terça-feira, 30 de maio de 2017

Mas para nós tudo flui no melhor dos mundos



Paulo Rangel está, naturalmente, assustado com um estado de conflitualidade interna em que as actuais e as antigas potências se envolveram - nomeadamente os EU e o RU, por desejarem livrar-se das trapalhadas criadas pela boa vontade democrática - e sobretudo cristã (não esqueçamos os braços abertos do nosso Cristo de universalidade e solidariedade abrangentes, figura tão profundamente oposta à da interiorização “umbiguista”, embora toda espiritual, da meditação de Buda) - com que os povos da União Europeia desejaram um dia tornar a Europa um continente fortalecido pela abertura “ao outro” e entreajuda económica - de compromissos, é certo, a respeitar, sobretudo pelo “outro”, aquele que foi grandemente favorecido e julgou aboletar-se para sempre numa situação de privilégio, esquecido dos seus compromissos.
Essa conflitualidade, proveniente, sobretudo, do estado de saturação dos povos mais sacrificados, como são esses maiores, que deram mais guarida e auxílio, e que arrasta outros na mesma linha de comportamento, pretendendo libertarem-se, nos seus nacionalismos mais ferrenhos e pacíficos, merece o repúdio de Paulo Rangel, como, aliás, de todos nós que nos habituámos a viver melhor - embora com grandes incertezas no futuro dos nossos.
Para colorir essa “tragédia política do Ocidente” pela deserção dos grandes, que tanto afecta os pequenos como nós, que canalizamos as nossas opções vivenciais no sentido dos prazeres mais fisiológicos do que de espiritualidade, transcrevo dois artigos do mesmo Público, de João Miguel Tavares, aparentemente satisfeito com as coisas por cá, que ganhámos um festival e um campeonato interno - nesta altura já dois, pelo mesmo clube - brilharete em duplicado, que o nosso presidente não deixará de registar e, além do Papa que já deixou de ser notícia, temos a saída do ranking desprestigiante, pese embora o aumento da dívida, ao que se diz.
Sejamos, pois, optimistas, cultivando a nossa horta para as sopas, embora nos entreguemos, de preferência, à boa febra.

