quarta-feira, 31 de maio de 2017

Em catadupa



E faz tem-tem, António Costa. E sobe e desce, respectivamente, o positivo e o negativo. Sintagmas, pronomes, advérbios, verbos, conjunções, numa roda-viva, em espécie de discurso indirecto livre, na dobadoira dialogante que para eles foi fabricada, de muito pormenor andarilho, que o estilo repetitivo, e simultaneamente conciso e perfurante, acentua. Um homem preocupado, que nos vai alertando. Com indignação e saber.
Julgo que repus os textos. Falta-me o de 14/5, que não encontro. E as fotografias expressivas, com os respectivos apoios comentaristas de tanto interesse, que não transcrevo, atida ao essencial que estamos vivendo. E Viva Portugal!

Sem emenda
Súplica ao Senhor dos Aflitos
António Barreto
OBSERVADOR, 21/5/17
São dias fastos. O défice abaixo de 1,4%! E a baixar... O crescimento a 2,4%! E a subir... O Presidente Marcelo já fala de 3,2%... A sorrir... O desemprego a 10%! A diminuir... O consumo privado a subir. Muito pouco, mas a subir... A poupança a subir. Pouco, mas para cima. O investimento a dar sinais. Poucos, mas bons... Os fundos europeus a chegar. Muitos e a aumentar... O turismo a subir. Muitíssimo... As exportações a subir. Sempre... Só a dívida não mexe...
O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro Costa e o governo têm feito tudo o que podem para aproveitar a oportunidade boa conselheira e o vento favorável. E têm conseguido. Com alguns proventos que herdaram do governo anterior. Com a paz social, obra e graça dos sindicatos. Com a benevolência dos empresários, cansados de apertos. Com o clima geral económico de feição. Com os auspícios da Europa e do Ocidente. Com uma inédita conjuntura turística que ainda pode durar mais uns anos. Com uma coragem excepcional dos exportadores. Com a mudança de atitude europeia relativamente aos países do Sul, aos devedores e aos mais atrasados. Não estava escrito no céu, era possível não aproveitar os faustos. O mérito do governo é o de saber estar no sítio certo. E o do equilíbrio entre compaixão e austeridade.
Costa é muito hábil. Sim. Habilidoso. Sim, também. Sabe tudo de manhas e artimanhas. Sabe. É pragmático. É. Trata sem dogmas e resolve sem ideologia. Sim. Não perde tempo com o acessório. Não. O importante é manter-se. Sim. Tem enorme capacidade de negociar tudo. Tem. Pode durar mais do que se pensa. Pode. Tem sorte. Muita. Está a ser ajudado pelo mundo e pela Europa. Sim. Todos ajudam, a economia, a reacção a Trump, a derrota de Hollande, o receio de Merkel e as ameaças de Putin. Os comunistas estão por tudo. Estão. Sabem que é a sua última oportunidade. Sabem.
Vivemos aquele momento estranho que vem descrito nas teorias dos jogos. O PS quer ganhar e dispensar os dois outros. Os dois outros querem mostrar que são indispensáveis, mas desejam impedir que o PS ganhe com maioria absoluta. Se o PS ganhar, os dois outros podem ir para a rua. Ou ficar cortesmente lá, sem uso nem força. Ninguém sabe, nem PS nem os dois outros, quem bate com a porta, quem deve sair a correr ou ser corrido. Quem fica com as culpas e quem ganha. Quem ganha a perder ou perde a ganhar. Mas até 2020 alguém vai perder... Esperemos que não sejam os portugueses.
Há um clima favorável. Que é sempre o mais importante. É o bom clima que gera a confiança. Para isso, contribuíram os portugueses e os estrangeiros, os empresários e os trabalhadores, a economia europeia e as autoridades portuguesas, a União Europeia e o governo português. É possível, perfeitamente possível, que tenhamos iniciado um período de retoma, de recuperação económica e de crescimento, a par de outros vividos aquando das crises do petróleo, da crise da revolução e das crises dos dois resgates dos anos setenta e oitenta. É possível. Depois do que sofreu, entristeceu e empobreceu durante quase vinte anos, é essencial este pobre país reconciliar-se consigo próprio. Seria ainda mais importante que, após três ou quatro anos de recuperação e restauro de forças, tivéssemos alguma esperança em que tudo não recomeçaria depois, mais uma vez...
Esta é uma prece ao Senhor dos Aflitos. Uma súplica para que os nossos dirigentes políticos não estraguem tudo outra vez, para que não abram desalmadamente os cofres, para que não voltem a meter ao bolso, para que não gastem o que não têm, para que não construam túneis e viadutos, para que não desperdicem como novos-ricos, para que não façam mais parcerias ruinosas em que os privados ficam com os lucros e o público com o prejuízo, para que não autorizem swaps, para que não voltem a recrutar dezenas de milhares de funcionários públicos, para que não aumentem salários acima do razoável, para que não voltem a bater nos pobres, para que não dêem aos ricos o que eles não precisam, para que não continuem a pensar que se pode viver eternamente com dívidas, para que parem de pensar que os credores têm a obrigação de socorrer os devedores, para que dêem espaço e liberdade aos empresários e para que não voltem a viver como se não tivessem filhos.

