terça-feira, 16 de maio de 2017

Suave, seráfica, sacerdotisa e mais os pecadores



Hoje ouvi da Mariana Mortágua um discurso em tom baixo e contido, ciciante e trabalhado num sentido de largo alcance do espectro da sua voz, cuja eficiência nos atinge, na constatação sobre a nossa recuperação económica - apesar da distribuição de dinheiro pelos de ordenados mais somíticos, segundo disse, causando rombo nas contas - que me lembrou facilmente a voz melíflua de Álvaro Cunhal, em tempos, o qual também não precisava de elevar a sua, creio que a tinha estudado na Rússia, pois logo hoje, a propósito da questão sobre o Kim Jong Un, escutei a teoria de Putin sobre o mesmo dito lançador de bombas nucleares que se desfazem no espaço, e a preocupação de apelo dos outros povos asiáticos, pedindo ajuda. E a voz de Putin tinha igual tom seráfico e velado, de uma cordialidade a dar para o sinistro, caso haja intervenção alheia, donde depreendi que as vozes másculas como a de Macron não são para aquela orientação política habituada a tratar na sombra, quer seja na dos conventos de antanho, quer na de outras capelas poderosas de ogano, incluindo a de Mortágua, salvas as merecidas proporções. Vasco Pulido Valente, na sua resenha histórica sobre as picardias políticas presidenciais norte-americanas que por nós passaram, com maior ou menor clareza, mas que gostamos de rever, com a respectiva análise eficiente, compara com as que se vão seguir, de Trump, mais preocupantes, mas lá temos a voz de Putin que ouvi hoje, serena e contida, a falar de moderação, ou mesmo a da Mortágua, do mesmo diapasão de eficiência orgulhosamente arrastada, embora naturalmente sem o alcance da do patrono do leste europeu, pobrezinhos que somos, metidos na nossa vidinha, de muito amor, segundo Alberto Gonçalves.
Quanto aos traços facetos deste, que o revelam como pessoa profundamente honesta nas suas tomadas de posição, é sempre um prazer lê-lo e meditar no que diz. Meditemos, pois:

Trumpolinices
Vasco Pulido Valente
OBSERVADOR,14/5/2017
… hopes expire of a low dishonest decade … (W. H. Auden)
O mundo está perigoso e cada vez mais complicado. No meu tempo, antes do feminismo, o grande segredo de Washington era o número de damas com quem Kennedy diariamente dormia e a partilha amigável de uma delas com o chefe da Mafia de Chicago, que segundo a imprensa bem-pensante lhe comprara uns milhares de votos no Illinois. Mas, no fundo, ninguém se preocupava muito com esta história que o público até achava divertida. Norman Mailer escreveu um romance em que a intriga assentava parcialmente nela e Coppola acabou por tornar a Mafia Italiana numa parte legítima do folclore americano. Anos depois, veio Nixon com o seu bando de ladrões, que assaltaram o escritório de um psiquiatra e a sede do Partido Democrático no complexo Watergate. Nixon, que indirectamente lhes dera ordens, mentiu com quantos dentes tinha na boca e foi corrido da Presidência por indecente e má figura e também foi arrumado depressa na prateleira das curiosidades: aquilo não passava de um caso insignificante e sórdido.
Agora com Trump a questão é, além de inquietante, claramente sinistra. O indivíduo é acusado de ligações à Máfia Russa, não à doméstica Máfia Italiana, porque a Máfia Russa domina o mercado imobiliário de Nova York em que ele fez fortuna; e, pior ainda, de conluio com Putin (um homem forte que ele admira) para perturbar, ou falsificar, a eleição presidencial. Anteontem Trump pôs na rua o director do FBI, James Comey, que estava a investigar o assunto. As explicações para este inesperado despedimento (mesmo para Comey, que soube dele pela televisão) não sossegaram nem o bom povo, nem o Senado, nem os jornalistas. Trump embrulhou-se desde o princípio e, no meio da confusão, deu uma entrevista em que declarou que Comey (a vítima da sua fúria) o ilibara três vezes de qualquer espécie de manigâncias com a Rússia. Isto cheirou mal a toda a gente e convenceu os gurus políticos (que na América são uma força) que Trump se metera de facto em combinações com Putin e tremia com a ideia de que elas fossem descobertas. Há quem fale num novo Watergate. Absurdamente, porque o Watergate era uma simples ladroeira, e as supostas actividades de Trump envolvem, ou podem envolver, a segurança do Estado americano e por consequência do mundo. Começou um caminho arriscado em que o zelo da televisão e da imprensa se junta ao de uma parte do Senado e da Câmara para destapar o que Trump pretende alegadamente esconder. A violência dos debates não promete nada de bom.

