sábado, 20 de janeiro de 2018

Um pensamento claro e de decoro


O de João Miguel Tavares, muitas vezes o temos visto. No caso do primeiro texto, a separação entre um grosseiro espectáculo de infâmia provocatória em vários níveis – um canal televisivo explorando viciosamente misérias sociais e parolices de sensacionalismo – e a indiferença do Estado por uma real Protecção à Família, que teria de passar, quanto a mim, por uma radical mudança de conceitos educacionais, assentes hoje numa liberdade descontrolada, visível em maior escala no espaço escolar.
Quanto ao segundo texto, sobre diferenças específicas entre as ideologias de dois candidatos, em que Pacheco Pereira fez tanto finca-pé para condenar Passos Coelho, ao compará-lo com Sá Carneiro, concordo com o cepticismo de João Miguel Tavares sobre a dose de sinceridade numa qualquer ideologia, dependente, afinal, da marcha das economias estatais ou do interesse próprio: «Tanto no PSD como no PS, a ideologia é mera retórica para chegar ao poder
I- OPINIÃO           Famílias à beira de um ataque de nervos
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 20 de Janeiro de 2018
Eu gostava de ter gostado de Supernanny. Infelizmente, o formato do programa não o permite. Ter uma psicóloga a fingir que é Mary Poppins – Supernanny a chegar no seu Mini colorido para pôr ordem nas crianças de uma família desesperada – ainda se tolera, mas é impossível aceitar a transformação descarada de um drama real num produto de entretenimento com recurso às técnicas mais banais de telenovela. Há pequenos detalhes tristemente exemplares: colocar em pós-produção o som de uma estalada violenta em cima da imagem de uma ligeira palmada, para aumentar o efeito dramático da cena, como eu vi a SIC fazer no primeiro episódio, mostra bem o respeito que o programa tem pela verdade e pela “vertente pedagógica” que tanto diz promover.
Mas a razão porque eu gostava de ter gostado de Supernanny merece ser explicada, e é esta: aquela família precisa realmente de ajuda e de conselhos, e não os tem. Este ponto tem estado demasiado ausente do debate público. Se Mary Poppins é uma personagem de ficção, se a Supernanny é paga pela SIC para dar audiências, e se o Estado português não liga um caracol a essa coisa antiquada chamada “família” – a não ser, pelos vistos, quando as famílias expõem as suas crianças na televisão, porque aí, ai meu Deus, coitadinhas, que ficam marcadas para a vida –, então aquilo que sobra é uma família solitária, perdida, sem saber o que fazer a uma criança descontrolada.
É neste ponto que eu me afasto da opinião generalizada. Parece-me difícil assistir ao primeiro episódio de Supernanny e concluir que o maior problema do “Furacão Margarida” é os colegas de sete anos gozarem com ela na escola porque a viram na televisão bater na mãe. Lamento: o seu maior problema é mesmo não ter em casa um adulto capaz de impor regras mínimas de comportamento. Sendo que este problema não é – repito: não é – competência da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da área onde reside a família.
Uma das coisas assustadoras neste processo – e num texto que Eduardo Sá publicou neste jornal, Mau trato com patrocínio” – é a sugestão de que a CPCJ deveria entrar em campo porque aquela criança tinha sido maltratada pela mãe e pela avó. Há um detalhe muito grave que a SIC necessita de esclarecer – o pagamento de 1000 euros à família pelo retrato do caso, segundo noticiou o Correio da Manhã –, mas classificar uma criança que está a ser mal educada, e que foi exposta na televisão, como uma criança em risco é ir longe demais. Nós temos simultaneamente Estado a menos – porque as famílias não têm os apoios de que necessitam – e Estado a mais, se a classificação de “criança em risco” de repente se começar a estender a casos como este.
Aquilo que a lei define como “legitimidade da intervenção” do Estado na protecção da criança é muito abstracto, como não poderia deixar de ser, e exige uma larguíssima dose de bom-senso. Nada do que vimos na televisão revela que aquela criança não seja amada ou bem tratada. Pelo contrário. O dia em que confundirmos a má educação com os maus tratos é o dia em que o Estado passa a sentar-se à nossa mesa e a dormir na nossa cama. Onde o Estado precisa de intervir é a montante disso – é proporcionando àquela família ajuda profissional séria no caso de ela estar a sentir-se incapaz de educar um filho problemático. Não há dúvidas de que o programa Supernanny é indefensável. Mas os problemas das famílias retratadas não desaparecem só por desligarmos as câmaras de televisão.
II- OPINIÃO             Rio, Santana e a treta da “matriz social-democrata”
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 13 de Janeiro de 2018
O sector mais à esquerda do PSD farta-se de falar na “matriz social-democrata” do partido, que Passos Coelho teria alegadamente esmigalhado. Contudo, para quem tem acompanhado as eleições internas, há duas coisas muito difíceis de perceber: 1) que matriz é exactamente essa?; 2) qual dos candidatos à liderança do PSD, Santana Lopes ou Rui Rio, está em melhores condições para colar os seus cacos?
À partida, dir-se-ia que a “matriz social-democrata” do PSD significa uma grande admiração pelo papel do Estado e o desejo de reforçar os apoios sociais que presta, e que Rui Rio, enquanto suposto candidato anti-Passos, seria aquele que mais próximo estaria de recuperar esse objecto tão digno de admiração. Santana Lopes, pelo contrário, assumindo com mais clareza os méritos do governo Passos Coelho, estaria então mais próximo de uma visão liberal para o país, com um Estado mais curto e menos pesado — mais PSL, menos PSD.
No entanto, vai-se a ver, e o que é que cada um deles andou por aí a dizer? Rio declarou que as contas públicas “devem ter superávite”, para poderem ter défice quando a economia cai. Santana recusou qualquer “obsessão pelo défice zero”. Rio disse que “faria igual ou pior” do que Maria Luís Albuquerque em termos de rigor nas finanças públicas. Santana preferiu a conversa do crescimento “acima da média europeia” e do “aumento da produtividade, do investimento e das exportações”. Rio defendeu que as reformas variassem em função da economia, e que os pensionistas pudessem receber “um bocadinho mais ou um bocadinho menos” consoante o fulgor das contas públicas. Santana discorda que as pensões possam baixar. Qual deles está mais apaixonado pela “matriz social-democrata”, afinal?
A verdade é esta: a conversa das divergências ideológicas é pura treta. O problema do PSD é, como sempre foi, sobre quem manda. Ao longo dos anos da troika, a expressão “respeito pela matriz social-democrata do PSD” quis apenas dizer “não gosto dos tipos que estão à frente do partido”. Mesmo entre os grandes ideólogos de um PSD perdido, com Pacheco Pereira à cabeça, os suspiros pela “matriz social-democrata” têm a consistência da gelatina. Um dos grandes divertimentos dos liberais portugueses é citarem artigos de Pacheco Pereira da década passada, como este publicado na Sábado em 2005, a propósito do primeiro orçamento de Estado de José Sócrates: É o socialismo em que vivemos impregnados, e que hoje se chama ‘estado-providência’, ou ‘modelo social europeu’, que nos condena à mediocridade e à gestão no fio da navalha da cada vez menos riqueza produzida.” Sim, ele escreveu mesmo isto. Todo o texto é um mimo: “Precisamos de mais liberalismo, de mais liberdade económica, de mais espírito empresarial. Sem mais ‘crise’ (das que falava Schumpeter) e sem mais ‘boa’ insegurança, não somos capazes de mudar.”

Ora, se até Pacheco Pereira, actual porta-estandarte da “matriz social-democrata do PSD”, era um super-liberal há uma dúzia de anos, é escusado andar a fazer testes de liberalismo e de social-democracia a Rio e a Santana. Eles vão ser a cada momento aquilo que a economia do país lhes permitir. Descartada a ideologia, sobra a personalidade dos candidatos: o seu carácter, (in)competência, intuição política, e pouco mais. Eu gostava muito que o PSD estivesse a optar entre dois projectos políticos. Não está. Só está a optar entre duas pessoas. Tanto no PSD como no PS, a ideologia é mera retórica para chegar ao poder.

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