De facto, sempre ouvi que a
caridade bem entendida começa por nós próprios. Até temos um provérbio de
apoio: «Quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é tolo ou não
tem arte». Os deputados dos respectivos partidos o provaram, defendendo o presente
do respectivo sapatinho, pois estávamos no Natal. Alexandre Homem Cristo
é muito severo com eles, com efeito, e João Miguel Tavares muito irónico,
na metáfora do chocolate comido, para mais, às escondidas. Não era preciso
tanta infantilidade. O Pai Natal é protector, e o ano começa em doçura. Como se
previu.
Iº TEXTO: ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
O Natal dos partidos políticos (é à grande)
Há uma fórmula infalível
para, no Natal, se receber como prenda o que mais se deseja: ser o próprio a
escolher o que os outros lhe oferecem. No final da semana passada, os partidos
políticos com representação na Assembleia da República decidiram seguir a
regra. E o que é que meteram no seu próprio sapatinho? Uns milhões de euros,
à conta do Estado – isto é, de nós.
Na passada quinta-feira, em
plenário, os partidos discutiram e votaram um conjunto de alterações
legislativas que, primeiro, acaba com o limite para os fundos angariados
por partidos e que, segundo, permite aos partidos receberem o IVA de
volta. Traduzindo. Os partidos estavam limitados a angariar por ano um
máximo de 632 mil euros, não podendo receber doações ou verbas de origens
privadas que totalizassem um valor superior. Ora, agora esse limite deixou de
existir – podem receber todo o dinheiro que conseguirem angariar. Mais: até agora,
a isenção do IVA aplicou-se a bens e serviços directamente ligados à sua
actividade política, mas, por decisão dos partidos em causa própria, a isenção
passará a aplicar-se sobre todos os bens e serviços adquiridos. Basicamente, os
partidos deixarão de pagar IVA. Sempre.
O impacto financeiro desta
decisão é tremendo e de grande benefício para os partidos. Veja-se, a título de
exemplo, os casos mais flagrantes. De um lado, o PCP há anos e anos que
apresenta a Festa do Avante!, que é um festival
de Verão, como um evento de divulgação política, de modo a fugir aos impostos.
A partir de agora, já não vai ser preciso fingir: todos os habituais custos com
o IVA na contratação de serviços de restauração e artistas (entre outros) ficam
no bolso dos comunistas, às claras. Do outro lado, o PS está falido e
endividado (deve cerca de 20 milhões de euros), e tem inúmeros casos em
tribunal para a devolução do IVA. Ora, com estas alterações políticas, o
problema do IVA no PS desaparece daqui para a frente: a isenção será total e,
imagine-se, até se aplicará aos processos pendentes a aguardar julgamento – ou
seja, com as alterações legislativas introduzidas, o PS poderá solicitar a
devolução do IVA de pagamentos feitos no passado (antes de a nova lei entrar em
vigor) e cuja contestação ficou pendente nos tribunais. O golpe é
extraordinário.
Não vale a pena
disfarçar: os partidos (PS, PSD, PCP, BE, PEV) legislaram em benefício próprio,
amealhando milhões de euros à conta do Estado. E, para fugir ao escrutínio
público, fizeram-no da forma mais opaca possível. O processo
legislativo correu num grupo de trabalho que, por várias vezes, reuniu à porta
fechada – algo excepcional no funcionamento da Assembleia da República. O
agendamento da discussão/votação do projecto de lei foi feito em cima da hora, para não
chamar à atenção e forçando até a retirada de outras iniciativas legislativas
previamente agendadas. E, na exposição de motivos do projecto de lei
apresentado à votação, não consta uma única referência às alterações que
beneficiam os partidos – apenas se refere o reforço dos poderes da Entidade das
Contas, dando a entender que o objectivo era somente esse. Só que, lá está, não
foi bem assim. Nas palavras da ex-Presidente da Entidade das Contas (em
declarações ao Expresso), “os partidos resolveram uns aos outros os problemas
de cada um”, alterando leis orgânicas do Tribunal Constitucional, da Entidade
das Contas, do financiamento político e dos partidos políticos. Mais claro era
impossível.
Tudo isto foi premeditado.
