quarta-feira, 31 de maio de 2017

Em catadupa



E faz tem-tem, António Costa. E sobe e desce, respectivamente, o positivo e o negativo. Sintagmas, pronomes, advérbios, verbos, conjunções, numa roda-viva, em espécie de discurso indirecto livre, na dobadoira dialogante que para eles foi fabricada, de muito pormenor andarilho, que o estilo repetitivo, e simultaneamente conciso e perfurante, acentua. Um homem preocupado, que nos vai alertando. Com indignação e saber.
Julgo que repus os textos. Falta-me o de 14/5, que não encontro. E as fotografias expressivas, com os respectivos apoios comentaristas de tanto interesse, que não transcrevo, atida ao essencial que estamos vivendo. E Viva Portugal!

Sem emenda
Súplica ao Senhor dos Aflitos
António Barreto
OBSERVADOR, 21/5/17
São dias fastos. O défice abaixo de 1,4%! E a baixar... O crescimento a 2,4%! E a subir... O Presidente Marcelo já fala de 3,2%... A sorrir... O desemprego a 10%! A diminuir... O consumo privado a subir. Muito pouco, mas a subir... A poupança a subir. Pouco, mas para cima. O investimento a dar sinais. Poucos, mas bons... Os fundos europeus a chegar. Muitos e a aumentar... O turismo a subir. Muitíssimo... As exportações a subir. Sempre... Só a dívida não mexe...
O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro Costa e o governo têm feito tudo o que podem para aproveitar a oportunidade boa conselheira e o vento favorável. E têm conseguido. Com alguns proventos que herdaram do governo anterior. Com a paz social, obra e graça dos sindicatos. Com a benevolência dos empresários, cansados de apertos. Com o clima geral económico de feição. Com os auspícios da Europa e do Ocidente. Com uma inédita conjuntura turística que ainda pode durar mais uns anos. Com uma coragem excepcional dos exportadores. Com a mudança de atitude europeia relativamente aos países do Sul, aos devedores e aos mais atrasados. Não estava escrito no céu, era possível não aproveitar os faustos. O mérito do governo é o de saber estar no sítio certo. E o do equilíbrio entre compaixão e austeridade.
Costa é muito hábil. Sim. Habilidoso. Sim, também. Sabe tudo de manhas e artimanhas. Sabe. É pragmático. É. Trata sem dogmas e resolve sem ideologia. Sim. Não perde tempo com o acessório. Não. O importante é manter-se. Sim. Tem enorme capacidade de negociar tudo. Tem. Pode durar mais do que se pensa. Pode. Tem sorte. Muita. Está a ser ajudado pelo mundo e pela Europa. Sim. Todos ajudam, a economia, a reacção a Trump, a derrota de Hollande, o receio de Merkel e as ameaças de Putin. Os comunistas estão por tudo. Estão. Sabem que é a sua última oportunidade. Sabem.
Vivemos aquele momento estranho que vem descrito nas teorias dos jogos. O PS quer ganhar e dispensar os dois outros. Os dois outros querem mostrar que são indispensáveis, mas desejam impedir que o PS ganhe com maioria absoluta. Se o PS ganhar, os dois outros podem ir para a rua. Ou ficar cortesmente lá, sem uso nem força. Ninguém sabe, nem PS nem os dois outros, quem bate com a porta, quem deve sair a correr ou ser corrido. Quem fica com as culpas e quem ganha. Quem ganha a perder ou perde a ganhar. Mas até 2020 alguém vai perder... Esperemos que não sejam os portugueses.
Há um clima favorável. Que é sempre o mais importante. É o bom clima que gera a confiança. Para isso, contribuíram os portugueses e os estrangeiros, os empresários e os trabalhadores, a economia europeia e as autoridades portuguesas, a União Europeia e o governo português. É possível, perfeitamente possível, que tenhamos iniciado um período de retoma, de recuperação económica e de crescimento, a par de outros vividos aquando das crises do petróleo, da crise da revolução e das crises dos dois resgates dos anos setenta e oitenta. É possível. Depois do que sofreu, entristeceu e empobreceu durante quase vinte anos, é essencial este pobre país reconciliar-se consigo próprio. Seria ainda mais importante que, após três ou quatro anos de recuperação e restauro de forças, tivéssemos alguma esperança em que tudo não recomeçaria depois, mais uma vez...
Esta é uma prece ao Senhor dos Aflitos. Uma súplica para que os nossos dirigentes políticos não estraguem tudo outra vez, para que não abram desalmadamente os cofres, para que não voltem a meter ao bolso, para que não gastem o que não têm, para que não construam túneis e viadutos, para que não desperdicem como novos-ricos, para que não façam mais parcerias ruinosas em que os privados ficam com os lucros e o público com o prejuízo, para que não autorizem swaps, para que não voltem a recrutar dezenas de milhares de funcionários públicos, para que não aumentem salários acima do razoável, para que não voltem a bater nos pobres, para que não dêem aos ricos o que eles não precisam, para que não continuem a pensar que se pode viver eternamente com dívidas, para que parem de pensar que os credores têm a obrigação de socorrer os devedores, para que dêem espaço e liberdade aos empresários e para que não voltem a viver como se não tivessem filhos.