Sem emenda
Os sonsos e os vilões
António Barreto
OBSERVADOR, 7/5/2017
A política e a atitude deste governo, relativamente ao sistema financeiro, aos "casos" aflitivos, ao BES, ao Novo Banco, à Caixa, ao Banif e ao Montepio, são parecidas, talvez mesmo iguais, à do anterior governo: não é nada com eles! É com o Banco de Portugal, com o Banco Central Europeu, com a Comissão Europeia, com quem quiserem e sobretudo com o anterior governo, menos com eles!
Já soubemos, por testemunho directo e presencial, que o assunto nunca foi discutido seriamente no Conselho de Ministros anterior, tudo levando a crer que o mesmo esteja a acontecer no actual. É simplesmente inimaginável! O mais sério problema não é discutido no governo, nem é agendado para Conselho de Ministros! A situação financeira, o futuro do Banco de Portugal, o endividamento, o destino a dar aos principais bancos e a nova configuração da banca portuguesa... Tudo isso é matéria que escapa ao governo. São assuntos sobre os quais os últimos governos não têm ou, antes, não querem ter posição. São temas a propósito dos quais os governos não querem ter responsabilidades. Mesmo que se diga que Portugal já não é um país soberano, este não é o comportamento que se deva esperar do governo. Mesmo que se saiba que nada se fará sem a decisão do BCE e da Comissão Europeia, esta não é uma conduta responsável do governo.
Nunca se viu um tão grande número de especialistas em finanças! Toda a gente sabe o que se passou no BES, no Novo Banco, no Montepio, no BPN, no BCP ou na CGD! Toda a gente tem uma opinião sobre o assunto. Mas há um problema: as opiniões vêm ligadas à simpatia. Os socialistas apoiam as medidas tomadas pelos socialistas e subscrevem as críticas feitas aos sociais-democratas. Os sociais-democratas, exactamente ao contrário. Os amigos de Sócrates criticam antecessores e sucessores, designadamente Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Os amigos de Passos Coelho denunciam sucessores e antecessores, nomeadamente Sócrates, Teixeira dos Santos, Costa e Centeno. Os amigos de Costa culpam os antecessores, mas distinguem entre Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, muito maus, e Sócrates, que silenciam. Simpatizantes do CDS desculpam amigos e responsabilizam adversários. Comunistas e bloquistas culpam acidamente a direita e desculpam envergonhadamente a esquerda. Todos, esquerdas e direitas, culpam o Banco de Portugal e Carlos Costa, a União, Juncker e Dijsselbloem. E não se metem com Draghi, porque é ele que nos compra a dívida. Os maus estão sempre lá fora e na oposição.
Depois há ainda outros fiéis, amigos e interessados. Amigos da Caixa, amigos do BCP, adeptos do BES, simpatizantes do Banco de Portugal, admiradores de um presidente da Caixa e seguidores do outro, de todos temos essencialmente a mesma versão, só mudando os protagonistas: os amigos têm razão, os outros não. E de muitos economistas, jornalistas, comentadores, professores e consultores de quem se esperava uma análise isenta e uma interpretação financeira e política, temos profissões de fé. As coisas não são muito diferentes das do futebol: o meu clube tem razão, os outros não. Ponto final. A análise, o comentário, o exame, a polémica e a interpretação vêm depois de garantida a culpa do outro e a bondade do meu!
As responsabilidades pela lamentável situação em que se encontra o sistema financeiro português devem ser imputadas a muita gente dos últimos cinco governos, incluindo dirigentes da administração pública e das instituições, gestores, banqueiros, funcionários públicos, magistrados, polícias e outros. Mas há certamente uns muito mais do que outros. Era tão importante atribuir responsabilidades! Era tão importante, para a democracia e as liberdades, saber quem é responsável pelo desastre inédito das instituições e das finanças portuguesas! Era tão importante castigar exemplarmente os verdadeiros culpados! Sejam eles primeiro-ministro, ministro, banqueiro ou gestor!
Mas será para sempre impossível. É o que parece. A maneira como falam as pessoas e os especialistas, como comentam os profissionais e os amadores, como se defendem e como atacam os políticos governantes e deputados, tudo isso leva a uma conclusão: nunca saberemos com o menor rigor! Nada entenderemos. E tudo pagaremos!

