E o olhar certeiro de Alberto
Gonçalves aí está, nas suas crónicas de um “gozo” infrene, provocadoras,
temerárias, varrendo a história, recente ou já passada, em comentários de
argúcia perfurante, no bom senso e a honestidade de um pensamento altivo,
desprezador da parvoiçada pacóvia em que somos exímios: Santana e Rio, Soares e
aduladores, Globos de Ouro e hipocrisia em torno do tema do assédio sexual,
emigração lusa e Joana Marques Vidal, condenada no seu amor à verdade, eis os temas
da sua crónica de hoje.
E a descoberta de mais um articulista
de sinceridade sem rebuço – Bernardo Sacadura - mostrando as anomalias
de um mundo de repente explorando o machismo do ponto de vista feminino - as
fêmeas puritanas, de glamour apelativo de assédio, fingindo – ou não – o seu
repúdio – ou o destaque, em desafio contestatário da loucura e tolice de Donald
Trump, de procedimentos menos democráticos de um Barack Obama desconhecido,
afinal não menos prevaricador, numa falsidade de virtude que o poder acaba
sempre por desmarcarar.
Santana, Rio, Soares e outras notas de rodapé
OBSERVADOR, 13/1/2018
A proximidade às mesas dos restaurantes onde se distribuem prebendas do
Estado não equivale a “ter mundo”. Pequenino e comum ao dr. Santana, ao dr. Rio
e a Portugal inteiro é um mundo que dá pena.
1. Parece que os drs. Rio e Santana disputam hoje a
presidência do PSD. Parece ainda que ambos cometeram uns debates por aí. Não
vi. Consola-me saber que ambos tentam mostrar-se diferentes entre si e
conseguem sugerir que nenhum se distingue particularmente do conhecido dr.
Costa. O resto, que para meu desgosto não evitei ler ou ouvir, é a troca de
lugares-comuns que caracteriza competições assim. Talvez por vingança, os
“media” acrescentam os lugares-comuns que faltavam.
O meu preferido é o que
deprecia o dr. Rio por exibir uma “dimensão” mais “regional” e valoriza o dr.
Santana por “ter mundo”. Tradução, o dr. Rio não mora em Lisboa e o dr. Santana
sim. É um critério engraçado. O dr. Rio possui pouquíssimas recomendações, a
começar por um bando de apoiantes susceptível de aterrorizar o soldado Milhões.
Mas rebaixá-lo pelas ligações nortenhas é tão pertinente quanto “Tony” Carreira
ridicularizar o penteado do sr. Trump.
Caros compatriotas, somos
todos portugueses, logo, do Minho a Tim…, perdão, aos Algarves, somos
todos regionais, periféricos, provincianos, parolinhos, suburbanos e os
restantes epítetos que explicam a fatalidade de o país ser o simpático embaraço
que é e não uma coisa adulta e vagamente apresentável. Das Avenidas Novas ao
largo de Figueiró dos Vinhos, a única diferença é o possível deslumbramento dos
que habitam as primeiras. A proximidade às mesas dos restaurantes onde se
distribuem prebendas do Estado não equivale a “ter mundo”. Este mundo pequenino
e, na essência, comum ao dr. Santana, ao dr. Rio e a Portugal inteiro é um
mundo que dá pena, pena do dr. Santana, do dr. Rio e, sobretudo, de Portugal
inteiro.
2. “O nosso dever é todos os dias homenagearmos
Mário Soares”, decretou o dr. Costa em cerimónia oficial de homenagem a Mário
Soares. Da maneira que isto está, ignoro se a coisa já subiu a lei e se
as coimas por desobediência são pesadas. À cautela, estabeleci um programa.
Segundas e terças-feiras, recordo o Soares filósofo, relendo as crónicas dele
no “Diário de Notícias” e sublinhando com um lápis afiado as referências ao
“bom Papa Francisco” e à responsabilidade do “neoliberalismo” nas “alterações
climáticas”. Quartas-feiras, celebro o Soares democrata, através das
entrevistas em que elogia Chávez e Lula e insulta dois terços dos regimes
ocidentais. As quintas-feiras são dedicadas ao Soares republicano, pelo que
desfraldo a bandeira e canto “A Portuguesa” trinta vezes depois do almoço e
trinta depois da sesta. Às sextas, comemoro o Soares feminista, evocando com
pesar a importantíssima eleição que perdeu para uma “dona de casa”. Aos
sábados, festejo o Soares bonacheirão e ponho em “loop” no youTube o vídeo do
“Ó sr. guarda, desapareça!”. Dedico os domingos ao prestígio internacional de
Soares e, não sei porquê, penso muito em Macau e queimo uma efígie de Rui
Mateus. Chega assim? Caso não chegue, espremo a agenda e arranjo espaço para
aplaudir o Soares patriota, que a título pedagógico entregou o país ao FMI em
duas ocasiões, o Soares solidário, cujos amigos não morriam na cadeia, e o
Soares digno, que caucionou os merecidos insultos à “amante” de Sá Carneiro.
