Texto
impecável, que faz sorrir pela ironia sem tréguas, que faz comover pela
sinceridade “póstuma” do sentimento, que faz recrear-nos no prazer de uma
escrita assente na elegância do discurso, na agudeza da observação frontal, na
forma despojada de uma confissão intimista, no tom de elegia bem sentida mas de
expressão contida, que a definem como mulher tão expressivamente íntegra, tão
elegantemente e modestamente e harmoniosamente brilhante…
Ah!
E a sua referência à irmã, Maria José de Nogueira Pinto, como ser que ela amou
como o “ar que respirava”, que eu tanto admirei, também, ou a Amália, tudo o
que foi nosso um dia e se perdeu, no velho absurdo do efémero…
Quanto
aos vivos… É como diz, Maria João Avillez, como já Reinaldo Ferreira definira,
noutro sentido, é certo: Os heróis… servem-se mortos.
Os mortos e os vivos
OBSERVADOR,
25/5/17
Adivinho
a comiseração e o riso alarve de que serei alvo por rematar este texto com a
história de um Pai Nosso rezado no final de uma cerimónia não religiosa.
1. Acaso ou coincidência, hoje
deu-me para aqui. Em Portugal gosta-se mais de mortos que de vivos. São sempre
melhores quando morrem. É qualquer coisa de bizarro. Teimo em achá-la um
exclusivo nosso, não sei se será. O que sei é que a excelência, o génio, o
exemplo, o serviço, a coragem, a santidade, deixadas como assinatura nesta
pobre pátria são por uso e costume pouquíssimo apreciadas. Isto, para resumir
benevolamente a ferocidade da inveja ou a arrogância do desprezo com que os
melhores dos vivos são olhados – ou combatidos – enquanto vivem. Mas só na sua
condição terrena. Mal se despedem eis que, por um misterioso processo mental,
se soltam velozes os sinos do pesar, trazendo consigo lacrimosos louvores nunca
antes ousados. Morrer compensa.
O
país, por um breve entre parêntesis é como se ficasse de serviço ao
acontecimento, pedem-se obituários e comentários aos habituais porta vozes de
tudo, o ar impregna-se de uma aura de beatitude.
As
vezes, há segunda sessão. Num impulso onde portuguesmente se diluem a saudade e
o remorso, a culpa e o arrependimento, organizam-se efemérides, convidam-se
oradores e plateias para tardias homenagens de glória e reconhecimento (porém
raramente proferidos em tempo útil).
Já
assisti, diante de urnas abertas ou fechadas ou depois em sedes diversas, a
loas capazes de ressuscitar o próprio morto. Singular condição estranho
mecanismo que nos tolhe a consideração e nos veta o reconhecimento em vida e
voz alta. Mesmo que haja excepções e obviamente que há, prefere-se o elogio
fúnebre que pretensamente nos redimirá de pecados passados e invejas
mortíferas, mas será que um morto tem ouvidos? Que o exercício convence e
comove?
“Antes
assim”, dir-me-ão. “Mais vale tarde que nunca” e outros adágios.
Não,
digo eu. Um elogio — o reconhecimento, melhor dizendo – requer
sustentabilidade. Como o desenvolvimento. Reclama verosimilhança, raiz,
fundamento. Não pode ser fruto da 25ª hora, irrompendo publicamente de bocas e
mentes até aí avaras a ele.
2. Ocorreram-me estes tristes
considerandos porque há dias, testemunhei uma homenagem a alguém vivo. Um homem
real, de carne e osso e não já um “santinho” impresso em papel esfumado.
Foi
uma raridade ver Roberto Carneiro, sentado como qualquer um de nós na
plateia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica a ouvir
falarem-lhe de si.