terça-feira, 30 de maio de 2017

Mas para nós tudo flui no melhor dos mundos



Paulo Rangel está, naturalmente, assustado com um estado de conflitualidade interna em que as actuais e as antigas potências se envolveram - nomeadamente os EU e o RU, por desejarem livrar-se das trapalhadas criadas pela boa vontade democrática - e sobretudo cristã (não esqueçamos os braços abertos do nosso Cristo de universalidade e solidariedade abrangentes, figura tão profundamente oposta à da interiorização “umbiguista”, embora toda espiritual, da meditação de Buda) - com que os povos da União Europeia desejaram um dia tornar a Europa um continente fortalecido pela abertura “ao outro” e entreajuda económica - de compromissos, é certo, a respeitar, sobretudo pelo “outro”, aquele que foi grandemente favorecido e julgou aboletar-se para sempre numa situação de privilégio, esquecido dos seus compromissos.
Essa conflitualidade, proveniente, sobretudo, do estado de saturação dos povos mais sacrificados, como são esses maiores, que deram mais guarida e auxílio, e que arrasta outros na mesma linha de comportamento, pretendendo libertarem-se, nos seus nacionalismos mais ferrenhos e pacíficos, merece o repúdio de Paulo Rangel, como, aliás, de todos nós que nos habituámos a viver melhor - embora com grandes incertezas no futuro dos nossos.
Para colorir essa “tragédia política do Ocidente” pela deserção dos grandes, que tanto afecta os pequenos como nós, que canalizamos as nossas opções vivenciais no sentido dos prazeres mais fisiológicos do que de espiritualidade, transcrevo dois artigos do mesmo Público, de João Miguel Tavares, aparentemente satisfeito com as coisas por cá, que ganhámos um festival e um campeonato interno - nesta altura já dois, pelo mesmo clube - brilharete em duplicado, que o nosso presidente não deixará de registar e, além do Papa que já deixou de ser notícia, temos a saída do ranking desprestigiante, pese embora o aumento da dívida, ao que se diz.
Sejamos, pois, optimistas, cultivando a nossa horta para as sopas, embora nos entreguemos, de preferência, à boa febra.

