A opinião de dois jovens jornalistas, com a sabedoria própria
sobre o mundo que nos cerca e a experiência de quem vai assistindo aos
contínuos solavancos de sucessivas promessas governamentais, geralmente
redundando, à la longue, em fracasso ou desilusão. Porque as políticas
não dependem só dos governantes, dependem também, naturalmente, do povo que por
eles é governado, mais ou menos manipulado pelos seus mentores partidários, em
exigências por vezes utópicas, e dependendo igualmente dos mentores primeiros,
os líderes de uma União democrática e aparentemente generosa, que detêm o poder
económico e a orientação da sua distribuição, com os jogos políticos da sua
conveniência ou da sua empatia.
Como João Miguel Tavares, eu também admirei
Emmanuel Macron, na clareza de uma lição bem estudada e na frontalidade
corajosa contra as perfídias de ataque de uma opositora atrevida e pouco
fundamentada, na sua mensagem arrebatadora, caprichosa e repetitiva, que a insensatez
das promessas pareceu dominar, indiferente às consequências destruidoras de uma
coesão que se pretende, numa Europa que apostou na sua unidade, causadora de
distúrbios, é certo, mas também facilitadora de uma abertura que a moeda única
promoveu. Como Alexandre Homem-Cristo, também Emmanuel Macron me pareceu
sério e realista, sem triunfalismos inúteis nem falsas promessas, mas desejoso
de cumprir um programa de rigor e perseguição natural contra a praga do
terrorismo, mas impregnado de critérios de ponderação que pareceram faltar a Le
Pen.
Talvez não o consiga, os factores de oposição são aleatórios,
dependendo de valores diversos, e até da imagem que os media irão fabricando,
com maior ou menor avidez, encarniçados sobre pormenores de indiscrição pessoal,
banais mas orientados para a coscuvilhice alheia, como fonte de receita quantas
vezes indispensável para sua sobrevivência.
O pessimismo irritante
Amanhã à noite, quando Macron vencer, faça um favor a
si próprio — anime-se. E não se sinta ridículo por causa disso.
João Miguel Tavares
Público, 6 de Maio de 2017
Muito
poucos dos que em Portugal assistiram ao longo debate entre Emmanuel Macron e
Marine Le Pen se atreveram a dizer o óbvio: Macron esteve óptimo e Le Pen
foi um desastre. Um desastre tão grande que afundou quaisquer hipóteses de
poder surpreender nas eleições de amanhã. Le Pen mostrou-se absolutamente
impreparada em matérias económicas, pateticamente nacionalista em matérias de
emigração e ridiculamente demagoga em todas as matérias. Macron, pelo
contrário, esteve impecável. Sólido na economia, humanista na emigração,
agressivo a desmascarar a demagogia da sua adversária e realista do princípio
ao fim. Cereja em cima do bolo: ele apareceu simultaneamente
presidenciável e professoral em relação a Le Pen, expondo diante de todos os
franceses a ideologia xenófoba, populista, proteccionista, iliberal e indigna
dos melhores valores de França que a líder da Frente Nacional quer levar para o
Eliseu.
Tudo
isto me pareceu tão óbvio que fiquei desconcertado com as reacções tépidas que
li nos jornais acerca do debate. Já aqui abordei o tema tangencialmente há 15
dias, mas vale a pena regressar a ele: como se já não nos bastasse a adesão de
tanta gente a ideologias extremistas por essa Europa fora, as elites
supostamente lúcidas e moderadas parecem viver sufocadas sob uma atmosfera de
medo, que não lhes permite reconhecer as boas notícias mesmo quando elas
esbarram com a sua cara, e as impede sequer de esboçar um sorriso mesmo quando
um político decente esmaga uma política indecente.
Esta
incapacidade de reconhecer as vitórias é um imenso trunfo para os derrotados.
Assim se instala um clima de pessimismo militante e irritante, que será
parcialmente explicado pelo factor Trump — o impensável aconteceu nos Estados
Unidos, logo, as dez pragas do Egipto vão obrigatoriamente espalhar-se por toda
a Terra —, mas também advém de uma inexplicável falta de energia para lutar por
aquilo que temos de mais precioso. Aqui será já o factor Fukuyama a funcionar —
as elites ocidentais convenceram-se de que a História tinha mesmo acabado,
condenando-nos a viver numa pachorrenta calmaria política até ao fim dos tempos,
e agora que os ventos da História começaram novamente a soprar, e que tudo se
pôs outra vez em movimento, a elite é surpreendida com o balanço do mundo.
Pior: está sempre com cara de quem se esqueceu de comprar os comprimidos para o
enjoo.
