quarta-feira, 24 de maio de 2017

Mas ele esteve no Muro



Ele foi a Israel com a sua esposa e isso o distingue dos outros, que nunca lá foram e nem tinham companheiras tão vistosas. Vê-se que é arrojado, que não tem medos, mesmo enfiando a carapuça preta dos povos do Islão, com donaire e acho que humor bem disposto, e a gente viu como ele se concentrou ao tocar em duplicado ou mesmo triplicado com a mão, não sei se desinfectada, naquelas pedras milenares, que foi uma emoção para nós, que nunca lá fomos, e bem que gostaríamos de lá podermos expor as nossas lamentações com fervor íntimo, que não sei se foi o que Trump aplicou, mas viu-se que estava recolhido, embora não encolhido, que é pessoa erecta, em boa forma física própria de um país de gente garbosa, vê-se nos filmes. É claro que a nossa Cova da Iria não é canto  - nem recanto - para ele, senão bem que nos apeteceria pedir-lhe para vir cá, como fez o Papa Francisco, nem que fosse para deitar a mão a uma relíquia que trouxesse paz ao mundo, como ele fez por Jerusalém, para pacificar Israelitas e Palestinianos, e o mais que se lhe oferecesse pacificar, poderoso e milagreiro que é, pelo menos as intenções parecem ser estas, o que não impediu mais um atentado, desta vez em Manchester, pois as gentes bíblicas são tramadas no ataque terrorista, ainda que suicidário, e ele até já se pronunciou sobre isso, bastante zangado, mas o nosso Presidente fez o mesmo, com muito respeito e tristeza, à rainha Isabel II, dentro dos seus poderes de mesura, que a nossa imprensa regista, e isso nos dá prestígio, apesar de Trump não querer vir à nossa Cova, mesmo que não lhe enfiássemos nenhum barrete, como lá no Muro.
Enfim, José Pacheco Pereira é um pouco assustador nos reparos que faz sobre Trump, mas depois destas cenas concentradamente sorridentes de Trump no Muro, coisa que o Hitler nunca fez, e que a televisão captou, acho que podemos dormir mais descansados.
A caminho da autocracia
13 de Maio de 2017
José Pacheco Pereira
1. Os EUA são hoje o mais interessante local de debate político do mundo. Esse debate é feito pela imprensa, pelas televisões, por um vasto número de ensaios publicados em revistas de grande qualidade e já se traduziu em alguns livros. É um debate sobre a democracia, sobre a democracia americana, sobre a Constituição e as leis, sobre os checks and balances, sobre a soberania do povo, sobre a história dos EUA, sobre os media, sobre o espaço público, sobre a sociedade, sobre as raças e o racismo, sobre os partidos políticos, sobre os sistemas públicos de segurança social, sobre o papel do estado, sobre ecologia e as mudanças climáticas, sobre política externa, sobre o comércio internacional, sobre o papel dos EUA no mundo, sobre as indústrias, sobre os operários, sobre os bilionários, sobre os impostos, sobre a liberdade religiosa, sobre emigração e imigração, sobre quase tudo o que importa. Todos os temas são clássicos e muito antigos, mas o debate americano é sobre a forma como esses temas se colocam no início do século XXI.
2. A razão desse debate e a sua vivacidade devem-se a que os EUA atravessam uma revolução, uma revolução sem precedentes no século XX, para a qual não servem os modelos anteriores. Muita coisa parece parcialmente um déjá vu e no entanto não é déjá vu nenhum: é o processo pela qual uma grande democracia é atravessada por uma revolução autocrática, feita à volta de um homem sem qualidades, Donald Trump. Esse homem usa, mesmo inconscientemente, todos os mecanismos modernos de manipulação de parte da opinião pública, a favor e contra, polariza a vida política sem deixar qualquer espaço para o “meio”, mobiliza um exército de apoiantes que se identificam com ele sem sombra de dúvida, criou uma eficaz dualidade de “amigos-inimigos”, domou um dos grandes partidos americanos, que, salvo raras excepções, começou por o menosprezar e hoje tem medo dele. Trump encontrou o modo de levar o seu voluntarismo sem limites, ao lugar de maior poder no mundo, a Presidência dos EUA.
3. Nenhuma explicação por si só chega, nem a capacidade manipulativa, nem o despertar de uma base social de gente que estava desprezada e sem voz, nem a retomada de muitos temas clássicos da direita americana que já tinham encontrado expressão em Wallace, Goldwater, Nixon e Reagan, nem o populismo que está sempre latente nas democracias, nem o uso das técnicas agressivas no mundo dos negócios, quando se está numa posição dominante, nem uma cultura de bullying e ostentação da força, nem a mediocridade dos reality shows. É tudo junto. E os laços que juntam estas coisas muito diferentes é que revelam a sua novidade.
