Ele
foi a Israel com a sua esposa e isso o distingue dos outros, que nunca lá foram
e nem tinham companheiras tão vistosas. Vê-se que é arrojado, que não tem
medos, mesmo enfiando a carapuça preta dos povos do Islão, com donaire e acho
que humor bem disposto, e a gente viu como ele se concentrou ao tocar em
duplicado ou mesmo triplicado com a mão, não sei se desinfectada, naquelas
pedras milenares, que foi uma emoção para nós, que nunca lá fomos, e bem que
gostaríamos de lá podermos expor as nossas lamentações com fervor íntimo, que
não sei se foi o que Trump aplicou, mas viu-se que estava recolhido, embora não
encolhido, que é pessoa erecta, em boa forma física própria de um país de gente
garbosa, vê-se nos filmes. É claro que a nossa Cova da Iria não é canto - nem recanto - para ele, senão bem que nos apeteceria
pedir-lhe para vir cá, como fez o Papa Francisco, nem que fosse para deitar a
mão a uma relíquia que trouxesse paz ao mundo, como ele fez por Jerusalém, para
pacificar Israelitas e Palestinianos, e o mais que se lhe oferecesse pacificar,
poderoso e milagreiro que é, pelo menos as intenções parecem ser estas, o que
não impediu mais um atentado, desta vez em Manchester, pois as gentes bíblicas
são tramadas no ataque terrorista, ainda que suicidário, e ele até já se
pronunciou sobre isso, bastante zangado, mas o nosso Presidente fez o mesmo,
com muito respeito e tristeza, à rainha Isabel II, dentro dos seus poderes de
mesura, que a nossa imprensa regista, e isso nos dá prestígio, apesar de Trump
não querer vir à nossa Cova, mesmo que não lhe enfiássemos nenhum barrete, como
lá no Muro.
Enfim,
José Pacheco Pereira é um pouco assustador nos reparos que faz
sobre Trump, mas depois destas cenas concentradamente sorridentes de Trump no
Muro, coisa que o Hitler nunca fez, e que a televisão captou, acho que podemos dormir mais descansados.
A caminho da autocracia
13 de Maio de 2017
José Pacheco Pereira
1. Os EUA são hoje o mais
interessante local de debate político do mundo. Esse debate é feito pela
imprensa, pelas televisões, por um vasto número de ensaios publicados em
revistas de grande qualidade e já se traduziu em alguns livros. É um debate
sobre a democracia, sobre a democracia americana, sobre a Constituição e as
leis, sobre os checks and balances, sobre a soberania do povo, sobre a
história dos EUA, sobre os media, sobre o espaço público, sobre a sociedade,
sobre as raças e o racismo, sobre os partidos políticos, sobre os sistemas
públicos de segurança social, sobre o papel do estado, sobre ecologia e as
mudanças climáticas, sobre política externa, sobre o comércio internacional,
sobre o papel dos EUA no mundo, sobre as indústrias, sobre os operários, sobre
os bilionários, sobre os impostos, sobre a liberdade religiosa, sobre emigração
e imigração, sobre quase tudo o que importa. Todos os temas são
clássicos e muito antigos, mas o debate americano é sobre a forma como esses
temas se colocam no início do século XXI.
2. A razão desse debate e a
sua vivacidade devem-se a que os EUA atravessam uma revolução, uma revolução
sem precedentes no século XX, para a qual não servem os modelos anteriores.
Muita coisa parece parcialmente um déjá vu e no entanto não
é déjá vu nenhum: é o processo pela qual uma grande democracia
é atravessada por uma revolução autocrática, feita à volta de um homem sem
qualidades, Donald Trump. Esse homem usa, mesmo inconscientemente, todos
os mecanismos modernos de manipulação de parte da opinião pública, a favor e
contra, polariza a vida política sem deixar qualquer espaço para o “meio”,
mobiliza um exército de apoiantes que se identificam com ele sem sombra de
dúvida, criou uma eficaz dualidade de “amigos-inimigos”, domou um dos grandes
partidos americanos, que, salvo raras excepções, começou por o menosprezar e
hoje tem medo dele. Trump encontrou o modo de levar o seu voluntarismo sem
limites, ao lugar de maior poder no mundo, a Presidência dos EUA.
