De quem, lá fora, ajuda o mundo a progredir, mau
grado as troças contra a sua irrazoabilidade na gestão espectacular do seu
poder no mundo. De quem, por cá, ajudou no processo educacional que conduziu a
educação por mares de revolução contínua, que parece deixar o nosso mundo de
pequenez educativa cada vez mais em palpos de aranha. Equiparo-as, as tais
descargas da sujeira estrangeira e nacional, às que sorrateiramente se fizeram
no rio Tejo, matando o que de bom lá havia, tão criminosamente como o fizeram
os incendiários da nossa floresta – ou talvez mais ainda. E nada se pune, na
caldeirada – na gestão do mundo pelo americano, lá fora, na gestão no ensino
pelo português, cá dentro, na extinção de um rio pelos criminosos da sombra,
num país desatento e brincalhão, por cá também.
Gostei de os ler, ao que descreveu o caso externo,
americano, João Miguel Tavares, que anotou benefícios na acefalia
governativa de uma figura caricata, com apoiantes e talvez até idólatras, não
fosse Trump um homem de sucesso económico merecedor da idolatria. Ao que escreveu
sobre o processo educacional aqui instaurado, em alucinante percurso de
mutabilidade pedagógica, de cuja introdução no nosso país se diz
responsável, José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, adepto
de Agostinho da Silva, fixado no Brasil actualmente,
satisfeito do seu papel na evolução da educação por cá, estando a próxima
etapa, de participação da comunidade na escola, ao que parece, prestes a ser
inaugurada em Portugal, com grande orgulho de Pacheco, quase a
transpor a Ponte.
Talvez que os incêndios e as descargas poluentes
sejam já efeitos dessa educação que “não educa
para a cidadania, mas no exercício da cidadania”. Da nossa, é
claro. A da socapa e da impunidade, depreendendo-se, pela satisfação de Pacheco,
que o exercício da cidadania nem sequer precisou de ser ministrado – o que, de
resto, também se tem visto na própria gestão da côdea nacional.
OPINIÃO
Trump está a ajudar o mundo a ser melhor
A América está, de facto, great again, graças à forma como tem
sabido resistir civilizadamente a um Presidente inimaginável.
João Miguel Tavares
Público, 23 de Janeiro de 2018
Perdoem-me o título digno de Miss Universo, mas não precisam de mim para
bater em Donald Trump. Não há jornal ou televisão que se esqueça de nos
informar o quanto Trump é detestável, mentiroso, irascível, impreparado para o
cargo, mal-educado, traidor dos valores americanos e absolutamente repugnante.
Não contesto nada disso, com excepção do “traidor dos valores americanos”,
porque Trump representa uma parte significativa da América — parte essa, aliás,
que continua muito mal compreendida. Por isso, em vez de me juntar à multidão
de haters, parece-me mais produtivo assinalar o primeiro aniversário de
Donald Trump na Casa Branca recordando aquilo que lhe devemos: a
repolitização da sociedade americana, a ressurreição dos jornais, os melhores
programas de humor do mundo, o envolvimento de cada vez mais gente no combate
político e nas lutas sociais, e até a tomada de consciência, por parte da Europa,
de que a defesa dos valores ocidentais não pode ser abandonada nas mãos de um
qualquer inquilino da Casa Branca.
Não é coisa pouca. Ontem este jornal apresentava uma entrevista com
Jessica Bennett, editora de Género do New York Times, que afirmava: “Trump
galvanizou as mulheres de uma forma nunca antes vista.” A Marcha das Mulheres,
que no passado fim-de-semana voltou a encher as ruas de 250 cidades em todo o
mundo, é a prova dessa mobilização. Mas Trump fez mais. O próprio New York
Times aumentou as suas subscrições em 60% entre Setembro de 2016 e
Setembro de 2017, para 2,5 milhões de assinantes. As acções da empresa
detentora do jornal subiram 41% no decorrer de 2017. A CNN anunciou que no ano
passado o canal teve maior audiência desde a sua criação, em 1980. Stephen
Colbert, o mais aguerrido humorista americano no campeonato “Tiro-ao-Trump”,
conseguiu aquilo que parecia impossível: tornar o The Late Show no
programa mais visto da televisão americana no seu segmento, destronando o bem
menos politizado Tonight Show de Jimmy Fallon. Colbert ganhou 600 mil
espectadores (de 2,9 para 3,5 milhões) desde que Donald Trump venceu as
primárias republicanas. O mesmo sucesso calhou a Alec Baldwin quando começou a
fazer de Trump no Saturday Night Live (interpretação com direito a
Emmy e tudo): a cabeleira loira e o lábio subido bateram recordes de audiência.
Donald Trump vende — e muito. Ele é o maior amigo dos seus inimigos. Ele
é o homem que nós amamos odiar.
