Lê-se na mesma, não há volta a dar-lhe, o povo
é quem mais ordena dentro da cidade e os fautores do Acordo são pela
democracia, está visto, que, pelo menos, é palavra que está a dar no nosso
regabofe comezinho. O Primeiro Ministro disse um dia, (pelo menos que eu tivesse
ouvido), que lhe era indiferente o Acordo, já passara por outro, tinha, pois,
autoridade em matéria de adaptação a acordos, e aplica-o muito bem com os
companheiros do seu próprio acordo. Somos macios a acordar e escorregadios a
reflectir, esperemos, ao menos, que lhe não passe pela cabeça, ao nosso
Primeiro, instituir uma ditadura do Acordo, do tipo jogo de “baleia azul”, para
nos obrigar a todos a obedecer às normas do Acordo. Sempre poderemos sentir-nos
livres no desacordo, até um dia, até que a voz nos doa, sem entrarmos nesse
jogo de suicídio colectivo pela bacoquice, e podermos ir lendo estes textos
brilhantes de quem se preocupa e investiga, como é o caso de Nuno Pacheco, no
texto que segue:
Dois tempos desortografados
Regredimos,
em pleno século XXI português, aos tempos em que a instabilidade ortográfica
era vulgar
30 de Março de
2017
Nuno Pacheco
Já aqui
se falou disto várias vezes, mas como a praga não passa nem sequer se atenua,
convém falar outra vez. Peguemos numa revista, entre muitas. Numa página, em
título destacado, lemos a palavra “atualidades”, num texto “atuais”, lendo-se
noutras páginas e em diferentes textos, “actual” e “actuais”. Lê-se também, num
apontamento literário, a palavra “correta”, isto apesar de noutras páginas da
revista, e em textos distintos, surgirem as palavras “correcta” e
“correctamente”. Que revista pensam que é? A Atualdo Expresso? Podia ser.
Essa ou qualquer outra dos nossos dias. Mas é a Revista Portugueza ABC de
6 de Junho de 1929, vendida por uns módicos 1$50 e, claro, visada pela
Comissão de Censura. Nela havia ainda palavras como “auctores”, “azes de
cinêma”, “hespanhol”, “anciosa”, “scêna”, “sciência” e uma secção dedicada a
“todos os sports” (onde se falava, claro, de “football”). Tinham passado
dezoito anos sobre a reforma ortográfica de 1911 e faltavam outros tantos para
a de 1945. A instabilidade ortográfica era vulgar nessa altura, não só
na ABC, mas noutras revistas da mesma época. Pois em pleno século
XXI português regredimos a esses tempos. Uns dirão que isso se deve à
não-aplicação integral do acordo ortográfico de 1990; outros, que é
precisamente a tentativa de aplicá-lo, na irrazoabilidade das suas regras, que
gera o caos. E estes últimos têm comprovada razão. Basta ver o que se passa
com o Diário da República, que devia ser modelar nesse zelo
aplicativo, para levar as mãos à cabeça em desalento absoluto. De resto, um
passeio por lugares públicos é também instrutivo a este respeito. As
legendas de obras expostas em museus são uma delícia de ortografias mistas.
Na exposição de Amadeo de Souza-Cardoso que esteve no Museu do Chiado,
em duas paredes vizinhas e logo nos títulos de textos ali estampados,
falava-se, à esquerda, da “recepção” que Amadeo tivera em Lisboa e, à
direita, na “receção” que teve, à época, no Porto. Um primor. No CCB,
também em cartazes enormes, lê-se que ali pode ser vista a “colecção
Berardo” e, mais adiante, a “coleção Berardo”. Outro primor.
Pior,
muito pior, é a sanha implacável dos que não olham a meios para aplicar o
dito “acordo” a tudo o que mexa. Exemplo: um livro como Cartas e
Intervenções Políticas no Exílio, de Mário Soares (edição Temas & Debates,
Círculo de Leitores) está inexplicavelmente “traduzido” para acordês,
isto quando qualquer carta deveria manter ao ser editada a ortografia com que
foi escrita. Outro exemplo: na mais recente crónica de Ana Cristina Leonardo
na revista do Expresso (a da edição de 25 de Março) ela cita António
Guerreiro a propósito de Rentes de Carvalho. A frase citada (de um artigo
que ele escreveu no Ípsilon em 6 de Maio de 2016) refere, a dada altura, “a
tendência conservadora, regressiva e inócua de grande parte da actual ficção
narrativa”. Isto foi o que ele escreveu. Na transcrição aparece “atual”
em vez de “actual”. Ora sabendo que a autora, tal como o citado, não são
partidários do chamado AO90, a emenda é da responsabilidade do próprio Expresso.
Desrespeito absoluto. Que é norma instituída. Há editoras que forçam os
autores, até os vencerem pelo cansaço, a aceitarem uma ortografia que não usam
e rejeitam. E há quem fique com livros por publicar por causa disso. Até
ilustres membros da Academia das Ciências de Lisboa!
Contra
este estado de coisas, já muito se tem feito. Mas não chega, como é bom
repetir. Entre as acções anti-acordo, está em curso uma deveras curiosa: conseguir
estampá-lo em papel higiénico. Em rigor não é escatologia. Há papel
higiénico estampado com quase tudo, desde coisas simpáticas até coisas
repugnantes: rosas, pinguins, flamingos, sapos, pais natais, noivos
sorridentes, hello kittys, jacarés, arame farpado, palavras cruzadas, grelhas
de sudoku, notas de dólar e de euro, caras de políticos (Che, Fidel, Estaline,
Putin, etc) ou presidentes norte-americanos como George W. Bush, Barack Obama e
até já Donald Trump. A que visa o AO90 chama-se Operação Folha Dupla e
está em curso. Haverá para a ortografia uma “saída airosa, para bem de
todos”, como em 2106 profetizou Artur Anselmo, presidente da Academia das
Ciências de Lisboa? Pois se não for airosa, ao menos que seja higiénica.
Útil para muitos, talvez alguns até a emoldurem.
Haja
paciência.
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