O “umbiguismo” como tragédia política do Ocidente
A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente.
Público, 23 de Maio de 2017
Paulo Rangel
1. A vida tem as suas ironias. O voto em Trump foi um voto nacionalista. O voto pelo "Brexit" foi outro voto nacionalista. Supostamente esta opção nacionalista, muito actual e em linha com um retorno à pureza alquímica do Estado-nação, serviria para engrandecer os Estados respectivos e os feitos dos seus povos. E daí que as campanhas eleitorais tivessem feito ecoar os magnos desígnios de fazer a América grande outra vez e de restaurar a influência de um Reino Unido pós-imperial (pela voz de alguns, mesmo “retro-imperial”). A eterna busca da idade do ouro, dos tempos de uma soberania mitificada, guiou e guindou esta vaga de nacionalismo “anti-globalização”. É evidente que este regresso à nação e à alegada soberania perdida tem um escopo e esse escopo é relançar a grandeza de tais nações. Grandeza essa que não se traduz apenas no incremento do bem-estar e da qualidade de vida dos povos respectivos, mas que se consubstancia essencialmente na projecção do seu poder, da sua influência e do seu prestígio à escala internacional, à escala global. Regressar à nação e ao seu fechamento para a tornar maior, para a fazer mais forte, para a alcandorar ao estatuto de suma potência. Não se trata só de governar para dentro; trata-se de converter o estado, a nação e o povo em objecto de admiração, de respeito e até de temor de todos os restantes. Isso sim, é fazer da América a maior e é fazer dos britânicos os cobiçados lordes e senhores de outrora. Mas, convém não esquecer nem menosprezar, a vida tem as suas ironias.
2. Desde que o "Brexit" começou a fazer o seu curso, lento e difícil, com enorme resistência e relutância da fabulosa máquina diplomática britânica, que o Reino Unido mergulhou numa agenda puramente interna. Basta olhar para a campanha eleitoral para ver que programas e promessas se haurem e esvaem no "Brexit". A vida política britânica está reduzida à negociação do divórcio com a União Europeia, sem tempo, sem disponibilidade e sem cabeça para mais nada. Quanto vai ter de pagar ou quanto vai recusar pagar? Fica com acesso ou sem acesso ao mercado único? Como vai organizar a circulação de migrantes? Vai diferenciar entre europeus e não europeus? Que estatuto vai dar aos cidadãos da União Europeia que já ali viviam e aos britânicos que vivem na União? Pelo meio das propostas folclóricas de James Corbyn, só há debate e pensamento para as questões sérias do divórcio. Não há nenhum projecto de futuro, não se vislumbra nenhuma visão, não se acende nenhuma ideia do que será o dia seguinte. Todas as energias se consomem nas negociações da saída, no cálculo das incertezas, no inventário dos instrumentos de pressão, no deve e haver dos trunfos e fraquezas. O Reino Unido reclina-se sobre o seu umbigo, torce-se e contorce-se em volta dele. Não há maneira de este nacionalismo e de esta pretensa recuperação de soberania fazer da Velha Albion uma nação mais forte, mais influente, mais determinante no panorama internacional ou global.
O risco desta obsessão britânica é de arrastar consigo toda a União Europeia para um “umbiguismo” paralelo. Em vez de cuidar do futuro e de tratar das feridas da zona euro, das brechas do espaço de liberdade, justiça e segurança e das perspectivas de uma verdadeira união de defesa, fica prisioneira de um alucinante e estafante processo de divórcio. É essa a tentação que tem de evitar. A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente, enquanto se vai negociando os termos do divórcio, que se quer amigável.
3. Donald Trump quer fazer a América grande ou, mais exactamente, a maior! Mas está irremediavelmente perdido no labirinto da sua errância. Toda a sua atenção e, já agora, da classe política norte-americana está absorvida pelos escândalos de Trump, pelas suas declarações contraditórias, pela sua tentativa de obstruir a justiça, pelas nomeações polémicas, pelas esquisitas ligações à Rússia, pela omnipresença da família. A administração americana está completamente consumida pela agenda das trapalhadas de Trump. A deriva nacionalista deu nisto: não se pensa na nação nem na sua projecção, fica-se mesmo pela sobrevivência política de um indivíduo e pelas desventuras da sua família e dos seus amigos. De tanto se querer fazer a América grande ou até enorme, acaba-se a olhar para o umbigo e a tratar de assuntos de nível comezinho e rasteiro. A Rússia agradece e bate palmas. A China até já parece uma campeã do comércio livre e justo, uma aspirante a defensora dos direitos humanos e uma empreendedora de projectos de verdadeiro impacto global (como a redescoberta da rota ferroviária da seda). Os Estados Unidos, com o seu programa nacionalista, desembocaram no mais pobre e descoroçoado “umbiguismo”. Trump e a sua administração não têm tempo nem disponibilidade para se ocuparem dos grandes desafios políticos e estratégicos; na verdade, e usando uma linguagem prosaica, muito ajustada ao visado, Trump já só pensa em “se safar”. É este o grande desígnio da bandeira nacionalista que decidiu erguer: “safar-se”.
4. A vida tem as suas ironias. As duas campanhas mais nacionalistas dos últimos anos – a do referendo britânico e a das presidenciais americanas – em nada serviram para reforçar o peso dessas duas nações e dos seus poderosos Estados. Bem pelo contrário, mergulharam-nos numa espécie de encapsulamento e ensimesmamento interno. Que fique a lição para aqueles que andam para aí tão satisfeitos, para não dizer ufanos, com o regresso do nacionalismo e o retorno à política doméstica. Dizem que, pelo menos, reforçaria a democracia. Olhando para a destruição do Partido Trabalhista e para a tragicomédia política em Washington, ainda não deu para perceber em que é que esta deriva “umbiguista” fortaleceu os respectivos modelos democráticos. A vida tem as suas ironias.
SIM. Saída do Procedimento de Défice Excessivo. Eis um momento decisivo e justo para todos os portugueses. Merecem boa nota os governantes que de 2011 até agora perceberam a importância desta meta. 
NÃO. Classe política brasileira. Temer é talvez o caso mais grave, mas a corrupção é generalizada e não se vê como pode regenerar-se o sistema político. Uma tragédia política de proporções globais.