O mundo da política tem uma costela taoista: mal e bem, positivo e
negativo, yine yang, são menos categorias opostas do que
complementares, vivendo numa dinâmica permanente, de influência mútua. Claro que ver Donald Trump fazer piadas com o
tamanho do seu botão nuclear causa arrepios, mas se ele se aguentar mais três
anos sem provocar demasiados estragos pode ser que o legado da sua presença à
frente do país mais poderoso do mundo possa ser melhor do que poderíamos
imaginar. Isto não significa, de todo, que devamos ser mais complacentes em
relação a ele. Embora haja com
frequência exageros ridículos e formas muito pouco equilibradas de noticiar as
suas acções, o que sugiro é o contrário disso: a capacidade de uma sociedade
permanecer alerta, sem se deixar anestesiar pela sua postura de bully, é
uma enorme demostração de vitalidade política e de espírito de cidadania. Nesse
sentido, Donald Trump está a cumprir uma promessa: a América está, de
facto, great again, graças à forma como tem sabido resistir
civilizadamente a um Presidente inimaginável.
Memórias e profecias
José Pacheco
OBSERVADOR, 25/1/2018
Tentou-se modificar o velho modelo educacional através da gestão
democrática. Mas, nos anos 70, o projeto de participação educativa não levou a
comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade
Nos idos de 1970, através de uma prática radicada no personalismo de
Mounier, no ensino individualizado de Dottrens e nos dispositivos pedagógicos
legados por Freinet (classe cooperativa, correspondência escolar, imprensa
escolar, assembleia, ficheiros autocorretivos…), deixamos para trás o
modelo instrucionista da Revolução Industrial. Mas, após abandonar o modelo da
ensinagem, com centro na pessoa do professor, ainda era elevada a taxa de
insucesso dos alunos.
Ainda na transição entre o paradigma instrucionista e o paradigma da
aprendizagem, introduzimos ecléticas práticas herdadas de Cousinet,
Decroly, Ferrière, Dewey, Kilpatrick, Montessori, Steiner… Recorremos às
taxonomias de Bloom, à pedagogia por objetivos, à metodologia de
trabalho de projeto, a tudo o que, supostamente, pudesse garantir a todos o
direito à educação. E, em meados da década de 1980, abdicámos,
em definitivo, do modelo escolanovista, centrado no aluno.
A saga pedagógica desembocou na utilização de computadores, já no início
da década seguinte. Através da introdução das novas tecnologias,
intensificávamos a pesquisa, sem desumanizar o ato de aprender. Porém, ainda
havia necessidade de reprovar. Alterámos o modelo de gestão, não
educando para a cidadania, mas no exercício da cidadania. Criámos uma equipe de educação especial,
na intenção de assegurar uma efetiva educação inclusiva. Dispensámos
inúteis provas e optámos por uma avaliação formativa, contínua e sistemática,
com recurso à elaboração de portfólios. Abrimos caminhos para uma educação
integral, aquela que contempla o domínio intelectual, mas também o afetivo, o emocional,
o ético, o estético… Mas, ainda havia alunos que não aprendiam. Tomámos
consciência de que não havia dificuldades de aprendizagem, mas dificuldades de
ensinagem.
Chegara o tempo da psicologização da escola. Universitários recuperavam
um Vigotsky requentado e um Piaget readaptado, para chegar a um Bruner dos
princípios gerais da aprendizagem. Por outro lado, a “Carta de Barcelona”, o
Manifesto da Transdisciplinaridade e os trabalhos de Bordieu, Freire e
Giroux levaram-nos a operar nova ruptura paradigmática, a erradicar
subtis processos de reprodução escolar e social.
Durante mais de quarenta anos, perseguimos aquilo que parecia ser
uma quimera: que todos os jovens aprendessem e fossem felizes. Com intuição
pedagógica, amor pela infância e o quanto baste de uma ciência prudente, à
custa de muitos erros e fracassos, lançámos os fundamentos de uma nova
construção social de educação. A essa nova construção social demos o
nome de comunidade, o lugar de uma aprendizagem centrada na relação.
Na condição de diretor de escola e autarca, eu havia tentado modificar o
velho modelo educacional pela via de uma gestão democrática. No
final da década de 1970, o projeto de “participação educativa” não levou a
comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade, apenas integrou a
escola na comunidade. Mas, decorreriam mais de vinte anos até que a
comunidade assumisse a direção da escola. E, somente em 2004, a autonomia da
escola foi reconhecida através de contrato celebrado com o ministério da
educação.
Nos primórdios do século XXI, rumei ao Brasil. Rubem Alves publicara o
livro “A escola com que sempre sonhei”, coletânea de crónicas, impressões da
sua visita à Escola da Ponte. E, para além de satisfazer a curiosidade dos
professores brasileiros e o interesse manifestado pela academia pelo exotismo
do nosso projeto, adentrei a espantosa obra do Agostinho da Silva em
terras do Sul. Esse saudoso Mestre foi ícone de passagem para caminhos de
transição para um terceiro paradigma: o da comunicação.
Em 2018, começo a escrever nova página deste diário abreviado. Escrevo-a
em Brasília, onde a génese de uma nova educação acontece, cumprindo a profecia
do Mestre Agostinho. Um artigo publicado, ainda no tempo em que foi
professor da Universidade de Brasília, reza assim: Portugal desembarcou na
África, na Ásia e na América; só falta a Portugal desembarcar em… Portugal.
Vos asseguro que não tarda o desembarque, no hemisfério Norte, de uma
nova educação, que está a ser gestada no Sul.
Fundador da Escola da Ponte ‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que
discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado
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