O “umbiguismo” como tragédia política do Ocidente
A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente.
Público, 23 de Maio de 2017
Paulo Rangel
1. A vida tem as suas ironias. O voto em Trump foi um voto nacionalista. O voto pelo "Brexit" foi outro voto nacionalista. Supostamente esta opção nacionalista, muito actual e em linha com um retorno à pureza alquímica do Estado-nação, serviria para engrandecer os Estados respectivos e os feitos dos seus povos. E daí que as campanhas eleitorais tivessem feito ecoar os magnos desígnios de fazer a América grande outra vez e de restaurar a influência de um Reino Unido pós-imperial (pela voz de alguns, mesmo “retro-imperial”). A eterna busca da idade do ouro, dos tempos de uma soberania mitificada, guiou e guindou esta vaga de nacionalismo “anti-globalização”. É evidente que este regresso à nação e à alegada soberania perdida tem um escopo e esse escopo é relançar a grandeza de tais nações. Grandeza essa que não se traduz apenas no incremento do bem-estar e da qualidade de vida dos povos respectivos, mas que se consubstancia essencialmente na projecção do seu poder, da sua influência e do seu prestígio à escala internacional, à escala global. Regressar à nação e ao seu fechamento para a tornar maior, para a fazer mais forte, para a alcandorar ao estatuto de suma potência. Não se trata só de governar para dentro; trata-se de converter o estado, a nação e o povo em objecto de admiração, de respeito e até de temor de todos os restantes. Isso sim, é fazer da América a maior e é fazer dos britânicos os cobiçados lordes e senhores de outrora. Mas, convém não esquecer nem menosprezar, a vida tem as suas ironias.
2. Desde que o "Brexit" começou a fazer o seu curso, lento e difícil, com enorme resistência e relutância da fabulosa máquina diplomática britânica, que o Reino Unido mergulhou numa agenda puramente interna. Basta olhar para a campanha eleitoral para ver que programas e promessas se haurem e esvaem no "Brexit". A vida política britânica está reduzida à negociação do divórcio com a União Europeia, sem tempo, sem disponibilidade e sem cabeça para mais nada. Quanto vai ter de pagar ou quanto vai recusar pagar? Fica com acesso ou sem acesso ao mercado único? Como vai organizar a circulação de migrantes? Vai diferenciar entre europeus e não europeus? Que estatuto vai dar aos cidadãos da União Europeia que já ali viviam e aos britânicos que vivem na União? Pelo meio das propostas folclóricas de James Corbyn, só há debate e pensamento para as questões sérias do divórcio. Não há nenhum projecto de futuro, não se vislumbra nenhuma visão, não se acende nenhuma ideia do que será o dia seguinte. Todas as energias se consomem nas negociações da saída, no cálculo das incertezas, no inventário dos instrumentos de pressão, no deve e haver dos trunfos e fraquezas. O Reino Unido reclina-se sobre o seu umbigo, torce-se e contorce-se em volta dele. Não há maneira de este nacionalismo e de esta pretensa recuperação de soberania fazer da Velha Albion uma nação mais forte, mais influente, mais determinante no panorama internacional ou global.
O risco desta obsessão britânica é de arrastar consigo toda a União Europeia para um “umbiguismo” paralelo. Em vez de cuidar do futuro e de tratar das feridas da zona euro, das brechas do espaço de liberdade, justiça e segurança e das perspectivas de uma verdadeira união de defesa, fica prisioneira de um alucinante e estafante processo de divórcio. É essa a tentação que tem de evitar. A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente, enquanto se vai negociando os termos do divórcio, que se quer amigável.
3. Donald Trump quer fazer a América grande ou, mais exactamente, a maior! Mas está irremediavelmente perdido no labirinto da sua errância. Toda a sua atenção e, já agora, da classe política norte-americana está absorvida pelos escândalos de Trump, pelas suas declarações contraditórias, pela sua tentativa de obstruir a justiça, pelas nomeações polémicas, pelas esquisitas ligações à Rússia, pela omnipresença da família. A administração americana está completamente consumida pela agenda das trapalhadas de Trump. A deriva nacionalista deu nisto: não se pensa na nação nem na sua projecção, fica-se mesmo pela sobrevivência política de um indivíduo e pelas desventuras da sua família e dos seus amigos. De tanto se querer fazer a América grande ou até enorme, acaba-se a olhar para o umbigo e a tratar de assuntos de nível comezinho e rasteiro. A Rússia agradece e bate palmas. A China até já parece uma campeã do comércio livre e justo, uma aspirante a defensora dos direitos humanos e uma empreendedora de projectos de verdadeiro impacto global (como a redescoberta da rota ferroviária da seda). Os Estados Unidos, com o seu programa nacionalista, desembocaram no mais pobre e descoroçoado “umbiguismo”. Trump e a sua administração não têm tempo nem disponibilidade para se ocuparem dos grandes desafios políticos e estratégicos; na verdade, e usando uma linguagem prosaica, muito ajustada ao visado, Trump já só pensa em “se safar”. É este o grande desígnio da bandeira nacionalista que decidiu erguer: “safar-se”.
4. A vida tem as suas ironias. As duas campanhas mais nacionalistas dos últimos anos – a do referendo britânico e a das presidenciais americanas – em nada serviram para reforçar o peso dessas duas nações e dos seus poderosos Estados. Bem pelo contrário, mergulharam-nos numa espécie de encapsulamento e ensimesmamento interno. Que fique a lição para aqueles que andam para aí tão satisfeitos, para não dizer ufanos, com o regresso do nacionalismo e o retorno à política doméstica. Dizem que, pelo menos, reforçaria a democracia. Olhando para a destruição do Partido Trabalhista e para a tragicomédia política em Washington, ainda não deu para perceber em que é que esta deriva “umbiguista” fortaleceu os respectivos modelos democráticos. A vida tem as suas ironias.
SIM. Saída do Procedimento de Défice Excessivo. Eis um momento decisivo e justo para todos os portugueses. Merecem boa nota os governantes que de 2011 até agora perceberam a importância desta meta. 
NÃO. Classe política brasileira. Temer é talvez o caso mais grave, mas a corrupção é generalizada e não se vê como pode regenerar-se o sistema político. Uma tragédia política de proporções globais.