Fátima, um assunto que não me diz respeito
OBSERVADOR, 13/5/2017
É de notar que, com típica valentia e apreciável obejctividade, o ateísmo militante não rejeita todas as religiões de igual modo. Na maioria dos casos, limita-se a rejeitar o cristianismo e o judaísmo
Primeiro, a declaração de desinteresses: excepto por um professor no ciclo preparatório, nunca conheci um padre. Já vi padres, sei que existem, mas nunca falei com um ou sequer lhe fui apresentado. Parece esquisito e, num país no fundo católico, se calhar é esquisito. Mas o facto ilustra a distância a que cresci da religião, organizada ou desorganizada. Nunca frequentei a catequese. Nunca assisti a uma missa “regular”, das que não são cerimónia matrimonial ou fúnebre. Nunca experimentei apelos espirituais. Nunca passei pela Cova da Iria. E nunca me julguei superior por isso.
Ser ateu, à semelhança de não ser sócio da Académica de Coimbra, é um acaso e um estado de omissão, que não implica qualquer opinião depreciativa sobre o seu oposto (antes que me peçam satisfações ou o escalpe, juro não sentir nenhuma repulsa pela Académica de Coimbra). Se tanto, o que a religião me suscita é indiferença. Curiosamente, inúmeros ateus discordam e transformam a mera ausência de fé numa fé inabalável, ia escrever cega, na razão deles. Nos tempos que correm, há gente altamente empenhada em enxovalhar os crentes e, possivelmente por ganharem à comissão, convertê-los à descrença.
É engraçado que o proselitismo ateu queira chamar a si pessoas que à partida considera rematados idiotas, um contrassenso que estranhamente escapa a criaturas tão brilhantes. É engraçado que muitos dos ateus em causa se aflijam com os crimes da Igreja e em simultâneo ignorem o rastro de sangue das variantes “clássicas” ou contemporâneas do credo marxista, das quais observam com rigor os respectivos dogmas e sacramentos. Porém, verdadeiramente hilariante é que o próprio ateísmo tenha assimilado os padrões, as regras e as estratégias da religião convencional. Quando bandos de ociosos decidem imitar os evangélicos e enfeitar autocarros de quinze países com a frase “There’s probably no God”, sabemos estar no limiar da comédia involuntária. Porém, quando a campanha apenas se circunscreve a países ocidentais, começamos a suspeitar que nem tudo aqui é cómico e involuntário.
Convém notar que, com típica valentia e apreciável obejctividade, o ateísmo militante não rejeita todas as religiões de igual modo. Na maioria dos casos, limita-se a rejeitar o cristianismo e o judaísmo, leia-se os credos “familiares” à civilização que permite a militância. Os credos restantes, talvez a título de exóticos, talvez por receio de camiões desgovernados, são normalmente poupados à sobranceria. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que estes peculiares ateus se ofendem menos com o culto do divino do que com as sociedades em que o divino não é omnipresente na vida “material”. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que o problema destes peculiares ateus é com a liberdade. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que estes particulares ateus não prezam excessivamente o ateísmo.
Sendo absurdo, mesmo assim algum ateísmo não disfarça a aversão que lhe suscita um lugar como Fátima. Para um ateu comum, Fátima foi uma reacção da Igreja ao anti-clericalismo da época, aliás decalcada de Lourdes até à minúcia: o contexto jacobino, a área remota, as crianças pobres, a sincera ou simulada hesitação inicial das autoridades eclesiásticas, etc. – o resto é respeitável e é com cada um. Para um ateu militante, Fátima é uma exibição de primitivismo, um desfile de sacrifícios sem sentido, uma exploração de crendices, uma manipulação comercial, em suma um horror, palavra raramente aplicada ao misticismo oriental ou às cerimónias tribais da Papuásia. E sobre Meca, por motivos óbvios, a deferência impera.
No centenário das aparições, se quiserem sem aspas, Fátima recebe o Papa e, por cá, metade dos ateus militantes aproveita sem surpresas para se aliviar de desprezo e chalaças. Surpreendentemente ou não, a metade que sobra decidiu mostrar uma inédita “compreensão” do fenómeno. Porquê? Porque o rebuliço “jornalístico” alimenta a propaganda oficial e porque o Papa em questão ocasionalmente se deixa confundir com um esquerdista. Pelos vistos, e eis o quarto milagre de Fátima, certos ateus toleram a religião em prol do socialismo. Eu não tolero o socialismo a troco de nada: há dois dias que não ligo a televisão.

Notas de rodapé
1. Após incensar Rui Moreira durante quatro anos, bastaram algumas horas – e uma humilhação merecida – para que o PS invertesse o discurso e passasse a considerar o autarca um perigoso antidemocrata, cuja acção maligna reduzirá o Porto a cinzas. É sabido que a política é propícia à conveniência, à mentira e à falta de vergonha na cara. Mas isto é espectacular.
2. O presidente Marcelo confessa-se “apaixonado pelo Papa”. Sua Excelência, a acreditar em notícias soltas, também parece apaixonado pelos portugueses com sucesso, pelos portugueses sem abrigo, pelas imortais vitórias na bola, por Guterres, pelas feiras de enchidos, pelos falecidos comunistas Baptista-Bastos e Fidel Castro, pelo recém-nascido Macron, pela nova administração da CGD, pela comunidade islâmica indígena, pelas esposas de Cavaco e Sampaio, pelo Benfica, por Cabo Verde e Senegal, pelo espírito ecuménico da pátria, pelos bombeiros, pelo Teatro Aberto e, claro, pelo governo.
O governo, ainda que de modo mais comedido, mostra-se igualmente apaixonado por Marcelo, por Guterres, pela “aposta” na ciência, pelos parceiros de extrema-esquerda, pelos senhores da banca, pelas Águas do Ribatejo, pela função pública, pelo Benfica e por qualquer indivíduo ou instituição que não lhe cause maçadas. Os “media”, genericamente, estão apaixonados pelo Papa, por Marcelo, pelo governo, por tudo o que seja informação “positiva” e pelos portugueses. Os portugueses estão apaixonados pelo Papa, por Marcelo, pelo governo, por Guterres, pelo Benfica, por Cristiano Ronaldo, pelo intérprete de uma cantiga na Eurovisão, pela fisga de Joana Vasconcelos, pela “maior operação de segurança de sempre” e pelo que calha.
Quase todos, em suma, estão apaixonados por quase todos. Há imenso amor no ar. Comparado com isto, o mito de que a orquestra do Titanic tocava uma valsa em tom menor durante o naufrágio é brincadeira de crianças. Nós somos gente crescida, que cantará o fado e dançará o vira mesmo depois de o país afundar. O que é que os portugueses andam a tomar? Juízo não é, com certeza.



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