terça-feira, 23 de maio de 2017

A treze de Maio



Dois textos de racionalidade que tentam reproduzir um facto controverso, mas que não alterará um fenómeno, natural ou fabricado, que faz parte hoje do imaginário de multidões, de uma fé preservada por uma educação manipuladora dos sentimentos, que o sofrimento ou a alegria humanas requerem, como apoio espiritual, falhadas as certezas rígidas do negativismo descrente da racionalidade, de que Michel Onfray, já aqui citado, deu prova recente. Mas tudo continuará, na firmeza de uma convicção que um cântico imortalizou, para vários milhões, numa toada popular e meiga, de tradição lendária ao nosso alcance:
A treze de maio na Cova da Iria
No céu aparece a Virgem Maria
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
A três pastorinhos, cercada de luz
Visita Maria, a mãe de Jesus
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
A mãe vem pedir constante oração
Pois só de Jesus nos vem a salvação
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Da agreste azinheira a Virgem falou
E aos três a Senhora tranquilos deixou
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Então da Senhora o nome indagaram
Do céu a mãe terna bem claro escutaram
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Se o mundo quiserdes da guerra livrar
Fazei penitência de tanto pecar
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
A Virgem lhes manda o terço rezar
A fim de alcançarem da guerra o findar
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Com estes cuidados a mãe amorosa
Do céu vem os filhos salvar carinhosa
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria
Ave, ave, ave Maria

Fátima, contextos e história(s) (I)
Manuel Loff
Público, 13 de Maio de 2017
No debate sobre a natureza e o significado da "mensagem de Fátima" há quem tenha convicções (ia dizer "fé") muito claras. Para muitos outros católicos, contudo, Fátima está muito para lá da literalidade dos seus três "segredos".
"O que aconteceu em Fátima é muito simples. Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos. Foi isto que aconteceu. Vem dizer-se que foi uma invenção deles... não, não tinham como inventar uma coisa assim. (...) Viram, ouviram Nossa Senhora, ficaram com as suas palavras, viveram-nas em profundidade e foram santos." (D. José Saraiva Martins, Jornal i, 11.5.2017).
No debate sobre a natureza e o significado da "mensagem de Fátima" há quem tenha convicções (ia dizer "fé") muito claras. Para muitos outros católicos, contudo, Fátima está muito para lá da literalidade dos seus três "segredos". É provável. O que não se pode, contudo, é pretender que os documentos sobre os quais se sustenta a "mensagem" não têm valor intrinsecamente histórico e material e, por isso, não devam ser sujeitos à análise contextual. Sobretudo porque desde a narrativa dos pastorinhos em 1917, centrada na oração para conseguir o fim da guerra, até à cristalização dos três "segredos de Fátima", em 1941 e 1944, não só mediaram 24 anos como se desenvolveu um processo de apropriação eclesiástica e de reciclagem narrativa que permitiu transformar Fátima, "a mais profética das aparições modernas" segundo o cardeal Tarcisio Bertone, numa arma política de que a Igreja nunca prescindiu até, pelo menos, o fim do papado de João Paulo II.
Em maio de 1917, Portugal estava em guerra havia um ano. Desde 1914 enviara já milhares de soldados para África. Num contexto em que a pobreza extrema deixava uma grande parte dos portugueses no limiar da sobrevivência, o envio de soldados para África e a Flandres, o racionamento, agravaram a angústia social. Quando, na Cova da Iria, Lúcia de Jesus dos Santos, dez anos, juntamente com dois primos seus, diz ter visto a Virgem, não faz mais do que reproduzir o que passara a caracterizar a religiosidade católica das décadas anteriores, cheia de aparições marianas, mais frequentes desde, precisamente, 1916 (ver estudos de David Luna de Carvalho). Quatro anos depois, Lúcia, com 14 anos, é internada num colégio. Entre 1925 e 1946 vive clausurada em conventos de Pontevedra e de Tui, na Galiza, onde, entre muros, passa a Guerra de Espanha (1936-39). Os seus primos Jacinta e Francisco haviam morrido três anos antes. Ela é a única sobrevivente das "aparições". É aí que, “em ato de obediência" a "sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Bispo de Leiria e a Vossa e minha Santíssima Mãe”, Lúcia descreve em 1941 "o segredo" de Fátima, que "consta de três coisas distintas, duas das quais vou revelar."
No relato que faz das "aparições", a Virgem teria feito com que os três primos começassem por "[ver] o inferno", afinal o primeiro "segredo", na sequência do qual a Virgem lhes teria dito que, "se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz (...) mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior." Vejamos: a II Guerra Mundial começara dois anos antes, e Lúcia presume, portanto, que a Virgem dela a teria avisado em 1917. Contudo, o Papa que refere é Pio XI, que o não seria senão em 1922, cinco anos depois das "aparições", e que morreria em 1939, sete meses antes de a nova guerra mundial ser desencadeada.
O "2º segredo" seria, nas palavras da Virgem, o do surgimento de um "grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração (...). Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz" (transcrição na página online da Congregação para a Doutrina da Fé).
Referências à Rússia e ao comunismo foram introduzidas já a partir de 1935 nas “Memórias” da Irmã Lúcia. A novidade na redacção do “2º segredo” é o  facto de o bispo de Leiria lha ter pedido a 26 de Julhode 1941, ao fim de um mês da invasão nazi da União Soviética. Da mesma forma, o “3º segredo” parece produto claro da percepçãso do mundo que Lúcia tem em 1944, no momento em que o descreveu.

