Um texto de Paulo Rangel, sobre as coisas da nossa Justiça, e
sobre Rui Rio que, apesar da confiança daquele no sentido de Justiça
deste, lembro-me de que Rui Rio não quis definir-se a respeito do caso da
Procuradora Geral da República, quando interrogado, durante a campanha eleitoral.
Quanto ao texto de Alexandre
Homem-Cristo, é ainda sobre Rui Rio, num retrato que parece positivo,
contrariando algumas opiniões de dúvida, de que o Eixo do Mal também se
fez eco, semeador de dúvidas. “Sempre isto ou sempre outra
coisa ou nem uma coisa nem outra”.
I- OPINIÃO Uma
semana e um ano astral para a justiça
Por mais voltas que se dê, a posição da ministra da Justiça é
insustentável e é indesculpável. Marca o ano, mancha o exercício ministerial.
PEDRO RANGEL
PÚBLICO,16 de Janeiro de 2018
1. Três acontecimentos de diferente natureza, ocorridos na semana que
findou e sem qualquer relação entre si, convergem no sentido de pôr a
justiça – enquanto poder e função constitucional – no cerne da agenda e do
debate público.
O primeiro e mais antigo veio a ser a apresentação ao Presidente da
República, por apelo deste, de um pacto “inter-profissional” para a justiça
(denominado “acordos para o sistema de justiça). Trata-se de um contributo consensualizado
pelas estruturas profissionais dos diferentes intervenientes no sector da
justiça, vertido em medidas de alcance muito diverso (e controverso), que terá
agora de ser recebido pela opinião pública e pelo sistema político.
Enquanto contributo para uma discussão pública alargada revela-se um instrumento
muito útil, mas, como no próprio texto se reconhece, em nada dispensa a
assunção das responsabilidades políticas por quem de direito. O ano
político, no âmbito da justiça, não poderá deixar de ser influenciado pela
marca de água deste documento.
O segundo, surpreendente
e claramente inusitado, consistiu na declaração da ministra da Justiça de que o
mandato da Procuradora-Geral da República não era renovável. Cura-se de uma
intervenção grave – para não dizer gravíssima –, feita a destempo, por quem tem
obrigação de conhecer (e conhece efectivamente) as regras constitucionais que
estatuem precisamente o contrário. Esta pronúncia antolha-se, sob qualquer
ponto de vista, absolutamente incompreensível, seja no conteúdo, seja na
oportunidade. Quando se esperava que a delicada questão da substituição do
vértice do Ministério Público só ganhasse tomo e dimensão em meados do Verão, a
ministra assombrou e enfeitiçou a questão e pô-la na agenda dos
desenvolvimentos político-judiciais do ano inteiro.
O terceiro diz
respeito à eleição de Rui Rio como novo Presidente do PSD. Rui Rio fez
do sistema de justiça um dos pontos distintivos do seu programa eleitoral
interno, de resto, uma velha bandeira do seu pensamento. Muito orientado para a
questão da eficácia do sistema como um todo (lentidão) e para o pólo da
investigação criminal (garantias e legitimidade), acabará por ser um dos
dossiês em que é natural esperar-se algum poder de iniciativa. Também,
portanto, por via da eleição do novo líder do PSD, o tema da justiça irá
necessariamente declinar-se no ano político de 2018.
O alinhamento astral destes três acontecimentos da semana e a capacidade
de projecção e irradiação de cada um deles são um forte indício de que o ano
de 2018 será pautado pelo signo da política da justiça e das relações entre a
justiça e a política.
2. A conclusão
do dito acordo “inter-profissional” e a agenda política do novo líder da
oposição são obviamente desenvolvimentos salutares, na medida em que,
concorde-se ou não com as linhas substantivas dos mesmos, facultam uma
oportunidade para discussão, estudo, reflexão e, até, se não faltar à política
a celeridade que mingua à justiça, para decisão e execução. Já a intervenção
da ministra da Justiça é profundamente reprovável e seriamente perniciosa,
introduzindo um factor de desconfiança, que pode inquinar não apenas o processo
de designação do Procurador-Geral como também o previsível debate sobre esta
agenda mais geral da justiça.