Ora,
a democracia é pela sua própria natureza conflitual, e não percebo que nos
falte estamina para lutar de queixo levantado pelos valores que nos são mais
caros. Até porque a maior parte das pessoas — seja em França, seja nos EUA —
continua a estar do lado certo. Não há dúvida de que os partidos estão em
crise, mas o que Emmanuel Macron está a provar em França é que a renovação
política pode nascer a partir do centro. Isso não é coisa de somenos. Amanhã à
noite, quando ele vencer, faça um favor a si próprio — anime-se. E não se sinta
ridículo por causa disso.
Melhor do que Hollande
OBSERVADOR,
8/5/2017
A
França escolheu um liberal que evitou o triunfalismo eleitoral e fugiu ao
irrealismo dos que acreditam que basta boa-vontade para mudar a UE. É uma
amostra, mas chega para ser melhor do que Hollande.
Uma
das características mais particulares da cultura e da política francesas é a
ilusão de grandeza. Na cabeça das elites francesas, o seu país ainda comanda os
destinos da Europa e do mundo enquanto potência económica, militar, política,
linguística e cultural – como quem faz de conta que os últimos 70 anos não
aconteceram. Daí que, nas noites eleitorais, cada presidente-eleito seja
elevado nas análises a salvador da França e da Europa. Não é exagero, é rotina.
Hollande,
na noite de 6 de Maio de 2012 em que foi eleito presidente, discursou e, nesse
sentido, fixou os limites do seu mandato: não haveria limites. A sua eleição
mudaria tudo. Aquela era “uma grande data para a França, um novo início para a
Europa e uma nova esperança para o mundo”. As políticas de austeridade
deixariam de ser inevitáveis e a sua missão enquanto presidente da França seria
“atribuir à construção europeia uma dimensão de crescimento, prosperidade e de
futuro”, missão acerca da qual “imediatamente informaria os seus colegas
europeus, a começar pela Alemanha”. Isto porque a França “não é um país
qualquer no planeta, nem uma nação qualquer no mundo” e tem a incumbência de
“semear os valores republicanos pelo globo”. Cinco anos depois, a
euforia esvaziou-se e a realidade não poderia ser mais diferente. Também por
isso, o desastre que foi o mandato de François Hollande começou nessa noite: o
seu irrealismo nunca alteraria a realidade.
Ora,
Macron quebrou a rotina e evitou triunfalismos. Na sua
primeira mensagem pós-eleitoral, foi apaziguador, realista, grave, sóbrio e
focado nos desafios de um país dividido – e que o escolheu porque não queria
Marine Le Pen no Palácio do Eliseu. Ele percebeu o que está em causa.
Grande parte do país desconfia do seu liberalismo e Macron precisará de todos
para montar o seu projecto político, desde logo nas eleições legislativas de
Junho, que determinarão as condições de governabilidade no país. Não há motivo
para euforias. E esse realismo foi um primeiro bom sinal.
Mas
no país do rococó, a sobriedade não passa bem. Na televisão francesa (France
24), os comentadores criticaram-lhe a falta de vigor e o “tom aborrecido” com
que se dirigiu ao país. Não é isso que os franceses esperavam, disse-se,
enquanto se discutia se Macron seria o Barack Obama europeu, pois tudo nele é
“histórico”. Os mesmos comentadores que, há cinco anos, fizeram juízo
semelhante acerca de Hollande e se renderam à “Hollandemania” – não aprenderam
nada. Fica o aviso. Sim, Macron terá pela frente imensos obstáculos políticos.
Ele é um homem sozinho, carece de apoios políticos estáveis para implementar
reformas e tem o seu estatuto ferido pelo voto útil contra Le Pen e pela maior
abstenção desde 1969. Mas nenhum desafio será maior do que aquele que passa por
convencer um país constantemente maravilhado consigo próprio de que precisa de
mudar se se quiser manter relevante na cena europeia e internacional.
Os
pontos de interrogação são muitos. Terão as reformas de Macron adesão popular?
Conseguirá ele os apoios políticos de que necessita para as implementar? Como
evoluirá o sistema partidário francês e que impacto terá essa evolução nos
equilíbrios políticos? Haverá tempo, nos próximos meses, para abordar cada um
deles. Hoje, há que manter os olhos no essencial: a França escolheu um
liberal que, na sua primeira hora de presidente-eleito, evitou o tradicional
triunfalismo eleitoral e fugiu ao irrealismo dos que acreditam que basta
boa-vontade para mudar a Europa. É uma pequena amostra, mas chega para ser
melhor do que Hollande – socialista e irrealista. E, isso sim, dá alguma
esperança.
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