OPINIÃO
O que é que mais pode correr bem?
Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
João Miguel Tavares
16 de Maio de 2017
Agora que Salvador Sobral venceu a Eurovisão, o Papa veio a Fátima canonizar dois pastorinhos, o Benfica foi tetracampeão, o primeiro-ministro revelou-se um magnífico primeiro-nanny para os meus filhos e a economia cresceu 2,8% no primeiro trimestre de 2017, suponho que a única coisa que me resta é começar a preencher este espaço com corações cor-de-rosa desenhados a caneta de feltro, um sol muito amarelo junto ao Bartoon do Luís Afonso, e um riacho azul a deslizar até à ficha técnica do jornal. Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
Peguemos, por exemplo, no que era suposto ser a pior notícia do mês para o Governo – a greve dos médicos. À primeira vista, era uma greve importante. Metia médicos, a saúde dos portugueses, gente a bater com o nariz na porta de consultas marcadas há meses – e era o primeiro grande momento de contestação social à política do Governo. Mais: quando se juntava a greve do dia 10 e 11 à inacreditável tolerância de ponto de dia 12, estávamos a falar de três dias consecutivos sem médicos nos hospitais – cinco, se contarmos com o fim-de-semana. Pergunto: alguém deu por isso, tirando os pobres utentes que tiverem de voltar para casa com receitas vazias? Eu cá não dei. Embora os sindicatos do sector garantam que não só houve greve como a adesão terá atingido os 90%, ela foi praticamente invisível. Ou seja, na era de António Costa, não só há poucas greves, porque a esquerda apoia o Governo, como as poucas que há não têm qualquer impacto mediático. Quem fica malvisto ainda são os grevistas, tidos por excessivamente reivindicativos numa altura em que o senhor primeiro-ministro se está a esforçar tanto para endireitar o país.
Ajoelhem-se, caros leitores, porque diante de nós está a ressurreição de Portugal: tudo o que era sofrimento com Passos Coelho se transmutou em alegria com António Costa. Não se trata apenas de o Diabo não ter vindo – trata-se de, em vez dele, ter comparecido o Arcanjo Rafael, que tudo remedeia e tudo cura, em termos físicos, psíquicos e espirituais. Em vez das sete pragas do Egipto temos as sete bênçãos dos céus. Não pensem que estou a sugerir aqui qualquer espécie de manipulação mediática, com os jornalistas congeminados numa grande conspiração para perpetuar os socialistas no poder. Nada disso. Costa, simplesmente, conseguiu juntar: 1) um país cujo ajustamento mais doloroso já tinha sido feito à custa do odioso Passos; 2) uma Europa a crescer de forma significativa; 3) um Mario Draghi a prometer continuar a comprar dívida aos magotes; 4) uma esquerda que se mantém fora das ruas e deixou de ir gritar para as televisões; 5) um pragmatismo que o leva a borrifar-se para a estratégia política prometida, porque a prioridade continua ser o cumprimento das regras europeias; 5) uma postura optimista e sorridente que o distancia do ar macambúzio de Passos.
O resultado dos pontos 1 a 5 é este: tudo corre bem a António Costa. Ainda que no final do mês o dinheiro que sobra na carteira dos portugueses seja o mesmo que sobrava no tempo de Passos Coelho, o que antes era uma terrível tempestade agora é um quadro de William Turner. Com a habitual ciclotimia portuguesa, a besta passou a bestial. Voltámos a ser os maiores: campeões europeus a jogar à bola, campeões europeus a cantar, campeões europeus a acreditar. Passem os lápis de cera, por favor – sinto uma necessidade urgente de desenhar passarinhos a chilrear.

