segunda-feira, 15 de maio de 2017

“Já não somos os pobrezinhos da Europa”



“Somos um país culto.” A frase veio na sequência da minha primeira intervenção, ao chegar atrasada ao café do nosso encontro dominical, com os olhos esfusiantes de beatitude, dando os parabéns com uma cordialidade que só a minha irmã entendeu, a nossa amiga, mais votada a discursos de rentabilidade económica, julgando que me referia à vitória do Benfica, chamariz de muito ajuntamento e buzinadelas em volta da estátua do Marquês, e de muito dinheiro para o clube e até para o nosso país por via dos impostos das cobranças estatais, Marquês já habituado às nossas descargas emocionais, quer de protestos quer de nobres exaltações da nossa intervenção nacional que ontem se prolongou até de manhã. Não, não me referia à conquista do tetra campeonato europeu pelo clube magnífico, de que os mais inflamados já auguram o penta para o próximo ano, com grande revolta da nossa amiga, sportinguista ferrenha, apesar de não apreciar muito o nosso Jesus das intervenções figurativas do Humberto Madeira, que todas nós amamos de rir às lágrimas com a sua imitação e caracterização certeiras. A minha irmã, patriota ferrenha como eu - e também, naturalmente, a nossa amiga - teceu logo loas ao nosso herói de momento, Salvador Sobral, que cometeu o feito de ganhar o festival da canção com uma pontuação inédita de 758 votos e vários países que nele votaram 12, a nota máxima, que a minha irmã anotou num papel onde igualmente anotou uma receita de sobremesa, colhida não sei em que fonte, mas de lamber os beiços, embora ela - e a nossa amiga igualmente - se refiram frequentemente aos efeitos funestos do açúcar no nosso organismo, e que metia camadas de pão de ló demolhado em calda de pêssego ou ananás e mais chantilly, com a anotação eficiente: “acaba sempre em chantilly.
Tomou nota das classificações e não resisti a pedir-lhe o papel (a devolver criteriosamente no nosso próximo encontro - “Tem uma receita, não mo percas”), para ao menos copiar o nome dos países que nos deram 12, que transcrevo com orgulho, para gravar no meu blog - Rep. Checa, Lituânia, Arménia, Islândia, Sérvia, Suíça, Holanda, Geórgia, Hungria, Eslovénia, Polónia, Inglaterra, Suécia, S. Marino, Israel, França. Houve vários que nos deram 10 - Ucrânia, Alemanha, Bielorrússia, Malta, Macedónia, Dinamarca, Noruega, Espanha, mas não vou passar o resto, para só copiar aqueles de que ela mais gostou e nem sequer foi a do nosso Salvador: Bielorrúsia, Moldávia, Itália, Grécia, I. Kingdom, Chipre, Suécia, Bélgica, França, um ror deles.
Mas, enfim, ainda não expliquei o porquê da saída da minha irmã, que transcrevi no título deste meu artigo orgulhoso, que fez que o meu filho João por quatro vezes e o meu filho Artur apenas uma, me telefonassem na noite, para assistir ao triunfo inédito no nosso país, no festival da canção, o João fazendo-me perder a “Rainha das Flores” no seu final, embora eu já tivesse escutado religiosamente as canções até à nossa, que estava em 11º lugar, salvo erro, e só a seguir apanhasse o fio do “Amor Maior” e a sua gama de personagens de casos vivenciais possíveis, com crime de mistura com caricatura e variadas paixões.
Estava, pois, eu a elogiar o nosso Salvador Sobral em referência ao seu à vontade na entrevista dos jornalistas, dizendo das suas respostas sóbrias e inteligentes, num inglês fluente, quando a minha irmã me apoiou com essa sua frase entusiasta “Já não somos os pobrezinhos da Europa” que nos fez às três anuir em regozijo patriótico. A minha irmã acrescentou mais uma: “A sorte do António Costa! Está-lhe tudo a entrar pela porta dentro, sem ele fazer nada!”, o que desorganizou um pouco as minhas convicções menos optimistas a respeito das competências do nosso Primeiro, mas estávamos as três realmente felizes com o feito do nosso Salvador, tudo o resto não passava de ninharias, e os três FFF do nosso bem-estar, que a minha irmã citou, - Futebol, Fátima e Festival - nos tenham caído como mel, na nossa devoção.
A nossa amiga, contou do envio de parabéns pelos benfiquistas ao Salvador - que modestamente considerara Ronaldo o verdadeiro herói nacional, não ele - e a minha irmã, movida, talvez, pela sua fixação exclusiva na vitória do S.S., atirou: “O que é que isso interessa?” ao que nossa amiga respondeu: “Interessa porque a tua irmã diz que a amiga dela é que disse e a amiga dela passa por parvinha”, o que comprovou o nosso grau de excitação na euforia geral, (mas também a rapidez da reflexão da nossa amiga). A minha irmã fixou-se mesmo no jornalista turco que perguntou ao S.S. “se ele não ligava aos horóscopos e não estaria num dia sim”. “Grande estúpido!”, concluiu a minha irmã sentida, embora nenhuma de nós tivesse votado na canção portuguesa e achemos que cada um tem direito ao seu ponto de vista. Eu própria considerei doutoralmente que se parecia um pouco com as canções de ninar e logo a minha irmã atirasse: “É muito melosa e ele muito meloso”, mas referiu o comentário da jornalista italiana que o gabou por “ter cantado em português” e a Luísa Sobral ter justificado esse facto com muita classe, na entrevista. A opinião de todos, e até os das muitas mesas redondas que se seguiram nas nossas TVs - e devem continuar - é a de que se tratou de uma canção simples e sem fogo de artifício, mas nós as três referimos tantas canções bonitas nossas que passaram pelo festival, a começar na da Tonicha “Menina do alto da serra raiando pela manhã” que me deu no goto na altura, ou a do Milho rei da Simone, ou a da Maria Guinot tão bonita  -“Silêncio e tanta gente”, ou “Esta balada que te dou” do Armando Gama, também faladas em português e suponho que mais eternizáveis do que a que ganhou o primeiro lugar ontem. Mas ainda bem que ganhou, o que prova que, ou o gosto esmoreceu, ou que as pessoas estão cansadas de alarido e preferiram o regresso à simplicidade um pouco tosca, de um texto para a juventude, como me parece que é, embora a minha filha Paula, que entretanto chegou, também exaltasse com fervor a canção e contasse a fofoca indignada que ouviu a uma amiga, sobre um inglês que afirmara ter o Salvador ganho “por uma unha negra” (“narrowly”).
Eis, novamente, a canção, realmente vitoriosa com larga margem:
Amar Pelos Dois
Se um dia alguém perguntar por mim
Diz que vivi para te amar
Antes de ti, só existi
Cansado e sem nada para dar
Meu bem, ouve as minhas preces
Peço que regresses, que me voltes a querer
Eu sei que não se ama sozinho
Talvez devagarinho possas voltar a aprender
Meu bem, ouve as minhas preces
Peço que regresses, que me voltes a querer
Eu sei que não se ama sozinho
Talvez devagarinho possas voltar a aprender
Se o teu coração não quiser ceder
Não sentir paixão, não quiser sofrer
Sem fazer planos do que virá depois
O meu coração pode amar pelos dois.

Nenhum comentário: