Francisco Assis sempre
se salientou, em minha opinião, por uma postura de elevada dignidade moral, num
comportamento de rectidão e seriedade de pensamento que costumava apreciar nas
suas intervenções televisivas e que, para mim, culminara na sua atitude de
recusa inicial do comportamento de António Costa aquando da usurpação do poder
a Passos Coelho vitorioso. Também os seus artigos são prova da mesma seriedade,
num discurso rico e directo que lembra clássicos moralistas e nos servem de lição.
Tal é o caso deste seu texto, sobre a autocrítica de um ex-governante espanhol de
Finanças – Pedro Solbes – que nos poderia servir de exemplo, além
da defesa que faz da sua dama – o partido socialista – do qual acentua valores
que se impuseram na sociedade portuguesa, embora não fosse o único partido,
julgo. Um sentimento de orgulho e gratidão nos advém, no reconhecimento de
figuras destas, de autenticidade humanística, trazendo imagens de lordes, de
outros espaços educacionais…
OPINIÃO
Espanha, a crise financeira e os erros do Governo
Pedro Solbes fez uma leitura crítica da sua própria actuação e da do
Governo de Zapatero durante a grave crise que afectou o país.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO,11 de Janeiro de 2018
1. Em Maio do ano passado o Parlamento espanhol
criou uma comissão especial denominada Comissão de Investigação sobre a Crise
Financeira de Espanha e o Programa de Assistência Financeira com o intuito de
promover o esclarecimento possível sobre as causas e a natureza da grave crise
que afectou o país vizinho. No âmbito dos trabalhos dessa comissão foram
ouvidos no decorrer desta semana vários ex-responsáveis pela condução da
política económica e financeira dos Governos de Aznar e de Zapatero. Ontem de
manhã ocorreu a audição de Pedro Solbes, que exerceu as funções de
Ministro das Finanças e de vice-presidente do Governo de Zapatero entre Abril
de 2004 e Abril de 2009. Solbes, que havia desempenhado anteriormente as
funções de Comissário Europeu dos Assuntos Económicos e Monetários, era, à
época, uma das principais personalidades políticas espanholas, quer pela função
que exercia, quer pelo prestígio de que dispunha.
Ontem no seu depoimento
perante os parlamentares optou por fazer uma leitura crítica da sua própria
actuação e da do Governo em que se integrava no decorrer do período histórico
em apreciação. Começou por reconhecer que se haviam equivocado totalmente nas
previsões macroeconómicas revelando-se incapazes de detectar a verdadeira
amplitude da recessão verificada em 2009, o que prejudicou a adopção de medidas
mais adequadas à tormentosa situação então vivida. Indo ainda mais longe
reconheceu que em anos anteriores se poderia ter executado uma política
orçamental mais focada na obtenção de superavits, de modo a robustecer as
finanças públicas, assim como reconheceu também que algumas decisões tomadas no
sentido da redução da carga fiscal ou da promoção de múltiplos investimentos
públicos não foram as mais razoáveis.
Esta atitude, rara em
tempos tão dados a exaltações fanáticas, merece consideração e deve originar
reflexão. Não faltarão, decerto, comentários contraditórios acerca das mesmas,
ora enfatizando uns o demérito da lucidez póstuma, ora contestando outros a
própria natureza das considerações enunciadas, ora saudando ainda outros a
bondade do gesto autocrítico. É natural que assim ocorra numa sociedade liberal
e pluralista.
Há dois aspectos que em
minha opinião devem ser destacados no depoimento de Pedro Solbes: o
reconhecimento do erro à luz de uma informação superveniente e a identificação
da natureza desse erro em função de um posicionamento doutrinário e político
devidamente consolidado.
Em relação ao primeiro
aspecto haverá que salientar o que nele releva de uma atitude de grande
seriedade intelectual. A decisão política é por definição contingente,
indissociável do contexto específico em que é tomada e da própria precariedade
inerente a toda a actividade humana. As democracias liberais assentam
precisamente, entre outras coisas, na aceitação dessa contingência e, como tal,
convivem melhor do que qualquer outro regime político com o modelo da tentativa
e erro como fórmula preferencial da acção política. Por isso
mesmo este tipo de regime revela pouca compatibilidade com o excesso de
convicção que leva ao dogmatismo e ao sectarismo. Pelo contrário, ao compreender
o carácter falível de toda a decisão acaba por apelar à prevalência de um
permanente espírito crítico. Dessa forma, o reconhecimento do erro não
constitui nenhum modo de expiação moral, como é característico das ditaduras,
mas antes uma manifestação de lucidez política.
Já no que diz respeito
ao segundo ponto parece-me muito relevante que um homem que sempre se situou no
campo da esquerda liberal e democrática formule o tipo de considerações que ele
próprio proferiu acerca de alguns aspectos da sua acção governativa. No fundo
admitiu que apesar da dimensão da crise internacional o Governo que integrou
deveria der agido com maior rigor quer na fase de expansão económica, quer no
seu momento recessivo. Esta tese colide radicalmente com a interpretação
histórica dessa época recente prevalecente em largos sectores da esquerda
democrática europeia. Colide, desde logo, com a posição daqueles que
identificam qualquer preocupação séria de rigor orçamental com a prática de uma
austeridade desumana. Solbes revelou uma grande coragem ao contrariar o
espírito sectário do tempo e permitiu, a meu ver, a abertura de uma discussão
que desejavelmente também se deve levar a cabo no caso português.
2. Há umas semanas atrás publiquei neste espaço um
artigo intitulado “A Defesa da Honra do PS “. Tal como previa e, aliás,
afirmei na ocasião, tal texto originou severas críticas. Não há dúvida que
teria sido bem mais cómodo permanecer em silêncio. Só que tal comodidade
incomodar-me-ia. De resto, as críticas que me foram dirigidas não se afastaram
do campo da argumentação democrática livre e racional e, como tal, merecem a
consideração de uma resposta.
Em nenhum momento desse
meu texto afirmei que o PS enquanto instituição ou aqueles, muitos, que em seu
nome agiram não cometeram erros ou não praticaram actos merecedores de
reprovação. Também não só não reclamei para o PS o exclusivo do contributo para
o que de melhor sucedeu no nosso percurso nacional nas últimas décadas como até
critiquei a tese, hoje muito divulgada, que procura desqualificar a
contribuição fornecida por outros partidos, em especial os que se situam no
campo da direita democrática e liberal.
O que afirmei e reitero
é a minha plena convicção de que o PS teve ao longo dos anos um papel decisivo
na edificação do regime democrático, na criação de condições promotoras do
desenvolvimento económico e na instauração de um Estado Providência que
dignificou a vida de milhões de portugueses. Afirmei ainda que essa é a
verdadeira identidade do PS contrariando, desta forma, a caluniosa imputação
que lhe tinha sido dirigida pelo Bloco de Esquerda. Admitirão aqueles que me
criticaram que a natureza da minha intervenção pública não é coadunável com
qualquer tipo de obstinação acrítica ou de proselitismo primário.
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