Por mais voltas que se dê, a posição da ministra da Justiça é insustentável
e é indesculpável. A leitura dos preceitos pertinentes da Constituição não
deixa margem a qualquer dúvida: o mandato do Procurador-Geral da
República é renovável. Basta ler. Convém, todavia, desarmar outras linhas
retóricas por aí ensaiadas para que quede cristalina a impropriedade da
intervenção ministerial.
3. O argumento, quase ontológico, de que o
mandato de 6 anos é um mandato longo por essência não renovável (ou
desejavelmente não renovável) não colhe. O mandato tem 6 anos, propositadamente
para não coincidir com o mandato dos dois órgãos que intervêm na respectiva
cooptação (Governo, 4 anos; Presidente da República, 5 anos). Só por isso e
nada mais. Na tradição constitucional portuguesa, ao contrário do que sustenta
a Ministra e alguns dos seus sequazes, um mandato de 6 anos não é havido como
longo. Com efeito, quando os juízes do Tribunal Constitucional tinham um
mandato de 6 anos, este era renovável; só quando passou a 9 anos se volveu em
não reconduzível. E, em todo o caso, sempre convém não confundir a posição de
um juiz com a posição de um procurador. E, muito menos, a posição de um juiz do
Tribunal Constitucional (ou de um tribunal supremo) com a do Procurador-Geral
da República que, além do mais, não tem de ser um magistrado do Ministério
Público (caso de Pinto Monteiro) nem sequer tem de ser um magistrado de
carreira. Numa palavra, não renovabilidade do mandato de 6 anos não resulta da
natureza das coisas.
4. Não faz também vencimento – nem deve fazer
– o argumento corporativo. Na verdade, com plena consciência de que a
Constituição não adoptou o modelo do mandato único, uma forte corrente de
magistrados do Ministério Público, também dominante no respectivo sindicato,
defende a bondade da solução do mandato único. Por outras palavras, reconhece
que a lei não impõe essa solução, mas considera-a a mais adequada e conveniente
à chefia daquela magistratura. É porventura nesta corrente, com a sua longa
e prestigiada carreira de magistrada do Ministério Público, que se filia a
ministra da Justiça. Mas justamente por isso estava e tinha de estar
perfeitamente ciente de que a Lei Fundamental permite a recondução. Ciência
essa que, aliás, se manifesta flagrantemente no discurso tentativo da Ministra
com a busca do contexto histórico e da alegada ideia “subjacente”.
5.
Nada desculpa, portanto, a declaração da ministra, que outro intuito não teve
senão o de desencantar um pretexto jurídico para o anúncio precoce e temporão
de um juízo político. Marca o ano, mancha o exercício ministerial.
SIM. Rui Rio. Marcou a agenda de médio prazo ao
focar o novo ciclo e fôlego político na construção de uma alternativa clara e
forte à frente de esquerda e ao seu imediatismo populista.
NÃO. António Costa. Ao vincular Portugal, pela
calada, à criação de listas transnacionais nas eleições europeias prejudica o
interesse nacional e, pior, despreza a competência eleitoral da Assembleia.
OBSERVADOR, 15/1/2018
Não há razões para mudanças
de rumo no PSD. E, por isso, talvez os primeiros desiludidos com Rui Rio venham
a ser aqueles que (como Pacheco Pereira) viram nele a oportunidade de se
vingarem de Passos.
Um homem sério, de vida
pública discreta e pouco aberto, que engendrou durante anos o alcançar da
liderança do PSD, focado na economia e na saúde das contas públicas,
indiferente aos círculos das elites lisboetas, rodeado no aparelho partidário
de figuras e barões pouco recomendáveis e que fizeram caminho a criticar o PSD,
sem pretensões de intelectualidade, pouco preocupado com os holofotes
mediáticos, teimoso e corajoso, defensor das ideias em que acredita – e não
daquelas que lhe dizem ser as melhores para acolher mais um ou dois votos. Eis
uma apresentação possível de Rui Rio, o novo líder eleito do PSD. Mas eis
também uma apresentação possível de Pedro Passos Coelho, o líder que, dentro de
semanas, deixará de o ser. Curiosamente, a campanha das eleições internas do
PSD sugeriu que, com Rui Rio, viria uma ruptura com o legado de Passos Coelho.
