segunda-feira, 22 de maio de 2017

Insegurança, em suma. Malandrice também



Era para meditarmos, mas preferimos não ler. Daí que não importa que ele nos zurza em cima, com uma contundência que era suposto resultar mais positivamente sobre nós e os encarregados do nosso governo, pois há já muito que ele não nos poupa na puerilidade das respectivas actuações, mas é como se estivéssemos resguardados num guarda-chuva ou uma capa bem impermeabilizados e isso nos escorregasse para a lama do chão sem qualquer salpico, ou até mesmo protegidos por pára-raios à prova de quaisquer descargas. Não, Vasco Pulido Valente, tão seguro no que diz, é olimpicamente ignorado por quem há muito demonstra a sua imunidade contra advertências justas como as que ele ou Alberto Gonçalves fazem, que nos não poupam, sábios que são, e com vergonha na cara. Reponho o discurso de Vasco Pulido Valente, não a respeito de nós, que somos bem assim como ele e outros nos definem, mas a respeito dos encarregados de nos dirigir, que deviam dar outro exemplo de rigor e ponderação menos subservientes: «O populismo da classe dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção. Agora sabemos quem nos governa.»
Mas sabemos que o povo é quem mais ordena, e daí a descida ao povo - nos festivais, nos entusiasmos futebolísticos, no arrastar-se pela fé - o povo sabe, o povo é que manda. E elege. E educa o governo.
Por isso relembro a Écloga Basto, e os conselhos de Bieito ao Gil, que andava pelas serras afastado dos seus congéneres, num isolamento que o não levava a lado nenhum:

Pois contigo a razão val,
vejamos quem mais conjunta;
olha que todo o animal
forte, ou fraco, aos seus se ajunta
por distinto natural.
As pombas andam em bandas,
voam grous postos em az;
estas andorinhas brandas
não querem de nós viandas,
querem companhia e paz.
 ……..
Come de toda a vianda,
não andes nestes entejos;
não sejas tam vindo à banda,
tem-te às voltas co's desejos:
anda por onde o carro anda.
Vês como os mundos são feitos:
somos muitos, tu só és;
por isso, em todos seus geitos,
um esquerdo antre direitos
parece que anda ao revés.

Dia de maio choveu:
a quantos a água alcançou
o miolo revolveu;
houve um só que se salvou,
que ao coberto se acolheu.
Dera vista às semeadas,
as que tinha mais vezinhas;
viu armar as trovoadas,
acolhe-se às bem vedadas
das suas baixas casinhas.

Ao outro dia um lhe dava
paparotes no nariz,
vinha outro que o escornava;
aí também era o juiz,
que se de riso finava.
Bradava ele: - Homens, estai!
iam-lhe co dedo ao olho.
Disse então: - E assi che vai?
Não creo logo em meu pai,
se me desta água não molho.

Apaixonado qual vinha,
achou num charco que farte;
o conselho havido o tinha:
molhou-se de toda a parte,
tomou-a como mèzinha.
Quantos viram lá correram:
um que salta, outro que trota,
quantas graças i fizeram!
Logo todos se entenderam:
ei-los vão numa chacota.         
(Sá de Miranda)

E nós cá vamos, na chacota. Ou, como se diria nos meus tempos salazarentos, de governantes mais sabedores do seu ofício, impondo regras ao povo e não sujeitando-se às toscas regras deste, “lá vamos, cantando e rindo”. Mas comedidamente, sem ultrapassar a fila, cada macaco no seu galho. Voltámos aos tempos de Sá de Miranda, não porque este fosse democrata, mas porque era conhecedor do provérbio “Maria vai com as outras”, embora apenas aplicado ao povo, “o rei de muitos reis”, D. João III, sempre chefiando, como lhe competia, à semelhança do que se passa no reino animal.
A parolice não poupa ninguém, efectivamente, em amálgama ridícula e desprestigiante. Mas as advertências não penetram. Por excesso de impermeabilidade nossa. Ou por falta de leitura destes textos consagrados dos que nos vão advertindo. Ou por parolice governativa, avisada e previdente.

O Diário de Vasco Pulido Valente
Eles e Nós
… hopes expire of a low dishonest decade… (W. H. Auden)
Quando, no sábado passado, Salvador Sobral ganhou o Festival da Eurovisão, toda a gente começou a dizer que “nós tínhamos ganho”, que “nós éramos os melhores” e mesmo “os melhores dos melhores”. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro escaparam a esta absurda identificação. Pior ainda: indivíduos sem a mais leve autoridade na matéria não se coibiram de explicar publicamente a natureza e qualidades da música de Luísa Sobral que acharam “simples” (não é), “diferente” (de quê?) e com tanto “sentimento” que ia “directa ao coração” (um comentário idiota e nulo). Ora, como se sabe, “nós” como entidade colectiva não contribuímos coisíssima nenhuma para o sucesso de Salvador Sobral e da irmã, e nada nos permite usar esse sucesso como pretexto para uma nova sessão de gabarolice nacionalista, que só a consciência da nossa mediocridade e da nossa miséria justifica e provoca.
Os portugueses precisam de sinais de uma importância e de uma grandeza que a realidade lhes nega. E porque sofrem dia a dia com a realidade qualquer pequena distinção lhes serve para se evadirem dela: a selecção de futebol ganha o campeonato da Europa (nós somos formidáveis); Guterres, que falhou tristemente aqui, é eleito Secretário-Geral da ONU (nós somos superiores); Salvador e Luísa Sobral ficam em primeiro lugar no Festival da Canção (nós somos logicamente incomparáveis). Isto mata. Não quero dizer que não se deva retirar um certo orgulho e um certo consolo de proezas como a de Kiev. O que digo é que o patriotismo português não se manifesta senão por transferência para um ocasional herói ou grupo de heróis. Não se manifesta porque não pode pela satisfação com o sistema de justiça, ou com a estabilidade das finanças do Estado, ou com o crescimento da economia, ou com o exemplar ordenamento das cidades. Sem diminuir o mérito dos nossos heróis, que é deles e não nosso, era bom começar por pedir que nos déssemos a nós próprios o que nos falta e o que merecemos. A expressão “Portugal está na moda”, que o cavaquismo inventou, é um símbolo do nosso fracasso; a glória reflectida nunca ajudou ninguém.
*
Só sexta-feira à noite percebi o que se estava a passar. O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da República e a própria Assembleia enlouqueceram com Salvador Sobral. Não há a menor dúvida. E, para quem ainda duvide, basta ligar a televisão. Não me lembro de ver um espectáculo remotamente parecido (a Câmara dos Comuns, por exemplo, a aplaudir de pé Gardiner, Simon Rattle ou os Beatles). O populismo da classe dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção. Agora sabemos quem nos governa.

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