O de João Miguel Tavares, muitas vezes o temos
visto. No caso do primeiro texto, a separação entre um grosseiro espectáculo de
infâmia provocatória em vários níveis – um canal televisivo explorando
viciosamente misérias sociais e parolices de sensacionalismo – e a indiferença do Estado por uma real Protecção à Família, que teria de passar,
quanto a mim, por uma radical mudança de conceitos educacionais, assentes hoje
numa liberdade descontrolada, visível em maior escala no espaço escolar.
Quanto ao segundo texto, sobre diferenças específicas
entre as ideologias de dois candidatos, em que Pacheco Pereira fez tanto
finca-pé para condenar Passos Coelho, ao compará-lo com Sá Carneiro, concordo
com o cepticismo de João Miguel Tavares sobre a dose de sinceridade numa qualquer
ideologia, dependente, afinal, da marcha das economias estatais ou do interesse próprio: «Tanto no PSD como no PS, a ideologia
é mera retórica para chegar ao poder.»
I- OPINIÃO
Famílias à beira de um ataque de nervos
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 20 de Janeiro de 2018
Eu gostava de ter gostado de Supernanny. Infelizmente, o formato do
programa não o permite. Ter uma psicóloga a fingir que é Mary Poppins –
Supernanny a chegar no seu Mini colorido para pôr ordem nas crianças de uma
família desesperada – ainda se tolera, mas é impossível aceitar a
transformação descarada de um drama real num produto de entretenimento com
recurso às técnicas mais banais de telenovela. Há pequenos detalhes tristemente
exemplares: colocar em pós-produção o som de uma estalada violenta em cima da
imagem de uma ligeira palmada, para aumentar o efeito dramático da cena, como
eu vi a SIC fazer no primeiro episódio, mostra bem o respeito que o programa
tem pela verdade e pela “vertente pedagógica” que tanto diz promover.
Mas a razão porque eu gostava de ter gostado de Supernanny merece ser
explicada, e é esta: aquela família precisa realmente de ajuda e de
conselhos, e não os tem. Este ponto tem estado demasiado ausente do debate
público. Se Mary Poppins é uma personagem de ficção, se a Supernanny é paga
pela SIC para dar audiências, e se o Estado português não liga um caracol a essa
coisa antiquada chamada “família” – a não ser, pelos vistos, quando as famílias
expõem as suas crianças na televisão, porque aí, ai meu Deus, coitadinhas, que
ficam marcadas para a vida –, então aquilo que sobra é uma família solitária,
perdida, sem saber o que fazer a uma criança descontrolada.
É neste ponto que eu me afasto da opinião generalizada. Parece-me
difícil assistir ao primeiro episódio de Supernanny e concluir que o maior
problema do “Furacão Margarida” é os colegas de sete anos gozarem com ela na
escola porque a viram na televisão bater na mãe. Lamento: o seu maior problema é mesmo não ter
em casa um adulto capaz de impor regras mínimas de comportamento. Sendo que
este problema não é – repito: não é – competência da Comissão de Protecção de Crianças
e Jovens (CPCJ) da área onde reside a família.
Uma das coisas assustadoras neste processo – e num texto que Eduardo Sá
publicou neste jornal, “Mau trato com patrocínio” – é a sugestão de
que a CPCJ deveria entrar em campo porque aquela criança tinha sido maltratada
pela mãe e pela avó. Há um detalhe muito grave que a SIC necessita de
esclarecer – o pagamento de 1000 euros à família pelo retrato do caso, segundo
noticiou o Correio da Manhã –, mas classificar uma criança que está a
ser mal educada, e que foi exposta na televisão, como uma criança em risco é ir
longe demais. Nós temos simultaneamente Estado a menos – porque as famílias não
têm os apoios de que necessitam – e Estado a mais, se a classificação de
“criança em risco” de repente se começar a estender a casos como este.