Augusto Santos Silva, Salvador Sobral e a RTP
Os irmãos Sobral criaram uma grande mas sem as boas ideias de profissionais competentes e independentes na RTP, não teriam chegado a criar coisa alguma
18 de Maio de 2017
O ministro dos Negócios Estrangeiros louvou ontem a vitória de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, num artigo de opinião no PÚBLICO onde cruza a crítica musical arguta com a subtil análise política. “Não se trata apenas de celebrar uma vitória nacional”, escreveu Augusto Santos Silva, “mas o modo como foi conseguida”. É um facto: os irmãos Sobral apresentaram-se com uma canção que qualquer pessoa com décadas de Eurovisão diria não ter quaisquer hipóteses, por ser pouco festivaleira – este equívoco torna a vitória de ambos ainda mais meritória.
Mas se Santos Silva percebeu bem a singularidade musical da canção, não resistiu depois a transformá-la numa singularidade lusitana, no sentido em que Salvador Sobral cantou em português, afirmou o seu talento individual e rompeu com a “lógica comercial, do marketing, da uniformidade e do monolinguismo” que dominava a Eurovisão. Como de costume, assim que nos apanhamos a vencer não resistimos a pregar ao mundo. Ora, se é verdade que Salvador Sobral demonstrou, como era seu desejo, que “a música não é um fogo-de-artifício”, também é verdade que ele e a sua irmã foram dois magníficos trunfos de marketing nos últimos meses – por causa da simpatia e espontaneidade de ambos, por dominarem um apreciável conjunto de línguas, e porque o próprio Salvador é uma personagem fascinante, que extravasa a dimensão estritamente musical. Sim, é verdade que ele é um intérprete notável e um justo vencedor, mas a vitória na Eurovisão não se deve apenas à sua singularidade enquanto intérprete – pelo contrário, deve-se à construção altamente profissional de um caminho que permitiu que essa singularidade se manifestasse.


segunda-feira, 29 de maio de 2017

Ai, América, a quanto obrigas!



 A cada um retomar o seu respectivo lugar na paleta do mundo, sem estar sempre à espera de que seja ela a aparar os golpes das ambições de muitos, que vão construindo a sua bem-aventurança à custa do amparo que lhe vem do outro lado do mar, do continente posto ali para vir em socorro do continente que um dia o encontrou por engano, e que nele semeou ambições e cálculos de um poderio inextinguível. E foi assim que os EU se comprometeram a defender o mundo do domínio comunista primeiro, sacrificando as suas tropas lá na Ásia, já depois de as sacrificar cá na Europa e posteriormente intervindo no Médio-Oriente, mas creio que também por interesse próprio, por via dos petróleos que lhe reforçam os poderes, com que vão contaminando o mundo, numa poluição de que não arredam pé. Vasco Pulido Valente, com os dados realistas da sua análise histórica, apoiado pela escrita justiceira de António Barreto, que vai na mesma via de uma moral de justiça e reposição de responsabilidades, explica como Donald Trump está cansado desse leite que fornecem os seus, numa teta que ele está em vias de nos retirar, achando que chegou a altura de deixar que cada um se afunde sozinho, já que uma Europa de democracia pretende amparar toda a gente, por caridade cristã, tendo começado por se unir economicamente - o que nos foi útil a nós, portugueses, é certo, com esse maná que nos permitiu traçar estradas e engenhos eólicos e reforçar verbas nos nossos bolsos, mas de uma forma bastante imprudente.
É por tudo isso que também a nós, portugueses, compete ter mais sensatez nessa questão dos empréstimos e não acreditar tanto no levantamento do libelo que nos acusa de lixo, levantamento que tanto fez António Costa pavonear-se, mas parece que não há motivo para tal. Sobretudo se Donald Trump nos tirar a todos o tapete, como informa a escrita histórico-moralista de V. P. V. e a moralista-histórica de A. B.
Nossa Senhora de Fátima rogará por nós, como prometeu. Oremos.