4. Trump é um autocrata, o que não é a mesma coisa que um ditador. Está a tentar moldar o sistema político americano para poder exercer o seu poder sem limites e esse é o caminho para a autocracia. A partir do seu centro de poder, a Casa Branca, e do conjunto de colaboradores escolhidos pela fidelidade absoluta e que mimetizam todas as características do homem que servem, acolitado por gente que parece normal, - coisa que Trump não parece, - mas que, exactamente por isso, é ainda mais perigosa, como o Vice-presidente Pence, governa por decretos presidenciais, as “ordens executivas”, prescinde do Congresso e do Senado. A temática dessas ordens presidenciais é em grande parte o programa eleitoral com que foi eleito e isso não seria, por si só, condenável. É um programa de direita radical, “soltando” os negócios de qualquer regulação, baixando os impostos para as empresas, revertendo toda a legislação ambiental, autorizando todos os grandes projectos que implicavam riscos ambientais, acentuando uma linha dura quanto à emigração e ao crime. Pode-se discordar desse programa e combatê-lo civicamente, mas o Presidente tem legitimidade para o aplicar.
5. A questão é que, quando alguma coisa aparece no caminho dessas “ordens”, seja a Constituição, sejam decisões judiciais, sejam práticas estabelecidas no Congresso e no Senado para tentar obter maiorias bipartidárias, sejam pessoas em cargos na administração (no FBI, na CIA, no Departamento do Ambiente e da Justiça, nos governos estaduais, nos mayors das “cidades santuários”), seja o escrutínio na comunicação social, ele fica furioso e investe numa mistura de insultos, ameaças, demissões com cartas humilhantes acusando os demitidos de “traição”, de estarem ao serviço dos “democratas”, de fazerem parte do “pântano de Washington” ou de serem incompetentes. E depois seguem-se ameaças de mudar regras há muito estabelecidas, de acabar com os registos de quem o visita na Casa Branca, de acabar com os encontros com a comunicação social, substituindo-os por respostas por escrito, colar-se à Fox News e a todas as publicações radicais de direita que até agora não tinham estatuto de “órgãos de informação”, de favorecer a intervenção política das igrejas mais conservadoras com isenções de impostos, de acabar com regras bipartidárias no Congresso e no Senado, de politizar até ao extremo os lugares da administração, fazendo purgas e colocando marionetes nos lugares chave, empregar, com uma despudorada arrogância, a sua família na Casa Branca, usando as suas propriedades para conduzir negócios de estado e abrindo um precedente de não revelar os seus impostos ao mesmo tempo que vai propor legislação que o favorece pessoalmente. Todos os dias há uma ameaça, todos os dias há uma decisão associada a uma ameaça. E é essa exibição de motivos e de explicações é que é autocrática, porque sem grandes subtilezas revelam um homem disposto a tudo para impor a sua vontade, a começar pelas regras escritas e não-escritas da democracia.
6. O retrato de Trump está no Twitter todos os dias, o mais importante instrumento para o perceber, o que ele quer, os seus métodos, a gabarolice sem limites, o narcisismo, a mentira como método instrumental de desviar as atenções ou “agradar” ao seu ego e vaidade sem peias, o contínuo uso de técnicas grosseiras de manipulação, para forçar a agenda política, dar indicações que são seguidas pelos seus inacreditáveis porta-vozes como Sam Spicer e Kellyane Conway, e repetidas pelos congressistas e senadores republicanos num espectáculo de subserviência, que mostra até que ponto têm medo dele, porque não é de concordância que estamos a falar. Não conheço nenhum precedente de tal exibição quotidiana de tudo o que qualquer pessoa moralmente sadia recusaria de imediato. E o facto de um político americano, neste caso, o Presidente, o poder fazer sem consequências de maior e com a complacência do Partido Republicano, mostra uma enorme corrupção e deterioração no centro do poder, que depois alastra por todo o lado como uma doença.

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