3. Espantosamente, os Globos de Ouro premiaram um
bom filme (“Three Outdoors Outside Ebbing, Missouri”). Sem surpresas, serviram
também para fazer chinfrim em volta da “causa” do momento: o assédio sexual,
sobre o qual se começou por condenar violadores e se acabará a levar para a
fogueira o tarado que pisca o olho a uma senhora. Nem de propósito, as duas
figuras mais indignadas da noite – Oprah Winfrey e a repulsiva Meryl Streep
– eram notórias amigas do violador original desta história, o produtor Harvey
Weinstein. Possivelmente, conheciam-lhe os hábitos e ignoraram-nos até os ditos
se tornarem públicos. Não admira: em Hollywood e no mundo real, o objectivo das
“causas” é privilegiar os porta-vozes em detrimento das vítimas, sempre
acessórias. Muito pior que o “assédio”, o drama destes tempos é o mau gosto. Ou
a falta de vergonha. Ou a hipocrisia. Ou a pura boçalidade. Ou o que quiserem
chamar-lhe. E se não chamarem, a boçalidade vem na mesma.
4. Os “media” garantem-me duas coisas. A primeira é
que a emigração portuguesa continua em grande, e que cem mil alminhas deixaram
a pátria em 2016. A segunda é que 4 mil indivíduos, dessas ou de outras contas,
aproveitaram a isenção de visto na entrada nos EUA para se instalar por lá. O
curioso é os “media” terem passado os últimos meses a garantir duas coisas
ligeiramente distintas. A primeira é que, graças ao prodigioso dr. Centeno e
à compaixão da esquerda, Portugal se tornara um caso de sucesso económico e,
afinal, um paraíso invejável. A segunda é que os americanos fugiam em debandada
do temível sr. Trump. Partindo do princípio de que os “media” não falham,
falharam os factos. Convinha que os factos chegassem a um acordo.
5. Não surpreende que, com típica subtileza, o
governo prometa enxotar Joana Marques Vidal do cargo. O surpreendente é ter
existido uma procuradora-geral da República que, com a leviandade que não
caracterizava o seu antecessor, permitiu investigações a gente tão impoluta
quanto os Salgados, os Sócrates, os Varas, os Bavas e o que calhou. A dra.
Marques Vidal é a relíquia de um tempo em que o país pareceu ambicionar
civilizar-se e uma excrescência neste tempo novo em que ambicionamos outras
coisas. É natural que seja corrida. Esperamos que seja corrida.
Hollywood, a contradição e o ridículo
OBSERVADOR, 13/1/2018
A mesma Hollywood que aplaude de pé o discurso de Oprah Winfrey é a que
aplaude de pé Roman Polanski, alguém que confessou ter drogado e abusado
sexualmente de uma criança de 13 anos.
Hollywood é um poço sem
fundo de contradições, um verdadeiro mundo à parte do comum dos mortais. O
escândalo sexual da indústria de cinema americana e a histeria que rodeia o
discurso de Oprah Winfrey nos Globos de Ouro, tornam esta ideia ainda mais
evidente.
Oprah, a cara mais
conhecida e poderosa da televisão americana, que tem uma história de vida
extraordinária, de constante superação de dificuldades, uma prova viva da
mobilidade social promovida em economias abertas e livres, proferiu um discurso
nos Globos de Ouro que já foi por muitos considerado como a rampa de lançamento
da sua candidatura presidencial em 2020.
Um discurso para ser
aclamado por quase todos deve ser vazio, inconsequente, leve, idealmente com um
toque anti-Trump e que apenas passe mensagens no qual todos acreditamos. O
discurso foi um tremendo sucesso, preencheu todos os requisitos. Afinal, não
deve haver ninguém que seja a favor do assédio sexual, nem que aprove a conduta
dos homens que abusaram da sua posição para obterem favores sexuais, nem que
aprove o controlo da imprensa. No mundo normal isto é verdade, no mundo de
Hollywood não é assim.
A mesma Hollywood que
aplaude de pé o discurso de Oprah é a que aplaude de pé Roman Polanski quando
ganhou o óscar de melhor realizador pelo filme Pianista em 2003. Este homem foi
o mesmo que confessou ter drogado e abusado sexualmente de uma criança de 13
anos. Uma criança que estava a fotografar para um trabalho para uma
revista americana. Quando percebeu que iria ser preso de vez no âmbito deste
processo, fugiu para a Europa e continua a ser perseguido pela justiça
americana para que seja preso. O caso deste realizador é paradigmático, junta a
posição de abuso de poder, drogas, assédio sexual e ainda pedofilia. Mas não é
por isso que deixou de ser aplaudido de pé pelos mesmos homens e mulheres que
agora gritam #MeToo.
A referência
à Hollywood Foreign Press Association, passando a mensagem de que nos
EUA a imprensa está a passar por um momento complicado, numa óbvia referência a
Donald Trump, acentua a contradição em que aqueles senhores vivem. O
Presidente amado por Hollywood – Barack Obama – foi considerado a maior ameaça
na história dos EUA à imprensa livre. O seu governo perseguiu jornalistas,
colocou escutas em telemóveis de forma abusiva, teve acesso indiscriminado a
emails e correspondência privada. O Governo de Obama processou seis
colaboradores do seu Governo sob acusação de espionagem. Até Obama isto apenas
tinha acontecido três vezes em toda a história americana. Mensagens como
“this is the most closed, control freak administration I’ve ever covered”
(David E. Sanger, jornalista do The New York Times) ou “it’s turning
out to be the administration of unprecedented secrecy and unprecedented attacks
on a free press.” (Margaret Sullivan, editora do The New York Times)
são referentes à administração Obama e não a Trump ou Bush.
É tudo tão ridículo e
triste que custa a crer ser verdade. Com tantas contradições destes senhores,
continua a ser extraordinário que olhemos para eles como algo mais do que
entretenimento.
Membro da ‘Tendência
Esperança em Movimento’ do CDS
Nenhum comentário:
Postar um comentário