) ficam no bolso dos comunistas, às claras. Do outro lado, o PS está falido e endividado (deve cerca de 20 milhões de euros), e tem inúmeros casos em tribunal para a devolução do IVA. Ora, com estas alterações políticas, o problema do IVA no PS desaparece daqui para a frente: a isenção será total e, imagine-se, até se aplicará aos processos pendentes a aguardar julgamento – ou seja, com as alterações legislativas introduzidas, o PS poderá solicitar a devolução do IVA de pagamentos feitos no passado (antes de a nova lei entrar em vigor) e cuja contestação ficou pendente nos tribunais. O golpe é extraordinário.
Não vale a pena disfarçar: os partidos (PS, PSD, PCP, BE, PEV) legislaram em benefício próprio, amealhando milhões de euros à conta do Estado. E, para fugir ao escrutínio público, fizeram-no da forma mais opaca possível. O processo legislativo correu num grupo de trabalho que, por várias vezes, reuniu à porta fechada – algo excepcional no funcionamento da Assembleia da República. O agendamento da discussão/votação do projecto de lei foi feito em cima da hora, para não chamar à atenção e forçando até a retirada de outras iniciativas legislativas previamente agendadas. E, na exposição de motivos do projecto de lei apresentado à votação, não consta uma única referência às alterações que beneficiam os partidos – apenas se refere o reforço dos poderes da Entidade das Contas, dando a entender que o objectivo era somente esse. Só que, lá está, não foi bem assim. Nas palavras da ex-Presidente da Entidade das Contas (em declarações ao Expresso), “os partidos resolveram uns aos outros os problemas de cada um”, alterando leis orgânicas do Tribunal Constitucional, da Entidade das Contas, do financiamento político e dos partidos políticos. Mais claro era impossível.
Tudo isto foi premeditado. No conteúdo: a partir desta alteração legislativa, os partidos vão receber mais dinheiro, ficar isentos de impostos e resolver situações ainda a aguardar julgamento – tudo no valor de milhões de euros. E na sua calendarização: a alteração surge de surpresa, sem forma de escrutínio público, e no período natalício (quando as atenções estão dispersas). Ou seja, tudo neste processo está errado – o legislar em causa própria, o segredismo, as tentativas de passar com o assunto despercebido. E o mais grave é que funcionou: arrepia o sucesso dos partidos em conseguir que o assunto passasse mesmo despercebido, quando há aqui matéria para legitimar indignação popular. É, portanto, uma vergonha colectiva: uma Assembleia da República que faz isto em completa impunidade só é possível perante uma sociedade entorpecida e pouco exigente. Merecem-se uma à outra.
2º TEXTO:
Financiamento dos partidos
O silêncio de Ferro Rodrigues é inadmissível
Alexandre Homem Cristo                              OBSERVADOR, 1/1/2018
No meio do ruído (justamente) gerado pelas polémicas alterações dos partidos às regras do financiamento partidário, quase todos os protagonistas da política nacional sentiram a necessidade de se pronunciar. Sublinhe-se o ‘quase’. É que prevalece um silêncio ensurdecedor: o do Presidente da Assembleia da República. Eduardo Ferro Rodrigues não emitiu uma declaração, não esboçou um gesto, não disse uma palavra, não solicitou um único esclarecimento. É admissível que o Presidente da Assembleia da República, que deve garantir o regular funcionamento do parlamento e do processo legislativo, assista imóvel à revelação de que a normal transparência foi sabotada pelos partidos, que instrumentalizaram um grupo de trabalho em benefício próprio? Obviamente que não. Pelo menos não o é num país que leve as suas instituições políticas a sério – o que, afinal, nunca pareceu ser o caso de Portugal.
É função do Presidente da Assembleia da República coordenar e dirigir os trabalhos parlamentares. Mais: compete-lhe assegurar o cumprimento do Regimento (isto é, o conjunto de regras para as actividades parlamentares) e zelar pelo funcionamento dos trabalhos parlamentares. Ou seja, Ferro Rodrigues, como segunda figura do Estado, não é responsável pelo conteúdo das leis elaboradas e discutidas nas comissões parlamentares – isso é com os partidos, que apresentam e votam as propostas. Mas Ferro Rodrigues é o primeiro responsável pelo respeito pelos procedimentos parlamentares, definidos para salvaguardar, entre outras, condições de igualdade, representação política e transparência (para escrutínio público). É, simplificando, o árbitro do jogo político no parlamento, e quem assegura que todos seguem as regras delineadas à partida.
Ora, neste caso das alterações ao financiamento partidário, há três pontos que objectivamente espelham a violação dessas regras, leia-se o regular funcionamento dos trabalhos parlamentares. Primeiro, no respectivo grupo de trabalho, os partidos reuniram por nove vezes à porta fechada – o que contraria o procedimento habitual e não tem aqui justificação. Segundo, ao contrário do que sempre sucede nos trabalhos parlamentares, desta vez não houve actas ou quaisquer outros registos acerca do teor das discussões e do processo legislativo, tornando impossível o escrutínio público. Terceiro, de forma insólita, os partidos optaram por não ser identificados nas suas propostas e, em vez da indicação partidária, estas surgiram nos documentos de trabalho sob anonimato, para que não se percebesse quem propôs o quê (caso os documentos saíssem do grupo de trabalho) – e isto, se não for inédito, anda lá perto.
Resumindo, Ferro Rodrigues falhou duas vezes. Num momento inicial, não foi capaz de prevenir tal sabotagem dos partidos aos normais procedimentos parlamentares no grupo de trabalho sobre o financiamento partidário – ou seja, não foi capaz de zelar pelo regular funcionamento dos trabalhos parlamentares, como é das suas funções. E agora, confrontado pelos factos que vieram a público pela comunicação social, Ferro Rodrigues optou pelo silêncio conivente com o golpe dos partidos. Ou seja, ficou calado num momento-chave de justa indignação popular em que, pelas suas funções, deveria ter imediatamente emitido uma declaração pública, solicitado esclarecimentos aos partidos e aos serviços parlamentares, censurado o comportamento dos deputados e garantido que tal não se voltaria a passar sob a sua Presidência.
Este silêncio é inadmissível e torna o Presidente da Assembleia da República cúmplice do golpe partidário. No final, tudo conduz à triste constatação de que quem está a zelar pelo regular funcionamento da Assembleia da República não está nada preocupado com o regular funcionamento da Assembleia da República. O que sobra, então? Só Marcelo. É por isso que, ao Presidente da República, já não basta olhar ao conteúdo das alterações que os partidos desenharam à sua medida, vetando o diploma. É necessário que, em nome do regular funcionamento das instituições democráticas, Marcelo aponte o dedo: ao fechar os olhos e ficar calado, Ferro Rodrigues legitimou o golpe.

