terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Do PÚBLICO de 19/1/18


Dois textos sobre as nossas preocupações de sobrevivência: A baixa natalidade actual, por Bagão Félix, condicionadora da nossa sobrevivência como nação; e uma vez mais, a defesa de uma representante de um estatuto de superioridade moral e de coragem, que poderia ser exemplo à nossa sobrevivência educacional, texto de David Dinis, na EDITORIAL.
Bagão Félix mostra-se preocupado com um problema, ao que parece, sempre adiado pelos governos, no imediatismo de outras premências, e sempre condicionados pelo espectro da nossa mediocridade económica, de “contagem de tostões”, para poder garantir o “bem-estar” económico das famílias, apesar dos meios auxiliares existentes, de “acompanhamento” das crianças, não só do ponto de vista dos cuidados de saúde, mas do ponto de vista dos infantários para acolhimento destas, na ausência laboral dos pais. Mas a carga para estes é pesada, e os egoísmos próprios também, impeditivos do aumento da natalidade para a sobrevivência das nações. E, todavia, se pensarmos no esgotamento dos recursos naturais, de que a água é o principal elemento, e que a explosão demográfica traz à Terra, nós até contribuímos, com o défice dos nossos nascimentos, para a salvaguarda do nosso planeta, sendo, assim, seus naturais benfeitores, não há que lamentar. Bagão Félix é que é dos antigos, que lembra a história pátria com emoção, naturalmente a esvair-se nas gerações mais desligadas de agora.
Um bonito texto também, o de David Dinis, sobre uma mulher bonita que, como serve de exemplo a comportamentos sadios, é posta de lado, talvez. Fica sempre o apoio e a simpatia dos bem formados, que a defendem.