A domesticação de Fátima
A tese oficial da Igreja, que deveria ser mais conhecida, é esta: Nossa Senhora não apareceu na Cova da Iria, mas dentro da cabeça de Lúcia.
13 de Maio de 2017,
João Miguel Tavares
Desde que há três semanas D. Carlos Azevedo, bispo-delegado do Conselho Pontifício da Cultura no Vaticano, concedeu uma entrevista ao PÚBLICO dizendo que “Maria não vem do céu por aí abaixo” e que aquilo que aconteceu em Fátima não foram aparições mas “visões imaginativas”, abriu-se uma magnífica discussão entre prelados acerca do modo como Nossa Senhora foi vista na Cova da Iria, que já envolveu praticamente todos os padres que escrevem na imprensa diária portuguesa – Anselmo Borges no DN, Frei Bento Domingues no PÚBLICO e Gonçalo Portocarrero de Almada no Observador –, além de João César das Neves, que não é padre mas podia ser.
Acompanhar esse debate é muito interessante. Uma das coisas que mais me entristece em certos ateus empedernidos é a forma primária como olham para a fé e para a Igreja, como se os seus tiques jacobinos e mata-frades herdados da Primeira República os impedissem de apreciar não só a imensa riqueza de uma vida espiritual, mas também algo que é do domínio da evidência: a Igreja Católica é uma poderosa máquina de racionalização da fé. São Paulo foi o primeiro a dar coerência lógica a uma mensagem muitas vezes contraditória, e desde o século I que a Igreja não tem feito outra coisa se não procurar delimitar o estado selvagem da crença, tipicamente humano. Pode não se ter qualquer espécie de fé e, ainda assim, apreciar o funcionamento desse aparelho de produzir ordem e sentido que é a Igreja Católica, há quase dois mil anos.
Fátima é um excelente exemplo daquilo a que me refiro. É certo que a sua mensagem é muito pobre quando comparada com a riqueza dos Evangelhos. Frei Bento Domingues não se cansa de repetir isso mesmo. O que habitualmente se faz, para maquilhar tanta visão do Inferno e controlar as incontroláveis Memórias de Lúcia, que continuou a receber visitas de Nossa Senhora muito para além de 1917, é reduzir as aparições e os três segredos a um apelo à conversão. Mas isso já faz parte do processo de domesticação de Fátima, que a hierarquia patrocina desde a década de 20, quando o fenómeno se impôs a ela própria, Lúcia foi cuidadosamente levada para o Porto (com 14 anos), a Igreja comprou as terras circundantes, e a mensagem de Fátima começou a ser teologicamente peneirada.
D. Carlos Azevedo utiliza a expressão “trabalho de mediação” para descrever o processo de filtragem evangélica de Fátima, mas é efectivamente de domesticação que se trata: trazer a fé popular, o desespero do peregrino e a espiritualidade no seu estado mais agreste para o redil lógico e racional do cânone católico. Ao longo de 100 anos não temos assistido a outra coisa. Mesmo a cultura do sacrifício, de que tanto ainda se fala, só subsiste em versão light, com as lajes onde os peregrinos pagam as suas promessas cuidadosamente polidas e os joelhos devidamente almofadados.
Claro que a visão mais tradicionalista subsiste, como se pode verificar pelos textos de Portocarrero de Almada e César das Neves. Mas foi o próprio cardeal Ratzinger quem colocou Fátima no seu lugar: tratou-se de uma “percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível”. João César das Neves (DN, “A Senhora veio mesmo”) apressou-se a explicar que uma “visão imaginativa” não é o mesmo que uma “visão imaginária”. Certo. Mas a tese oficial da Igreja, que deveria ser mais conhecida, é esta: Nossa Senhora não apareceu na Cova da Iria, mas dentro da cabeça de Lúcia.

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