No conteúdo: a partir desta alteração legislativa, os partidos vão receber
mais dinheiro, ficar isentos de impostos e resolver situações ainda a aguardar
julgamento – tudo no valor de milhões de euros. E na sua calendarização:
a alteração surge de surpresa, sem forma de escrutínio público, e no período
natalício (quando as atenções estão dispersas). Ou seja, tudo neste processo
está errado – o legislar em causa própria, o segredismo, as tentativas de
passar com o assunto despercebido. E o mais grave é que funcionou:
arrepia o sucesso dos partidos em conseguir que o assunto passasse mesmo
despercebido, quando há aqui matéria para legitimar indignação popular. É,
portanto, uma vergonha colectiva: uma Assembleia da República que faz isto em
completa impunidade só é possível perante uma sociedade entorpecida e pouco
exigente. Merecem-se uma à outra.
2º TEXTO:
Financiamento dos partidos
O silêncio de Ferro Rodrigues é inadmissível
No meio do ruído
(justamente) gerado pelas polémicas alterações dos partidos às regras do
financiamento partidário, quase todos os protagonistas da política nacional
sentiram a necessidade de se pronunciar. Sublinhe-se o ‘quase’. É que
prevalece um silêncio ensurdecedor: o do Presidente da Assembleia da República.
Eduardo Ferro Rodrigues não emitiu uma declaração, não esboçou um gesto, não
disse uma palavra, não solicitou um único esclarecimento. É admissível
que o Presidente da Assembleia da República, que deve garantir o regular funcionamento
do parlamento e do processo legislativo, assista imóvel à revelação de que a
normal transparência foi sabotada pelos partidos, que instrumentalizaram um
grupo de trabalho em benefício próprio? Obviamente que não. Pelo menos não o é
num país que leve as suas instituições políticas a sério – o que, afinal, nunca
pareceu ser o caso de Portugal.
É função do Presidente da
Assembleia da República coordenar e dirigir os trabalhos parlamentares. Mais:
compete-lhe assegurar o cumprimento do Regimento (isto é, o conjunto de regras
para as actividades parlamentares) e zelar pelo funcionamento dos trabalhos
parlamentares. Ou seja, Ferro Rodrigues, como segunda figura do Estado, não é
responsável pelo conteúdo das leis elaboradas e discutidas nas comissões parlamentares
– isso é com os partidos, que apresentam e votam as propostas. Mas Ferro
Rodrigues é o primeiro responsável pelo respeito pelos procedimentos
parlamentares, definidos para salvaguardar, entre outras, condições de
igualdade, representação política e transparência (para escrutínio público). É,
simplificando, o árbitro do jogo político no parlamento, e quem assegura que
todos seguem as regras delineadas à partida.
Ora, neste caso das
alterações ao financiamento partidário, há três pontos que objectivamente
espelham a violação dessas regras, leia-se o regular funcionamento dos
trabalhos parlamentares. Primeiro, no respectivo grupo de trabalho,
os partidos reuniram por nove vezes à porta fechada – o que contraria o
procedimento habitual e não tem aqui justificação. Segundo, ao
contrário do que sempre sucede nos trabalhos parlamentares, desta vez não houve
actas ou quaisquer outros registos acerca do teor das discussões e do processo
legislativo, tornando impossível o escrutínio público. Terceiro,
de forma insólita, os partidos optaram por não ser identificados nas suas
propostas e, em vez da indicação partidária, estas surgiram nos documentos de
trabalho sob anonimato, para que não se percebesse quem propôs o quê (caso os
documentos saíssem do grupo de trabalho) – e isto, se não for inédito, anda lá
perto.
Resumindo, Ferro
Rodrigues falhou duas vezes. Num momento inicial, não foi capaz
de prevenir tal sabotagem dos partidos aos normais procedimentos parlamentares
no grupo de trabalho sobre o financiamento partidário – ou seja, não foi capaz
de zelar pelo regular funcionamento dos trabalhos parlamentares, como é das
suas funções. E agora, confrontado pelos factos que vieram a público pela
comunicação social, Ferro Rodrigues optou pelo silêncio conivente com o golpe
dos partidos. Ou seja, ficou calado num momento-chave de justa indignação
popular em que, pelas suas funções, deveria ter imediatamente emitido uma
declaração pública, solicitado esclarecimentos aos partidos e aos serviços
parlamentares, censurado o comportamento dos deputados e garantido que tal não
se voltaria a passar sob a sua Presidência.