I - O maior dos défices: o de nascimentos 
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
Toda a gente admira a obra de um grande artista e ergue-lhe mesmo às vezes o monumento a confirmar. Mas nunca ninguém ergueu um monumento a um homem e a sua mulher por terem gerado um filho, que é obra infinitamente maior.
(Vergílio Ferreira, Pensar, 1992)
Não é demais falar no défice de nascimentos. Até porque o assunto dificilmente sobrevive a umas somíticas notícias, embora seja fundamental para o nosso futuro colectivo e para a sustentação geracional do Estado redistributivo. É um tema que passa praticamente ao lado de uma praxis política que se alimenta da táctica, do curto-prazo e da circunstância. E como aparentemente é um problema para “depois de amanhã”, não abre telejornais.
Em 2017, e segundo dados do Ministério da Justiça, terão nascido menos 2702 do que em 2016, podendo, assim, recuar-se a valores próximos do mínimo registado (82 367 nascimentos em 2014).
Este valor continua muito longe do que seria necessário para repor as gerações. Nascem agora pouco mais de 2/3 de crianças do que no princípio do século e menos de metade do que há 30 anos. Por força de sucessivas taxas de fecundidade muito baixas (1,3 filhos por mulher em idade fértil, um dos valores mais baixos do mundo), as mulheres que podem vir a ter filhos no futuro são cada vez menos em comparação com a geração anterior. Por outras palavras, a fertilidade até pode aumentar por mulher, mas o número de mulheres nessas condições é menor, logo os nascimentos são menos. Nos próximos 35 anos, a maior parte das mulheres que vão ser mães já nasceu.
Embora haja muitas e diversas causas para este brutal decréscimo de nascimentos, importa responder com políticas públicas, sobretudo quanto à partilha de tempos para a família e para o trabalho. Tal implica uma aceleração na cobertura nacional de creches e de infantários, incentivos para as empresas promoverem estes equipamentos em condições de proximidade, uma maior flexibilização dos seus horários, mais oportunidades e incentivos ao trabalho a tempo parcial, trabalho domiciliário e teletrabalho, novas formas de flexibilidade horária para os pais nos primeiros anos de vida dos filhos.
A política fiscal continua a secundarizar as famílias com mais filhos e sofreu um retrocesso com a abolição do quociente familiar. Por outro lado, deve analisar-se a possibilidade de criação de mecanismos de bonificação e de acesso à pensão de velhice para os pais de famílias numerosas (estava previsto na lei de bases da Segurança Social de 2003) ou de não se aplicar o factor de sustentabilidade nas pensões dos pais com mais de dois filhos assim favorecendo quem, pela via geracional, mais contribui para a sustentabilidade do sistema de pensões e para o equilíbrio geracional da Segurança Social.
Este problema, aliás, não é apenas português. É, em geral, de toda a Europa. Uma Europa adormecida, cheia de vícios e formalidades, onde se discutem até à náusea muitos “papers” e se estimula uma concepção de vida em sociedade feita só de euros e baseada em mínimos familiares. Onde, nas suas orientações programáticas, há, pelo menos implicitamente, um relativo desprezo pela vida nascente e uma secundarização da família. Em contraste, fala-se do número de abortos permitidos como se se estivessem a almejar objectivos nacionais. Agora que temos um continente que se deixa envelhecer e prefere certos afloramentos ainda que não explícitos de uma cultura da morte, que diferença em relação à Europa do pós-guerra que fez da natalidade e da renovação geracional os seus motores de esperança e de desenvolvimento!
II- EDITORIAL     
Joana Marques Vidal não é a Rainha de Inglaterra
DAVID DINIS                  
Chamaram-lhe “Joaninha sem medo”, mas pecaram por defeito. Joana Marques Vidal deixou ontem um testemunho vivo de que ser Procuradora-Geral da República não é, para ela, ser uma espécie de Rainha de Inglaterra - sem poderes, como uma vez se queixou o seu antecessor e como muitos preferiam que o PGR fosse. Joana tem poderes, sim, e usa o que mais faz a diferença: a palavra, para marcar posição.
O seu discurso de cerimónia de abertura é um tratado. Podíamos até dar-lhe um título: "Como lidar com os elefantes no meio da sala". E havia dois, bem grandes, na sala do Supremo Tribunal de Justiça. 
O primeiro era Angola. E Joana Marques Vidal, desafiada pelos políticos do mundo dos negócios para “explicar” porque é que não mandava para Luanda o processo de Manuel Vicente, disse tudo sem dizer a palavra: começou por valorizar a cooperação com outros países; lembrou os acordos de cooperação assinados; exigiu depois “respeito mútuo”; e fechou com uma referência simpática aos PALOP. Nunca se lhe ouviu a palavra Angola, nunca lhe poderão acusar de ter respondido à letra. Mas, não tenha dúvidas, toda a gente lá percebeu o recado: nós respeitamos a vossa soberania, façam o favor de respeitar a nossa.
O segundo elefante era o da sua continuidade na PGR. E, uma vez mais, de Joana Marques Vidal não ouvimos uma referência ao assunto. Mas registámos o balanço que ela deixou aos “últimos cinco anos” - precisamente os que correspondem ao seu mandato. Deixando um sinal: se não for reconduzida na Procuradoria, já deixou o seu legado. E fixando um tabu: até Outubro não saberemos se ela, “Joaninha sem medo”, quer ficar ou deixar o lugar ao próximo. O que é certo é que só assim poderia manter, até lá, intacta a sua independência - e a sua influência.
Joana Marques Vidal não deixará medo em ninguém, não é esse o seu papel, nem é assim o seu discurso. Mas impõe o respeito que o cargo exige. Por isso, já nos deixou uma herança: a quem se seguir a ela, exigiremos pelo menos o mesmo. Boa sorte a quem tiver de escolher.
P.S. Os agentes do sector demoraram um ano e três meses a chegar a um Pacto da Justiça, com 89 medidas. Os partidos demorariam sempre pelo menos o mesmo a traduzi-las num acordo que resultasse em leis. Por isso, não vale a pena ter muita expectativa: tirando as custas judiciais, não haverá nesta legislatura grande espaço para progressos - nem muito dinheiro para investir. Até por isso, Marques Vidal merece um elogio: fazer melhor com tão pouco é azar que ninguém merece, e tarefa que poucos cumprem.


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