sábado, 27 de janeiro de 2018

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De quem, lá fora, ajuda o mundo a progredir, mau grado as troças contra a sua irrazoabilidade na gestão espectacular do seu poder no mundo. De quem, por cá, ajudou no processo educacional que conduziu a educação por mares de revolução contínua, que parece deixar o nosso mundo de pequenez educativa cada vez mais em palpos de aranha. Equiparo-as, as tais descargas da sujeira estrangeira e nacional, às que sorrateiramente se fizeram no rio Tejo, matando o que de bom lá havia, tão criminosamente como o fizeram os incendiários da nossa floresta – ou talvez mais ainda. E nada se pune, na caldeirada – na gestão do mundo pelo americano, lá fora, na gestão no ensino pelo português, cá dentro, na extinção de um rio pelos criminosos da sombra, num país desatento e brincalhão, por cá também.
Gostei de os ler, ao que descreveu o caso externo, americano, João Miguel Tavares, que anotou benefícios na acefalia governativa de uma figura caricata, com apoiantes e talvez até idólatras, não fosse Trump um homem de sucesso económico merecedor da idolatria. Ao que escreveu sobre o processo educacional aqui instaurado, em alucinante percurso de mutabilidade pedagógica, de cuja introdução no nosso país se diz responsável, José Pacheco, fundador da Escola da Ponteadepto de Agostinho da Silva, fixado no Brasil actualmente, satisfeito do seu papel na evolução da educação por cá, estando a próxima etapa, de participação da comunidade na escola, ao que parece, prestes a ser inaugurada em Portugal, com grande orgulho de Pacheco, quase a transpor a Ponte.
Talvez que os incêndios e as descargas poluentes sejam já efeitos dessa educação que “não educa para a cidadania, mas no exercício da cidadaniaDa nossa, é claro. A da socapa e da impunidade, depreendendo-se, pela satisfação de Pacheco, que o exercício da cidadania nem sequer precisou de ser ministrado – o que, de resto, também se tem visto na própria gestão da côdea nacional.


OPINIÃO
Trump está a ajudar o mundo a ser melhor
A América está, de facto, great again, graças à forma como tem sabido resistir civilizadamente a um Presidente inimaginável.
João Miguel Tavares
Público, 23 de Janeiro de 2018
Perdoem-me o título digno de Miss Universo, mas não precisam de mim para bater em Donald Trump. Não há jornal ou televisão que se esqueça de nos informar o quanto Trump é detestável, mentiroso, irascível, impreparado para o cargo, mal-educado, traidor dos valores americanos e absolutamente repugnante. Não contesto nada disso, com excepção do “traidor dos valores americanos”, porque Trump representa uma parte significativa da América — parte essa, aliás, que continua muito mal compreendida. Por isso, em vez de me juntar à multidão de haters, parece-me mais produtivo assinalar o primeiro aniversário de Donald Trump na Casa Branca recordando aquilo que lhe devemos: a repolitização da sociedade americana, a ressurreição dos jornais, os melhores programas de humor do mundo, o envolvimento de cada vez mais gente no combate político e nas lutas sociais, e até a tomada de consciência, por parte da Europa, de que a defesa dos valores ocidentais não pode ser abandonada nas mãos de um qualquer inquilino da Casa Branca.
Não é coisa pouca. Ontem este jornal apresentava uma entrevista com Jessica Bennett, editora de Género do New York Times, que afirmava: “Trump galvanizou as mulheres de uma forma nunca antes vista.” A Marcha das Mulheres, que no passado fim-de-semana voltou a encher as ruas de 250 cidades em todo o mundo, é a prova dessa mobilização. Mas Trump fez mais. O próprio New York Times aumentou as suas subscrições em 60% entre Setembro de 2016 e Setembro de 2017, para 2,5 milhões de assinantes. As acções da empresa detentora do jornal subiram 41% no decorrer de 2017. A CNN anunciou que no ano passado o canal teve maior audiência desde a sua criação, em 1980. Stephen Colbert, o mais aguerrido humorista americano no campeonato “Tiro-ao-Trump”, conseguiu aquilo que parecia impossível: tornar o The Late Show no programa mais visto da televisão americana no seu segmento, destronando o bem menos politizado Tonight Show de Jimmy Fallon. Colbert ganhou 600 mil espectadores (de 2,9 para 3,5 milhões) desde que Donald Trump venceu as primárias republicanas. O mesmo sucesso calhou a Alec Baldwin quando começou a fazer de Trump no Saturday Night Live (interpretação com direito a Emmy e tudo): a cabeleira loira e o lábio subido bateram recordes de audiência. Donald Trump vende — e muito. Ele é o maior amigo dos seus inimigos. Ele é o homem que nós amamos odiar.
O mundo da política tem uma costela taoista: mal e bem, positivo e negativo, yine yang, são menos categorias opostas do que complementares, vivendo numa dinâmica permanente, de influência mútua. Claro que ver Donald Trump fazer piadas com o tamanho do seu botão nuclear causa arrepios, mas se ele se aguentar mais três anos sem provocar demasiados estragos pode ser que o legado da sua presença à frente do país mais poderoso do mundo possa ser melhor do que poderíamos imaginar. Isto não significa, de todo, que devamos ser mais complacentes em relação a ele. Embora haja com frequência exageros ridículos e formas muito pouco equilibradas de noticiar as suas acções, o que sugiro é o contrário disso: a capacidade de uma sociedade permanecer alerta, sem se deixar anestesiar pela sua postura de bully, é uma enorme demostração de vitalidade política e de espírito de cidadania. Nesse sentido, Donald Trump está a cumprir uma promessa: a América está, de facto, great again, graças à forma como tem sabido resistir civilizadamente a um Presidente inimaginável.