Mas
foi a tal coisa: o elogio era sustentado, tinha chão de baixo dos pés. E
justamente porque ele estava ali, os louvores biográficos tiveram o tom certo e
a medida justa. Dispensaram-se efabulações, bastou a realidade que era sólida e
foi grata de recordar. E depois houve Marcelo — e quem havia de ser? — a
rematar. Como de vez em quando está a sério nas coisas, esqueceu por momentos
selfies e povo – seus grandes cúmplices e amparos políticos – e ocupou-se de
alguns passos da vasta e vária biografia de Roberto Carneiro.
Atardou-se
no ministro da Educação que ele foi entre 1987 e 1991. Fez bem. O que lá vai
interessa pouco e se não tiver tido o beneplácito da esquerda — partidos e
sindicatos — é para negar e apagar de vez. Como se nada tivesse sido feito.
Sucede que o trabalho de casa de Marcelo era sólido. Será difícil desmenti-lo.
E depois o Presidente da República foi simplesmente ter com um dos seus temas –
Deus – para nos relembrar como o Roberto Carneiro “público” — o homem das
ciências da Educação, o percursor, o académico, o investigador, o estudioso —
fora sempre precedido pelo homem de fé, agindo e “sendo” inspirado por ela e
através dela.
No
final Roberto Carneiro, ladeado pela sua família, ao despedir-se de nós no
palco, pediu num sussurro já um pouco fatigado “se rezávamos um Pai Nosso com
ele, em voz alta”. Assim se fez.
Não
me custa adivinhar a comiseração ou o riso alarve de que serei alvo por rematar
este texto com a história de uma oração celebrada com seriedade no final de uma
cerimónia. Julgo porém que é justamente por causa de gente assim e da exemplar
exposição de uma forma de ser contra o ar do tempo e do vento, que o mundo
ainda não caiu.
3. Nisto de estar entre os vivos
a louvar os mortos, o maior peso que sinto quando lá estou – e estou por
considerar que nesse momento é onde devo estar — é se lhes terei dito, a todo
esse cada vez maior leque aberto de amigos de quem já me despedi, como os
apreciava. Gosto de gostar e depois dizer que gostei mas terei sido
suficientemente persuasiva?
Terei
dito ao Vítor Cunha Rego quando o visitava no andar penumbroso onde vivia, a
gratidão pelo mestre paciente que foi para mim (e nada terei aprendido) ?
Manifestei ao Francisco Sousa Tavares — que tão incrivelmente generoso foi
comigo numa altura delicada da minha vida — o quanto apreciei o lado impetuoso
da sua coragem? Ao João Benard confessei como foi bom estar viva ao mesmo tempo
que ele ? Ao João Lobo Antunes, com quem na RTP, aos 17 anos, comecei esta vida
do jornalismo, terei dito como me rendia diante daquela espécie de sobrenatural
dom com que ele tocava qualquer e dos seus exercícios — científico, académico,
cultural, cívico? Agradeci ao Raul Solnado as mais radiosas e permanentes
provas de carinho e atenção? Contei à Amália, diva entre as divas, que podia
morrer a ouvi-la? Disse muitas vezes ao Vasco Graça Moura que ele fora
abençoado pelo génio? Ao José Medeiros Ferreira como me deliciava a subtileza e
a cortante ironia que ele usava para argumentar politicamente? A Soares
proclamei suficientemente o que lhe fiquei a dever, discordando dele mais que
concordando? Fui credível na forma como amei alguns dos que partiram, o tão
saudoso Miguel Veiga, o ser delicado que era o Alberto Vaz da Silva, a fogosa
Helena, o acutilante Leonardo Ferraz de Carvalho, o meu colega Mário
Bettencourt Resendes, o doce Bernardino, amigos e companheiros de várias
encarnações mesmo que só numa vida? Disse infinitas vezes à minha irmã Maria
José que ela era parte do ar que eu respirava?
Não
disse. Fiquei sempre aquém. Se voltassem, dir-lhes-ia. Sabendo que nunca se diz
tudo. Talvez porque nunca se espere, de tão inverosímil que é, que um dia as
pessoas morram. Como os ”outros”, que não são os nossos.
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