Ou que à sua vitória corresponderia uma derrota do “passismo”. Ora, ambos têm
mais em comum do que seria inicialmente perceptível. E, mesmo no plano
partidário, essa ideia de ruptura é, no mínimo, precipitada.
Sim, muitos pontos de
vista ideológicos separam Passos Coelho de Rui Rio – o
primeiro mais liberal e à direita do que o segundo, que não se importa que o
conotem com o centro-esquerda. Se o PSD fosse um clube de tertúlias, a
clivagem seria motivo de rupturas discursivas e de algumas guinadas de
orientação política nas propostas para o país. Mas o PSD é um partido político,
em Portugal e na oposição a um governo apoiado por toda a esquerda parlamentar.
O contexto é tudo. Nem Passos Coelho pôde implementar todas as reformas
“liberais” que ambicionou, nem agora muitas das reformas implementadas foram
sequer atacadas pelo PS – veja-se como o actual governo mantém discretamente
várias das medidas do período da troika. Ou seja, a ideologia tem um peso
menor nas reformas estruturais do que, acreditando no discurso político, se poderia
julgar. Como tal, nesse plano, o PSD de Rui Rio não será realmente
divergente do de Passos. Aliás, recorde-se que, quando o tema da campanha
interna foi o ajustamento financeiro, Rui Rio até alertou que teria ido mais
longe – afinal, aos olhos de Pacheco Pereira e de outros críticos da
austeridade, qual dos dois seria o perigoso neoliberal?
No final, tudo leva aos
nomes e, sim, as mudanças de caras surgirão no PSD. É natural que assim seja. E
ainda mais quando, como é o caso, o novo líder não tem cadeira na bancada
parlamentar e precisa de pessoas de confiança nos lugares-chave. Mas será isso
motivo de “limpeza”, como se ouve por aí? Não há contexto para isso – e seria
um erro de amador. Primeiro, porque Rio terá de depender de um grupo
parlamentar que não escolheu e não se pode dar ao luxo de o transformar num
ninho de vespas – o que requer tacto e convergências. Segundo, porque não
existe uma ruptura real com o “passismo” ou com os que cresceram politicamente
ao lado de Passos Coelho – até porque alguns apoiaram Rui Rio. Em
termos de apoios internos, a único ruptura relevante surgiu com Luís
Montenegro e Miguel Relvas, que decidiram converter estas eleições internas
num jogo de xadrez para as suas ambições – leia-se, para se posicionarem para o
pós-eleições legislativas de 2019, antecipando uma vitória eleitoral do PS.
Ora, Montenegro e Relvas podem ter sido “passistas”, mas não são o “passismo”.
Tudo isto não significa
que as lideranças de Rui Rio e de Passos Coelho venham a ser gémeas – cada um
tem o seu estilo e isso marca uma liderança. Ou que Rui Rio não apareça
rodeado de pontos de interrogação e sinais vermelhos – e são vários: o seu
discurso por vezes ríspido e autoritário, uma relação potencialmente tensa com
Marcelo, a sua hipotética aproximação ao PS de António Costa pós-2019, a sua má
relação com a comunicação social, algumas companhias políticas que arrasta
consigo. Significa, sim, duas coisas.
Primeiro, que as
campanhas internas dão maus indicadores para prever o desempenho de um líder partidário
– por exemplo, quando chegou ao topo do PSD, nada recomendava Passos Coelho
(nem o currículo, nem as companhias, nem a fama de ter sido opositor interno a
Ferreira Leite no combate contra Sócrates) e, no governo, veio a revelar-se.
Segundo, que quem estiver à espera de alterações estruturais no PSD ficará por
certo desiludido – não há razões políticas ou ideológicas que as justifiquem no
actual contexto. E talvez os primeiros desiludidos venham a
ser, precisamente, aqueles que (como Pacheco Pereira, António Capucho e
Ferreira Leite) viram em Rui Rio a oportunidade de se vingarem de Passos
Coelho.
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