Foi Rousseau que o apelidou de
“bom”, porque lhe encontrou virtudes, as virtudes da simplicidade, na sua
comunhão com a natureza-mãe, uma mãe que alenta e educa, e é por isso que Rousseau
lhe chama bom, ao selvagem. É certo que Voltaire, que era do contra, achava que
não, que a civilização é que era boa e até apetitosa, com confortos, bons
médicos, bons mestres já nessa altura, e boas comidas.
Naturalmente, Alberto
Gonçalves chama péssimo selvagem a António Costa, porque este
se exprime pior que o de antigamente, o tal da simplicidade que a civilização
ainda não corrompera. Mas esse dado até pode traduzir uma maior simplicidade e melhores
sentimentos que os do bom selvagem do Rousseau. Provavelmente o
do Rousseau conservava a sua língua na sua pureza primitiva, daí a estima de
Rousseau por esse, ao passo que nós, os “péssimos” de agora, seguidores do
nosso Primeiro, somos desleixados com a nossa – (língua) - e
vamos mesmo assinando “acordos” linguísticos um tanto apatetados, e até lhes
chamamos “acórdos”, como também chama o nosso Primeiro, exemplo que escapou a Alberto
Gonçalves, que citou uma catrefada dos seus erros linguísticos, entre os
quais o da haplologia na competividade, mas esqueceu-se deste da
metafonia, na questão do timbre do o, que alteramos, por vezes, no
plural, como nos “óvos”, esquecidos dos “desgostos” que não alteram, nem
mesmo os “repolhos” e os “zarolhos”, apesar dos “ólhos”. Nem os “acordos”, meu
Deus!
Quanto à confusão entre o
verbo “tar” e “ter”, já pegou também, não há retorno, que somos povo aficcionado
- da confusão, como da tourada.
Vê-se mesmo que Alberto
Gonçalves é da estirpe requintada e trocista do Voltaire! Por isso chama “péssimo”
selvagem ao nosso Ministro, e só porque este não estima a língua, tamos fritos,
porque somos muitos. O superlativo de bom é óptimo, péssimo,
só para “mau”.
O que nos vale é a teoria da relatividade, também para os pontos
de vista. Acabo de ouvir o termo “acórdos” por um comentador do primeiro ano de
Trump no seu governo. Os erros por aqui alastram. Como os incêndios.
O péssimo selvagem
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 20/1/18
Na quinta-feira, o dr. Costa escreveu no Twitter: “Tive com o Presidente
da República da Eslovénia e tivemos uma excelente e amigável reunião de
trabalho”. Desconheço o idioma em que a excelente e amigável reunião decorreu,
mas rezo aos santinhos para que não fosse o português. Numa única frase, o
dr. Costa conseguiu incluir “tivemos”, do verbo “ter”, e “tive”, do verbo
“tar”, sem perceber que um dos vocábulos apenas cabe nas sofisticadas conversas
mantidas pelas altas esferas do PS.
Vendo bem, pouco surpreende num sujeito que diz “verdeira” (queria dizer
“verdadeira”), “poder-lhe-dizia” (“podia dizer-lhe”), “competividade”
(“competitividade”), “prelenamente” (“plenamente”), “insintizamos”
(“sintetizamos”), “era o que eu estou” (“era o que eu estava”), “pulação”
(“população”), “arrepatação” (?), “badéfice” (“défice”), “protividade”
(“produtividade”), “mobilição” (“mobilização”), “precalidade” (“precaridade”).
E isto numa única ocasião, uma intervenção no parlamento há cerca de um ano
(encontra-se facilmente na “net”, sob o adequado título “António Costa desafia
Jorge Jesus para um duelo de português”). O dr. Costa escreve como fala e, para
nossa miséria, provavelmente fala como pensa.
Mesmo se acertasse na grafia ou na fonética, as palavras que compõem o
discurso do dr. Costa são escassas e, em geral, horrendas. “Competitividade”.
“Desafio”. “Sustentabilidade”. “Estreitar”. As expressões são ainda piores:
“prestação operacional”, “fazer renascer”, “aposta estratégica”, “coesa e competitiva”.
Se adicionarmos a desastrosa pontuação (“Reuni hoje em São Bento, com o
Primeiro Ministro [sic – nem o próprio cargo escapa à razia gramatical] da
Grécia.”), é inevitável que cada texto do homem constitua uma portentosa
colectânea de vacuidades, para cúmulo quase sempre mentirosas. O que vale ao
dr. Costa é o inadvertido sentido de humor, talento que, em Setembro passado, o
levou a louvar a língua portuguesa na ONU. Meses antes, incitara os professores
de português a partirem para França – um óptimo conselho, já que, a julgar pelo
dialecto do primeiro-ministro, há décadas que aqui não andam a fazer nada.
Muitos acharão que, sendo o dr. Costa um indivíduo que usurpa as
eleições para alcançar o poder, abre o poder a forças totalitárias, derruba a
austeridade através do generoso aumento dos impostos, nacionaliza subtilmente o
que se mexe e o que não se mexe também, regulamenta os comportamentos e não
tarda a respiração, compra parcelas da sociedade mediante benesses e a
devastação do resto, controla os “media” que consegue controlar e censura o que
não controla, subtrai à ralé para resgatar compinchas e “elites” e despreza com
estranho descaramento tragédias inéditas, o pormenor dos atentados lexicais é
só um pormenor, um anexo, um pechisbeque minúsculo e até divertido. Não é. Sem
o analfabetismo, acumulado em militância partidária de décadas, seria
improvável que alguém cometesse as proezas acima descritas. A espectacular
ignorância da criatura é essencial para compreender a criatura e as respectivas
acções.
A História, claro, prova que a sabedoria não garante a virtude. Porém,
não faltam histórias sobre a facilidade com que a boçalidade extrema propicia a
malvadez, e assegura calamidades proporcionais à influência do boçal. O mito do
“bom selvagem” é exactamente um mito. Por definição, o selvagem – incluindo
aquele a quem se vestiu um fatinho e largou no Rossio às gargalhadas – é
manhoso, cruel e incapaz de experimentar empatia. O selvagem torce a realidade
até esta se encaixar nos seus pobres delírios. O selvagem confunde delírios com
princípios e convicções com apetites. O selvagem é mau. O selvagem é péssimo.
Reduzido ao primitivismo, o ser humano dedica-se a uma actividade exclusiva: a
sobrevivência, à custa de tudo e de todos.
A fim de chegar onde pretende, e onde o seu turvo discernimento exige, o
selvagem faz (com previsível brutalidade) o que é preciso e diz (com
previsíveis calinadas) o que era escusado. Além de atropelar a língua, e
justamente por causa disso, o selvagem atropela o que calha. O selvagem fica
impecavelmente numa jaula. Às vezes, o azar coloca-o num trono. Numa ocasião ou
noutra, nem países civilizados escapam a cair nas mãos de um puro, rematado e
perfeito selvagem. No Portugal recente, cujo nível civilizacional está aberto a
debate, essa negra hipótese era uma fatalidade adiada por milagre. É evidente
que os milagres acabaram. Tamos desgraçados.
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