Diário de Vasco Pulido Valente
Surpresas
OBSERVADOR, 28/5/2017
… hopes expire of a low dishonest decade… (W. H. Auden)
Manuela Ferreira Leite e o nosso muito querido Marcelo, como toda a gente, não vêem obstáculos à próxima regeneração da Pátria, a não ser que venha por aí uma grande surpresa. Com certeza não repararam ainda na existência e no carácter político do Presidente Trump. Trump, para o público bem-pensante, não passa de um objecto de ódio. Mas sucede que ele é também, e com mais consequência, o representante do isolacionismo que, depois de quase 80 anos, voltou a dominar a América. Como a Inglaterra, no fim do século XIX, princípio do século XX, a América acabou por se cansar do papel de polícia do mundo, que de facto carrega desde 1941. Ainda com tropas em 17 países, está farta de guerras e de gastar dinheiro com elas. O que Trump disse em Bruxelas na inauguração do edifício da NATO (que custou mais de mil milhões) é uma clara afirmação disso mesmo. Com a sua costumada brutalidade, o homem avisou a União Europeia que tinha de pagar a sua parte na defesa comum, que 23 dos seus 28 membros não pagam, e as dívidas acumuladas no passado recente, que, segundo parece, são enormes. E para esclarecer melhor onde queria chegar não invocou, como era tradicional, o artigo 5 do tratado da Aliança Atlântica, pelo qual a América estende a sua protecção à Europa dita Ocidental. Os senhores da UE, que se fundou e cresceu ao abrigo desse guarda-chuva, não ficaram contentes. Para começar, irão ter de investir 2 por cento do PIB em armamento e, a prazo, sobre eles paira a ameaça, que Trump deixou implícita, da completa anulação das responsabilidades americanas nos assuntos da UE, que ele considera irresponsável e parasitária. A referência ao expansionismo de Putin como que dava a entender que a Europa devia tratar dele sozinha; enquanto a América trataria do equilíbrio entre as grandes potências. Ora, se assim for, a Europa, que não é manifestamente uma grande potência, cai de novo no seu antigo problema: como evitar a hegemonia alemã? Ou mesmo, a leste, a hegemonia russa?
Mais do que isto, que não é pouco, os murmúrios sobre os “excedentes” da Alemanha e a inquietação sobre a política comercial de Trump – outro sintoma do isolacionismo – provocaram uma imprevisibilidade universal pouco favorável ao investimento. Só os mestres do optimismo português andam descansados.
………………..
A Gala da SIC, além do vexame para a humanidade que sempre foi, teve um ar póstumo, com nomes gastos, graçolas sem graça, e o velho Balsemão consolado no banho de sabujice de que ele tanto gosta. Mas, desta vez, trouxe uma novidade. A tribo que a si própria se chama “indústria do entretenimento” ou até “cultura” queixou-se muito da avareza do Estado: das fatias que lhe cortaram no orçamento; do fim de teatros que inexplicavelmente se descrevem como “independentes” (e que, de facto, só são independentes do público); do cinema que não se fez (e não fez falta a ninguém); e de maneira geral da “lei seca” a que a submeteram.
O dr. António Costa, que a tribo miseravelmente rondou em 2015, está de parabéns.