Memórias e profecias
José Pacheco
OBSERVADOR, 25/1/2018
Tentou-se modificar o velho modelo educacional através da gestão democrática. Mas, nos anos 70, o projeto de participação educativa não levou a comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade
Nos idos de 1970, através de uma prática radicada no personalismo de Mounier, no ensino individualizado de Dottrens e nos dispositivos pedagógicos legados por Freinet (classe cooperativa, correspondência escolar, imprensa escolar, assembleia, ficheiros autocorretivos…), deixamos para trás o modelo instrucionista da Revolução Industrial. Mas, após abandonar o modelo da ensinagem, com centro na pessoa do professor, ainda era elevada a taxa de insucesso dos alunos.
Ainda na transição entre o paradigma instrucionista e o paradigma da aprendizagem, introduzimos ecléticas práticas herdadas de Cousinet, Decroly, Ferrière, Dewey, Kilpatrick, Montessori, SteinerRecorremos às taxonomias de Bloom, à pedagogia por objetivos, à metodologia de trabalho de projeto, a tudo o que, supostamente, pudesse garantir a todos o direito à educação. E, em meados da década de 1980, abdicámos, em definitivo, do modelo escolanovista, centrado no aluno.
A saga pedagógica desembocou na utilização de computadores, já no início da década seguinte. Através da introdução das novas tecnologias, intensificávamos a pesquisa, sem desumanizar o ato de aprender. Porém, ainda havia necessidade de reprovar. Alterámos o modelo de gestão, não educando para a cidadania, mas no exercício da cidadania. Criámos uma equipe de educação especial, na intenção de assegurar uma efetiva educação inclusiva. Dispensámos inúteis provas e optámos por uma avaliação formativa, contínua e sistemática, com recurso à elaboração de portfólios. Abrimos caminhos para uma educação integral, aquela que contempla o domínio intelectual, mas também o afetivo, o emocional, o ético, o estético… Mas, ainda havia alunos que não aprendiam. Tomámos consciência de que não havia dificuldades de aprendizagem, mas dificuldades de ensinagem.
Chegara o tempo da psicologização da escola. Universitários recuperavam um Vigotsky requentado e um Piaget readaptado, para chegar a um Bruner dos princípios gerais da aprendizagem. Por outro lado, a “Carta de Barcelona”, o Manifesto da Transdisciplinaridade e os trabalhos de Bordieu, Freire e Giroux levaram-nos a operar nova ruptura paradigmática, a erradicar subtis processos de reprodução escolar e social.
Durante mais de quarenta anos, perseguimos aquilo que parecia ser uma quimera: que todos os jovens aprendessem e fossem felizes. Com intuição pedagógica, amor pela infância e o quanto baste de uma ciência prudente, à custa de muitos erros e fracassos, lançámos os fundamentos de uma nova construção social de educação. A essa nova construção social demos o nome de comunidade, o lugar de uma aprendizagem centrada na relação.
Na condição de diretor de escola e autarca, eu havia tentado modificar o velho modelo educacional pela via de uma gestão democrática. No final da década de 1970, o projeto de “participação educativa” não levou a comunidade para a escola, nem a escola para a comunidade, apenas integrou a escola na comunidade. Mas, decorreriam mais de vinte anos até que a comunidade assumisse a direção da escola. E, somente em 2004, a autonomia da escola foi reconhecida através de contrato celebrado com o ministério da educação.
Nos primórdios do século XXI, rumei ao Brasil. Rubem Alves publicara o livro “A escola com que sempre sonhei”, coletânea de crónicas, impressões da sua visita à Escola da Ponte. E, para além de satisfazer a curiosidade dos professores brasileiros e o interesse manifestado pela academia pelo exotismo do nosso projeto, adentrei a espantosa obra do Agostinho da Silva em terras do Sul. Esse saudoso Mestre foi ícone de passagem para caminhos de transição para um terceiro paradigma: o da comunicação.
Em 2018, começo a escrever nova página deste diário abreviado. Escrevo-a em Brasília, onde a génese de uma nova educação acontece, cumprindo a profecia do Mestre Agostinho. Um artigo publicado, ainda no tempo em que foi professor da Universidade de Brasília, reza assim: Portugal desembarcou na África, na Ásia e na América; só falta a Portugal desembarcar em… Portugal.
Vos asseguro que não tarda o desembarque, no hemisfério Norte, de uma nova educação, que está a ser gestada no Sul.
Fundador da Escola da Ponte ‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado


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