OPINIÃO
O que é que mais pode correr bem?
Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
João Miguel Tavares
16 de Maio de 2017
Agora que Salvador Sobral venceu a Eurovisão, o Papa veio a Fátima canonizar dois pastorinhos, o Benfica foi tetracampeão, o primeiro-ministro revelou-se um magnífico primeiro-nanny para os meus filhos e a economia cresceu 2,8% no primeiro trimestre de 2017, suponho que a única coisa que me resta é começar a preencher este espaço com corações cor-de-rosa desenhados a caneta de feltro, um sol muito amarelo junto ao Bartoon do Luís Afonso, e um riacho azul a deslizar até à ficha técnica do jornal. Vou converter-me ao costismo – o país está tão espectacular, que até parece mal dizer mal.
Peguemos, por exemplo, no que era suposto ser a pior notícia do mês para o Governo – a greve dos médicos. À primeira vista, era uma greve importante. Metia médicos, a saúde dos portugueses, gente a bater com o nariz na porta de consultas marcadas há meses – e era o primeiro grande momento de contestação social à política do Governo. Mais: quando se juntava a greve do dia 10 e 11 à inacreditável tolerância de ponto de dia 12, estávamos a falar de três dias consecutivos sem médicos nos hospitais – cinco, se contarmos com o fim-de-semana. Pergunto: alguém deu por isso, tirando os pobres utentes que tiverem de voltar para casa com receitas vazias? Eu cá não dei. Embora os sindicatos do sector garantam que não só houve greve como a adesão terá atingido os 90%, ela foi praticamente invisível. Ou seja, na era de António Costa, não só há poucas greves, porque a esquerda apoia o Governo, como as poucas que há não têm qualquer impacto mediático. Quem fica malvisto ainda são os grevistas, tidos por excessivamente reivindicativos numa altura em que o senhor primeiro-ministro se está a esforçar tanto para endireitar o país.
Ajoelhem-se, caros leitores, porque diante de nós está a ressurreição de Portugal: tudo o que era sofrimento com Passos Coelho se transmutou em alegria com António Costa. Não se trata apenas de o Diabo não ter vindo – trata-se de, em vez dele, ter comparecido o Arcanjo Rafael, que tudo remedeia e tudo cura, em termos físicos, psíquicos e espirituais. Em vez das sete pragas do Egipto temos as sete bênçãos dos céus. Não pensem que estou a sugerir aqui qualquer espécie de manipulação mediática, com os jornalistas congeminados numa grande conspiração para perpetuar os socialistas no poder. Nada disso. Costa, simplesmente, conseguiu juntar: 1) um país cujo ajustamento mais doloroso já tinha sido feito à custa do odioso Passos; 2) uma Europa a crescer de forma significativa; 3) um Mario Draghi a prometer continuar a comprar dívida aos magotes; 4) uma esquerda que se mantém fora das ruas e deixou de ir gritar para as televisões; 5) um pragmatismo que o leva a borrifar-se para a estratégia política prometida, porque a prioridade continua ser o cumprimento das regras europeias; 5) uma postura optimista e sorridente que o distancia do ar macambúzio de Passos.
O resultado dos pontos 1 a 5 é este: tudo corre bem a António Costa. Ainda que no final do mês o dinheiro que sobra na carteira dos portugueses seja o mesmo que sobrava no tempo de Passos Coelho, o que antes era uma terrível tempestade agora é um quadro de William Turner. Com a habitual ciclotimia portuguesa, a besta passou a bestial. Voltámos a ser os maiores: campeões europeus a jogar à bola, campeões europeus a cantar, campeões europeus a acreditar. Passem os lápis de cera, por favor – sinto uma necessidade urgente de desenhar passarinhos a chilrear.

Augusto Santos Silva, Salvador Sobral e a RTP
Os irmãos Sobral criaram uma grande mas sem as boas ideias de profissionais competentes e independentes na RTP, não teriam chegado a criar coisa alguma
18 de Maio de 2017
O ministro dos Negócios Estrangeiros louvou ontem a vitória de Salvador Sobral no Festival da Eurovisão, num artigo de opinião no PÚBLICO onde cruza a crítica musical arguta com a subtil análise política. “Não se trata apenas de celebrar uma vitória nacional”, escreveu Augusto Santos Silva, “mas o modo como foi conseguida”. É um facto: os irmãos Sobral apresentaram-se com uma canção que qualquer pessoa com décadas de Eurovisão diria não ter quaisquer hipóteses, por ser pouco festivaleira – este equívoco torna a vitória de ambos ainda mais meritória.
Mas se Santos Silva percebeu bem a singularidade musical da canção, não resistiu depois a transformá-la numa singularidade lusitana, no sentido em que Salvador Sobral cantou em português, afirmou o seu talento individual e rompeu com a “lógica comercial, do marketing, da uniformidade e do monolinguismo” que dominava a Eurovisão. Como de costume, assim que nos apanhamos a vencer não resistimos a pregar ao mundo. Ora, se é verdade que Salvador Sobral demonstrou, como era seu desejo, que “a música não é um fogo-de-artifício”, também é verdade que ele e a sua irmã foram dois magníficos trunfos de marketing nos últimos meses – por causa da simpatia e espontaneidade de ambos, por dominarem um apreciável conjunto de línguas, e porque o próprio Salvador é uma personagem fascinante, que extravasa a dimensão estritamente musical. Sim, é verdade que ele é um intérprete notável e um justo vencedor, mas a vitória na Eurovisão não se deve apenas à sua singularidade enquanto intérprete – pelo contrário, deve-se à construção altamente profissional de um caminho que permitiu que essa singularidade se manifestasse.


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