Quem deve teme
António Barreto
DN, 28/5/17
Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção
Nas vésperas da cimeira da NATO em Bruxelas, o ministro da Defesa português prestou declarações às televisões. Não terão sido esclarecimentos formais, em ocasião oficial, mas o tom é elucidativo. Confirmou o ministro, com um sorriso de boa-fé, que era verdade que Portugal não cumpria os seus deveres para a segurança colectiva, nem sequer o compromisso mínimo estabelecido para a despesa com a defesa nacional, que é de 2% do PIB. Mas disse também que era preciso considerar a nossa contribuição qualitativa! Esta última é um mistério. As ilhas atlânticas? O mar? As praias? Algo que seja só nosso e mais ninguém tenha? Ou um jeito português especial?
Dos 28 membros da NATO, apenas cinco cumprem: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia, Estónia e Grécia. Todos os outros ficam abaixo dos 2%. Como Portugal, com 1,3%. Menção especial para a França, com 1,7%, a Alemanha 1,2%, a Itália 1,1% e a Espanha 0,9%!
Infelizmente, Donald Trump tem razão. Diz ele que os Estados Unidos não estão dispostos a pagar pelos outros sem que estes cumpram os seus compromissos. E ameaça os europeus. Não se sabe bem de quê, mas deve querer dizer coisa má. O problema é que, neste caso, está certo. Cada país membro da NATO tem de pagar pela sua defesa. A maior parte não paga os 2%. Preferem gastar com coisas mais agradáveis e entregar-se à protecção do poderio americano. A ideia é simples: tudo quanto ameaça a Europa ameaça também os americanos. Como estes são mais fortes e mais ricos, eles que se ocupem disso. E nem sequer a União tem uma política própria de defesa, muito menos uma capacidade autónoma.
Pode ainda recordar-se que, há quase vinte anos, a maioria dos partidos parlamentares (se bem me lembro, a única reserva foi do PCP...) acabou com o serviço militar obrigatório. Sem mais. Sem qualquer espécie de ideia sobre o que poderia ser uma contrapartida civil ou de solidariedade. Na verdade, foi a boa demagogia da facilidade e as velhas juventudes partidárias que forçaram a decisão! Mas a ideia estava dada: não se gasta com a defesa, há coisas mais importantes. E, de qualquer maneira, a NATO e os americanos estão aí para nos proteger.
Há actividades assim, em que alguém paga, alimenta ou mantém outrem! Eis uma relação que tem tradicionalmente um nome bem feio... E que se aplica às relações entre americanos e europeus na área da defesa.
Portugal não é um caso raro nem pior do que os outros. Há mais de vinte países da NATO que não respeitam os compromissos nem cumprem as suas obrigações. Dependem dos Estados Unidos. Até ao dia em que Donald Trump lhes dirá: "Não pagam pela vossa segurança? Então deixaremos nós de pagar. Ou não garantimos a vossa liberdade. Ou então exigimos contrapartidas políticas!" Nesse dia, toda a Europa, com excepção da Grã-Bretanha e pouco mais, se elevará contra a prepotência imperialista americana.
Esta atitude não está isolada. Faz lembrar a de tantos que entendem que os credores devem obedecer aos devedores e que aqueles a quem devemos dinheiro têm de fazer o que queremos e aceitar as nossas condições. Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção. Devem também pagar os juros e as dívidas, assim como aceitar a renegociação e o perdão da dívida. E devem subsidiar o desenvolvimento. Há mesmo quem queira obrigar os estrangeiros a pagar pela educação em Portugal, dado que depois se aproveitam dos emigrantes portugueses, cuja formação foi paga pelo país. É tão conveniente ter o nosso patriotismo pago por outros! E a independência subsidiada!
Os povos e os Estados têm o direito de não pagar a defesa nem as Forças Armadas. Como têm o direito de pedir emprestado a fim de financiar os seus investimentos. Não têm é o direito de exigir que outros os defendam, que outros paguem os seus militares e que outros arrisquem a vida em sua defesa. Nem têm legitimidade para exigir que lhes paguem ou perdoem as dívidas. Em poucas palavras: não têm o direito de viver às custas dos outros, ao mesmo tempo que reclamam a independência e o direito a serem tratados como iguais. Até porque não são iguais. Nem independentes.