3. Nenhuma explicação por si
só chega, nem a capacidade manipulativa, nem o despertar de uma base
social de gente que estava desprezada e sem voz, nem a retomada de muitos temas
clássicos da direita americana que já tinham encontrado expressão em Wallace,
Goldwater, Nixon e Reagan, nem o populismo que está sempre latente nas
democracias, nem o uso das técnicas agressivas no mundo dos negócios, quando se
está numa posição dominante, nem uma cultura de bullying e ostentação
da força, nem a mediocridade dos reality shows. É tudo junto. E os
laços que juntam estas coisas muito diferentes é que revelam a sua novidade.
4. Trump é um autocrata, o
que não é a mesma coisa que um ditador. Está a tentar moldar o sistema
político americano para poder exercer o seu poder sem limites e esse é o
caminho para a autocracia. A partir do seu centro de poder, a Casa Branca, e do
conjunto de colaboradores escolhidos pela fidelidade absoluta e que mimetizam
todas as características do homem que servem, acolitado por gente que parece
normal, - coisa que Trump não parece, - mas que, exactamente por
isso, é ainda mais perigosa, como o Vice-presidente Pence, governa por decretos
presidenciais, as “ordens executivas”, prescinde do Congresso e do Senado. A
temática dessas ordens presidenciais é em grande parte o programa eleitoral com
que foi eleito e isso não seria, por si só, condenável. É um programa de
direita radical, “soltando” os negócios de qualquer regulação, baixando os
impostos para as empresas, revertendo toda a legislação ambiental, autorizando
todos os grandes projectos que implicavam riscos ambientais, acentuando uma
linha dura quanto à emigração e ao crime. Pode-se discordar desse programa e
combatê-lo civicamente, mas o Presidente tem legitimidade para o aplicar.
5. A questão é que, quando alguma
coisa aparece no caminho dessas “ordens”, seja a Constituição, sejam
decisões judiciais, sejam práticas estabelecidas no Congresso e no Senado para
tentar obter maiorias bipartidárias, sejam pessoas em cargos na administração
(no FBI, na CIA, no Departamento do Ambiente e da Justiça, nos governos
estaduais, nos mayors das “cidades santuários”), seja o escrutínio na
comunicação social, ele fica furioso e investe numa mistura de insultos,
ameaças, demissões com cartas humilhantes acusando os demitidos de “traição”,
de estarem ao serviço dos “democratas”, de fazerem parte do “pântano de
Washington” ou de serem incompetentes. E depois seguem-se ameaças de mudar regras há muito
estabelecidas, de acabar com os registos de quem o visita na Casa Branca, de
acabar com os encontros com a comunicação social, substituindo-os por respostas
por escrito, colar-se à Fox News e a todas as publicações radicais de direita
que até agora não tinham estatuto de “órgãos de informação”, de favorecer a intervenção
política das igrejas mais conservadoras com isenções de impostos, de acabar com
regras bipartidárias no Congresso e no Senado, de politizar até ao extremo os
lugares da administração, fazendo purgas e colocando marionetes nos lugares
chave, empregar, com uma despudorada arrogância, a sua família na Casa Branca,
usando as suas propriedades para conduzir negócios de estado e abrindo um
precedente de não revelar os seus impostos ao mesmo tempo que vai propor
legislação que o favorece pessoalmente. Todos os dias há uma ameaça, todos os
dias há uma decisão associada a uma ameaça. E é essa exibição de motivos e de
explicações é que é autocrática, porque sem grandes subtilezas revelam um homem
disposto a tudo para impor a sua vontade, a começar pelas regras escritas e
não-escritas da democracia.
6. O retrato de Trump está
no Twitter todos os dias, o mais importante instrumento para o perceber, o que
ele quer, os seus métodos, a gabarolice sem limites, o narcisismo, a mentira
como método instrumental de desviar as atenções ou “agradar” ao seu ego e
vaidade sem peias, o contínuo uso de técnicas grosseiras de manipulação, para
forçar a agenda política, dar indicações que são seguidas pelos seus
inacreditáveis porta-vozes como Sam Spicer e Kellyane Conway, e repetidas pelos
congressistas e senadores republicanos num espectáculo de subserviência, que
mostra até que ponto têm medo dele, porque não é de concordância que estamos a
falar. Não conheço nenhum precedente de tal exibição quotidiana de tudo o que
qualquer pessoa moralmente sadia recusaria de imediato. E o facto
de um político americano, neste caso, o Presidente, o poder fazer sem
consequências de maior e com a complacência do Partido Republicano, mostra uma
enorme corrupção e deterioração no centro do poder, que depois alastra por todo
o lado como uma doença.
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