Este silêncio é
inadmissível e torna o Presidente da Assembleia da República cúmplice do golpe
partidário. No final, tudo conduz à triste constatação de que quem está a zelar
pelo regular funcionamento da Assembleia da República não está nada preocupado
com o regular funcionamento da Assembleia da República. O que
sobra, então? Só Marcelo. É por isso que, ao Presidente da República, já não
basta olhar ao conteúdo das alterações que os partidos desenharam à sua medida,
vetando o diploma. É necessário que, em nome do regular funcionamento das
instituições democráticas, Marcelo aponte o dedo: ao fechar os olhos e ficar
calado, Ferro Rodrigues legitimou o golpe.
3º TEXTO: Uns fogem, os outros mentem
João Miguel Tavares Público, 30 de Dezembro de 2017
Os deputados portugueses
aprovaram a nova lei do financiamento partidário como se fossem crianças a ir
às escondidas à caixa dos chocolates, e ao serem apanhados pela comunicação
social reagiram como crianças que foram às escondidas à caixa dos chocolates.
Uns desculparam-se dizendo que nem sequer apreciam particularmente os
chocolates que acabaram de comer (Bloco de Esquerda e PCP), os outros
dizendo que aquilo que comeram parece chocolate, sabe a chocolate e cheira a
chocolate, mas não é chocolate (PS e PSD). Uns fogem, os outros
mentem. Os deputados portugueses não só têm manifesta dificuldade em
reagir como pessoas adultas, como padecem de uma compulsão sadomasoquista que
os leva a prejudicar simultaneamente o país e a eles próprios.
Não sei bem qual o
comportamento mais deplorável, se o dos hipócritas, se o dos mentirosos, mas
comecemos pelos hipócritas. O primeiro partido a dizer “comi
mas não gostei” foi o Bloco, garantindo que apenas votou a favor da lei
“pela necessidade de convergência”, embora ela “não espelhe a posição de fundo
do Bloco de Esquerda sobre esta matéria”. O Bloco até alerta no seu comunicado
para um problema grave, que não tem sido devidamente discutido: o facto de a
devolução do IVA aos partidos agravar a “discriminação entre candidaturas
partidárias e candidaturas de grupos de cidadãos eleitores a autarquias
locais”. Está muito bem visto. A lei é fraca, superficial e discriminatória,
logo, o Bloco votou a favor. O PCP fez o mesmo. Jerónimo de Sousa declarou que
as “melhorias” agora introduzidas são “insuficientes”, e classificou a lei do
financiamento partidário como – agarrem-se para não caírem – “absurda, antidemocrática
e inconstitucional”. No entanto, dado a lei ter ficado, segundo os comunistas,
ligeiramente menos absurda, menos antidemocrática e um pouco menos
inconstitucional, o PCP achou por bem atribuir-lhe um voto favorável.
Também faz sentido.
E depois dos hipócritas,
os mentirosos: em vez de “comi mas não gostei”, estes optaram pelo
argumento “comi mas não era chocolate”. Comunicado do grupo de
trabalho clandestino, coordenado por José Silvano, do PSD: da nova lei aprovada
“não resulta nenhum aumento de subvenção estatal ou quaisquer encargos públicos
adicionais para com os partidos políticos”. Ana Catarina Mendes, do PS: “é
totalmente falsa a ideia de que há um aumento nos cofres partidários com esta
lei”, tal como é falso “qualquer propósito de beneficiar retroactivamente
qualquer partido político”. Não tenho espaço para estar aqui a desmontar
estas afirmações patéticas, e os jornais têm feito bem o seu trabalho de
analisar, através do fact-checking, o absurdo dos argumentos. Deixo
apenas uma citação da própria lei, para quem afirma não haver qualquer
retroactividade: “A presente lei aplica-se aos processos novos e aos processos
pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar
julgamento.”
Aquilo que me interessa
sublinhar, em conclusão, porque nenhum português merece ser tratado como
imbecil, é isto: se a lei é tão fantástica, tão cristalina, tão impoluta, e com
o único e exclusivo objectivo de dar resposta a um pedido do Tribunal
Constitucional, qual é a justificação para o secretismo de todos os
procedimentos e o anonimato das propostas partidárias? Não gozem
connosco, senhores deputados. Há um limite para a falta de vergonha. Foram à
caixa. Comeram os chocolates. Evitem ao menos esfregar as mãos sujas na nossa
cara.
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