domingo, 14 de janeiro de 2018

Os estigmas na Justiça (nossa)


Parecer indignado de António Barreto, a propósito da destituição de JOANA MARQUES VIDAL do seu cargo de Procuradora Geral da República:

A inocência perdida
ANTÓNIO BARRETO
DN, 14/1/18
A nomeação, pelo Presidente da República e sob proposta do governo, do procurador-geral da República é dos actos mais sérios do elenco de competências dos titulares de órgãos de soberania. A seriedade deveria ser a regra, o que não exclui debate. Transformar aquela designação, a quase um ano de distância dos prazos devidos, numa cena de intriga não é próprio de uma República decente. Governantes, partidos, jornalistas e gente avulsa já se encarregaram de estragar a próxima nomeação, de que alguém sairá mal.
Como é evidente, há, em teoria, várias soluções para o problema. O mandato pode ser sem renovação. Ou só com uma, ou duas ou três. Ou sem limite. Há em Portugal soluções para todos os gostos: o Presidente da República, os presidentes de câmara e de junta de freguesia, os juízes do Tribunal Constitucional, o procurador-geral da República, o Provedor de Justiça, o presidente do Tribunal de Contas, o governador do Banco de Portugal e outros. Quando o legislador quis estabelecer limites, estes ficaram explícitos. Se não estão, é porque não há. Gostemos ou não. Todas as soluções são legítimas e legais desde que expressas na lei. Cada um pode gostar mais de uma ou de outra, é seu direito. O que não se pode é divagar sobre as intenções do legislador conforme as conveniências pessoais. Mas parece que é por causa disso, das divagações, que há tantos juristas e gente que sabe tanto de direito!
Por mais legítima que seja, por mais racional e cuidada que venha a ser, qualquer decisão ficará sempre marcada pela intriga.
O próximo PGR nascerá estigmatizado por uma espécie de reserva de desconfiança. A escolha ficará para sempre sob suspeita. Para salvar ou condenar Sócrates? Para liquidar ou ressuscitar Salgado e o Grupo Espírito Santo? Para ocultar ou trazer à luz do dia administradores do BES e do GES que se têm mantido na sombra? Para ajudar ou prejudicar os socialistas?
Para sentenciar ou poupar Granadeiro, Bava, Vara, Penedos, Vicente, Oliveira e Costa, Lalanda, Macedo e outros? Para afastar do horizonte ou renovar a questão da lista das 200 personalidades dos Panamá Papers de que tanto se fala? Para arredar de uma vez por todas ou trazer à superfície o persistente rumor sobre as gravações alegadamente nunca destruídas das escutas telefónicas de Sócrates e de muitos políticos e empresários?
As razões para desconfiança são muitas. Mas uma coisa é certa: a próxima nomeação não será inocente. A escolha será feita por causa dos boatos. Qualquer que seja a decisão, haverá desautorização, cedência, recuo ou derrota de uma ou várias figuras centrais do Estado: ministra, primeiro-ministro, procuradora e Presidente da República. Não é muito saudável.

O próximo PGR nascerá estigmatizado por uma espécie de reserva de desconfiança. A escolha ficará para sempre sob suspeita. Para salvar ou condenar Sócrates? Para liquidar ou ressuscitar Salgado e o Grupo Espírito Santo?

A renovação do mandato da actual procuradora (que parece ter feito excelente trabalho) ou a sua substituição têm de resultar da vontade explícita do governo e do Presidente da República. Creio que nunca saberemos o que pensam a ministra, o primeiro-ministro, a procuradora e o Presidente da República. Só sabemos que há gente interessada em liquidar o fim do mandato da actual procuradora, em tornar ilegítima a nomeação futura, em fragilizar o Presidente da República e em perturbar o curso de alguns dos mais difíceis processos da história do país dos últimos cem anos!
Aliás, não passou despercebida a coincidência, no tempo, entre a intenção de substituir a procuradora, a recordação dos "casos das adopções da IURD" e a apresentação, ao Presidente da República, de um primeiro rascunho para um Pacto de Justiça proposto pelos corpos e sindicatos.
É cada vez mais possível que nunca haja julgamento das figuras importantes da política, do Estado, dos partidos, da economia e da banca. Que nunca haja legislação eficaz sobre corrupção. Que a crise da Justiça se desenvolva. Que o Pacto de Justiça, já hoje mal nascido, seja enterrado. Este debate sobre a nomeação da procuradora é desnecessário, extemporâneo e muito prejudicial, além de perversamente orientado. É um atentado à Justiça.

  FOTOGRAFIA DE ANTÓNIO BARRETO

O Cristo das Trincheiras no mosteiro da Batalha. A estátua de Cristo crucificado, com braço e pernas partidas, além de ferida de bala no peito, tem o curioso nome de Cristo das Trincheiras. Veio da Flandres, onde, durante meses, fez companhia aos soldados do Corpo Expedicionário Português. Faz agora, no Ano Europeu do Património, um século que tudo isso aconteceu. E faz sessenta anos que o Cristo veio para Portugal. Conhecem-se fotografias da estátua, ainda intacta, no meio das trincheiras. São da autoria de um grande fotógrafo que "cobriu" parte da campanha da Flandres, Arnaldo Garcez. A estátua encontrava-se, em 1918, no cruzamento de estradas perto de Neuve-Chapelle. Aquando da batalha de La Lys, em que os alemães destroçaram a força portuguesa, o Cristo foi também bombardeado e quase destruído. Morreram nessa batalha milhares de portugueses. Os que sobreviveram recordaram sempre o Cristo das Trincheiras, que por ali ficou, mesmo quebrado, durante quarenta anos. Em 1958, as autoridades francesas acederam aos pedidos do governo: a escultura foi entregue ao exército português, viajou de avião para Lisboa e daí para a Batalha, onde, a 9 de Abril de 1958, foi fazer companhia, na Sala do Capítulo, ao túmulo do Soldado Desconhecido, que já ali se encontrava desde 1921.

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