Sem emenda
Os sonsos e os vilões
António Barreto
OBSERVADOR, 7/5/2017
A política e a atitude deste governo, relativamente ao sistema financeiro, aos "casos" aflitivos, ao BES, ao Novo Banco, à Caixa, ao Banif e ao Montepio, são parecidas, talvez mesmo iguais, à do anterior governo: não é nada com eles! É com o Banco de Portugal, com o Banco Central Europeu, com a Comissão Europeia, com quem quiserem e sobretudo com o anterior governo, menos com eles!
Já soubemos, por testemunho directo e presencial, que o assunto nunca foi discutido seriamente no Conselho de Ministros anterior, tudo levando a crer que o mesmo esteja a acontecer no actual. É simplesmente inimaginável! O mais sério problema não é discutido no governo, nem é agendado para Conselho de Ministros! A situação financeira, o futuro do Banco de Portugal, o endividamento, o destino a dar aos principais bancos e a nova configuração da banca portuguesa... Tudo isso é matéria que escapa ao governo. São assuntos sobre os quais os últimos governos não têm ou, antes, não querem ter posição. São temas a propósito dos quais os governos não querem ter responsabilidades. Mesmo que se diga que Portugal já não é um país soberano, este não é o comportamento que se deva esperar do governo. Mesmo que se saiba que nada se fará sem a decisão do BCE e da Comissão Europeia, esta não é uma conduta responsável do governo.
Nunca se viu um tão grande número de especialistas em finanças! Toda a gente sabe o que se passou no BES, no Novo Banco, no Montepio, no BPN, no BCP ou na CGD! Toda a gente tem uma opinião sobre o assunto. Mas há um problema: as opiniões vêm ligadas à simpatia. Os socialistas apoiam as medidas tomadas pelos socialistas e subscrevem as críticas feitas aos sociais-democratas. Os sociais-democratas, exactamente ao contrário. Os amigos de Sócrates criticam antecessores e sucessores, designadamente Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Os amigos de Passos Coelho denunciam sucessores e antecessores, nomeadamente Sócrates, Teixeira dos Santos, Costa e Centeno. Os amigos de Costa culpam os antecessores, mas distinguem entre Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, muito maus, e Sócrates, que silenciam. Simpatizantes do CDS desculpam amigos e responsabilizam adversários. Comunistas e bloquistas culpam acidamente a direita e desculpam envergonhadamente a esquerda. Todos, esquerdas e direitas, culpam o Banco de Portugal e Carlos Costa, a União, Juncker e Dijsselbloem. E não se metem com Draghi, porque é ele que nos compra a dívida. Os maus estão sempre lá fora e na oposição.
Depois há ainda outros fiéis, amigos e interessados. Amigos da Caixa, amigos do BCP, adeptos do BES, simpatizantes do Banco de Portugal, admiradores de um presidente da Caixa e seguidores do outro, de todos temos essencialmente a mesma versão, só mudando os protagonistas: os amigos têm razão, os outros não. E de muitos economistas, jornalistas, comentadores, professores e consultores de quem se esperava uma análise isenta e uma interpretação financeira e política, temos profissões de fé. As coisas não são muito diferentes das do futebol: o meu clube tem razão, os outros não. Ponto final. A análise, o comentário, o exame, a polémica e a interpretação vêm depois de garantida a culpa do outro e a bondade do meu!
As responsabilidades pela lamentável situação em que se encontra o sistema financeiro português devem ser imputadas a muita gente dos últimos cinco governos, incluindo dirigentes da administração pública e das instituições, gestores, banqueiros, funcionários públicos, magistrados, polícias e outros. Mas há certamente uns muito mais do que outros. Era tão importante atribuir responsabilidades! Era tão importante, para a democracia e as liberdades, saber quem é responsável pelo desastre inédito das instituições e das finanças portuguesas! Era tão importante castigar exemplarmente os verdadeiros culpados! Sejam eles primeiro-ministro, ministro, banqueiro ou gestor!
Mas será para sempre impossível. É o que parece. A maneira como falam as pessoas e os especialistas, como comentam os profissionais e os amadores, como se defendem e como atacam os políticos governantes e deputados, tudo isso leva a uma conclusão: nunca saberemos com o menor rigor! Nada entenderemos. E tudo pagaremos!

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