Aquilo que a lei define como “legitimidade da intervenção” do Estado na
protecção da criança é muito abstracto, como não poderia deixar de ser, e exige
uma larguíssima dose de bom-senso. Nada do que vimos na televisão revela que
aquela criança não seja amada ou bem tratada. Pelo contrário. O dia em que
confundirmos a má educação com os maus tratos é o dia em que o Estado passa a
sentar-se à nossa mesa e a dormir na nossa cama. Onde o Estado precisa de
intervir é a montante disso – é proporcionando àquela família ajuda
profissional séria no caso de ela estar a sentir-se incapaz de educar um filho
problemático. Não há dúvidas de que o programa Supernanny é indefensável. Mas os
problemas das famílias retratadas não desaparecem só por desligarmos as câmaras
de televisão.
II- OPINIÃO
Rio, Santana e a treta da “matriz social-democrata”
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2018
O sector mais à esquerda do PSD farta-se de falar na “matriz
social-democrata” do partido, que Passos Coelho teria alegadamente esmigalhado.
Contudo, para quem tem acompanhado as eleições internas, há duas coisas muito
difíceis de perceber: 1) que matriz é exactamente essa?; 2) qual dos candidatos
à liderança do PSD, Santana Lopes ou Rui Rio, está em melhores condições para
colar os seus cacos?
À partida, dir-se-ia que a “matriz social-democrata” do PSD significa
uma grande admiração pelo papel do Estado e o desejo de reforçar os apoios
sociais que presta, e que Rui Rio, enquanto suposto candidato anti-Passos,
seria aquele que mais próximo estaria de recuperar esse objecto tão digno de
admiração. Santana Lopes, pelo contrário, assumindo com mais clareza os méritos
do governo Passos Coelho, estaria então mais próximo de uma visão liberal para
o país, com um Estado mais curto e menos pesado — mais PSL, menos PSD.
No entanto, vai-se a ver, e o que é que cada um deles andou por aí a
dizer? Rio declarou que as contas públicas “devem ter superávite”, para
poderem ter défice quando a economia cai. Santana recusou qualquer
“obsessão pelo défice zero”. Rio disse que “faria igual ou pior” do que Maria
Luís Albuquerque em termos de rigor nas finanças públicas. Santana preferiu a
conversa do crescimento “acima da média europeia” e do “aumento da
produtividade, do investimento e das exportações”. Rio defendeu que as reformas
variassem em função da economia, e que os pensionistas pudessem receber “um
bocadinho mais ou um bocadinho menos” consoante o fulgor das contas públicas.
Santana discorda que as pensões possam baixar. Qual deles está mais apaixonado
pela “matriz social-democrata”, afinal?
A verdade é esta: a conversa das divergências ideológicas é pura treta.
O problema do PSD é, como sempre foi, sobre quem manda. Ao longo dos anos
da troika, a expressão “respeito pela matriz social-democrata do PSD” quis
apenas dizer “não gosto dos tipos que estão à frente do partido”. Mesmo entre os grandes ideólogos de um PSD
perdido, com Pacheco Pereira à cabeça, os suspiros pela “matriz
social-democrata” têm a consistência da gelatina. Um dos grandes
divertimentos dos liberais portugueses é citarem artigos de Pacheco Pereira da
década passada, como este publicado na Sábado em 2005, a propósito do
primeiro orçamento de Estado de José Sócrates: “É o socialismo em que vivemos impregnados,
e que hoje se chama ‘estado-providência’, ou ‘modelo social europeu’, que nos
condena à mediocridade e à gestão no fio da navalha da cada vez menos riqueza
produzida.” Sim, ele escreveu mesmo isto. Todo o texto é um mimo: “Precisamos
de mais liberalismo, de mais liberdade económica, de mais espírito empresarial.
Sem mais ‘crise’ (das que falava Schumpeter) e sem mais ‘boa’ insegurança, não
somos capazes de mudar.”
Ora, se até Pacheco Pereira, actual porta-estandarte da “matriz
social-democrata do PSD”, era um super-liberal há uma dúzia de anos, é escusado
andar a fazer testes de liberalismo e de social-democracia a Rio e a Santana.
Eles vão ser a cada momento aquilo que a economia do país lhes permitir.
Descartada a ideologia, sobra a personalidade dos candidatos: o seu carácter,
(in)competência, intuição política, e pouco mais. Eu gostava muito que o PSD
estivesse a optar entre dois projectos políticos. Não está. Só está a optar
entre duas pessoas. Tanto no PSD como no PS, a ideologia é mera retórica
para chegar ao poder.
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