3º TEXTO:  Uns fogem, os outros mentem
João Miguel Tavares           Público, 30 de Dezembro de 2017
Os deputados portugueses aprovaram a nova lei do financiamento partidário como se fossem crianças a ir às escondidas à caixa dos chocolates, e ao serem apanhados pela comunicação social reagiram como crianças que foram às escondidas à caixa dos chocolates. Uns desculparam-se dizendo que nem sequer apreciam particularmente os chocolates que acabaram de comer (Bloco de Esquerda e PCP), os outros dizendo que aquilo que comeram parece chocolate, sabe a chocolate e cheira a chocolate, mas não é chocolate (PS e PSD). Uns fogem, os outros mentem. Os deputados portugueses não só têm manifesta dificuldade em reagir como pessoas adultas, como padecem de uma compulsão sadomasoquista que os leva a prejudicar simultaneamente o país e a eles próprios.
Não sei bem qual o comportamento mais deplorável, se o dos hipócritas, se o dos mentirosos, mas comecemos pelos hipócritas. O primeiro partido a dizer comi mas não gostei” foi o Bloco, garantindo que apenas votou a favor da lei “pela necessidade de convergência”, embora ela “não espelhe a posição de fundo do Bloco de Esquerda sobre esta matéria”. O Bloco até alerta no seu comunicado para um problema grave, que não tem sido devidamente discutido: o facto de a devolução do IVA aos partidos agravar a “discriminação entre candidaturas partidárias e candidaturas de grupos de cidadãos eleitores a autarquias locais”. Está muito bem visto. A lei é fraca, superficial e discriminatória, logo, o Bloco votou a favor. O PCP fez o mesmo. Jerónimo de Sousa declarou que as “melhorias” agora introduzidas são “insuficientes”, e classificou a lei do financiamento partidário como – agarrem-se para não caírem – “absurda, antidemocrática e inconstitucional”. No entanto, dado a lei ter ficado, segundo os comunistas, ligeiramente menos absurda, menos antidemocrática e um pouco menos inconstitucional, o PCP achou por bem atribuir-lhe um voto favorável. Também faz sentido.
E depois dos hipócritas, os mentirosos: em vez de “comi mas não gostei”, estes optaram pelo argumento “comi mas não era chocolate”. Comunicado do grupo de trabalho clandestino, coordenado por José Silvano, do PSD: da nova lei aprovada “não resulta nenhum aumento de subvenção estatal ou quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos políticos”. Ana Catarina Mendes, do PS: “é totalmente falsa a ideia de que há um aumento nos cofres partidários com esta lei”, tal como é falso “qualquer propósito de beneficiar retroactivamente qualquer partido político”. Não tenho espaço para estar aqui a desmontar estas afirmações patéticas, e os jornais têm feito bem o seu trabalho de analisar, através do fact-checking, o absurdo dos argumentos. Deixo apenas uma citação da própria lei, para quem afirma não haver qualquer retroactividade: “A presente lei aplica-se aos processos novos e aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento.”

Aquilo que me interessa sublinhar, em conclusão, porque nenhum português merece ser tratado como imbecil, é isto: se a lei é tão fantástica, tão cristalina, tão impoluta, e com o único e exclusivo objectivo de dar resposta a um pedido do Tribunal Constitucional, qual é a justificação para o secretismo de todos os procedimentos e o anonimato das propostas partidárias? Não gozem connosco, senhores deputados. Há um limite para a falta de vergonha. Foram à caixa. Comeram os chocolates. Evitem ao menos esfregar as mãos sujas na nossa cara.

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