O
artigo do OBSERVADOR, de Maria João Avillez, revela
uma figura feminina na inteireza de uma personalidade educada segundo
parâmetros ousadamente e aristocraticamente reaccionários, de uma abertura e
vivacidade não comprometidas pelos oportunismos das modas, ao referir memórias
ou espaços vivenciais que facilmente a conotam com elegâncias de “noblesse
oblige”. Facilmente concitará, talvez, opiniões democráticas rancorosamente impacientes,
contra uma personalidade elegante, assim revelada na sua escrita caprichosa, que
não receia afirmar-se adepta do receituário dos três FFF das intelectuais
ironias anti-salazaristas, sublinhando o subdesenvolvimento do povo, apreciador
do fado, futebol e Fátima, neste momento trocando o F do fado pelo do Festival
que soube recompensar uma canção em tudo oposta às melodias temáticas e formais
da canção nacional. Mas Maria João Avillez não se refere, talvez por enquanto,
àquela canção de requebros decadentes, para mostrar o seu apreço, fixando-se antes
no Benfica dos seus amores antigos, mas, sobretudo no Papa, na emoção de um entusiasmo
de verdadeira comunhão, sem contestar minimamente a autenticidade de um milagre
que outros põem em causa.
E
esse aspecto me levou a uma estranha leitura captada na revista Ipsilon, sobre o filósofo Michel Onfray, que Jan Le Bris de Kerne
analisa e entrevista, em artigo intitulado «Sem religião não há civilização. A sério?», de que extraio
alguns passos:
-
«Michel Onfray,
filósofo-vedeta, é o autor de Décadence.
Obra que quer demonstrar como as civilizações são fundadas sobre religiões,
como elas nascem, crescem, conquistam, declinam e morrem.
-
«A França é um país curioso, que espanta, intriga, por vezes fascina os
vizinhos francófonos. Belgas, suíços, luxemburgueses observam atentamente as
agitações políticas, as polémicas ideológicas que agitam os sofás da sociedade
francesa, dado que, em comparação, as suas próprias actualidades sociais são
calmas e, dizem eles, por vezes, aborrecidas. Este tumulto francês é possível
devido à presença, em primeiro plano, dos debates, das ideias, das correntes de
opinião e de pensamento, e dos filósofos. Uma dezena deles são mesmo estrelas
mediáticas, chamados a comentar tudo, a explicar tudo, a contestar tudo. Agora
que a França acabou de se amedrontar, permitindo que Marine Le Pen e a Frente
Nacional tivessem chegado à segunda volta das eleições presidenciais, e que Michel
Onfray proclama que já não vota, argumentando que os responsáveis, de todos
os quadrantes, conduzem políticas exógenas, ditadas por Bruxelas, pelo FMI ou
pela NATO, será interessante interrogá-lo sobre a palavra e o lugar dos
intelectuais, escritores filósofos, no cenário mediático francês.
-
Michel Onfray, 58 anos, é um dos filósofos-estrelas de França. Um libertário e
um hedonista, situa-se muito à esquerda politicamente.»
-
«Michel Onfray, enfim, é todo ele um programa e um método. Muitas
das suas biografias causaram barulho,
visto que iam contra a corrente do sentimento generalizado: escreveu sobre Sigmund
Freud (um mentiroso, perverso, cúpido), sobre Jean Paul Sartre
(colaboracionista com o regime de Vichy), o marquês de Sade (falso ídolo do
nosso tempo, e um criminoso desequilibrado, e mesmo Jesus (uma
fábula sem realidade histórica).
-
«O método Onfray é o seguinte: lê na íntegra a obra dessas personagens, depois
tudo o que se escreveu sobre elas, e em ordem cronológica. Uma tarefa colossal,
que ninguém se atreve a empreender, e que lhe permite ser categórico,
dificilmente contestável, enquanto revela os elementos escondidos, por vezes
explosivos, que o pensamento mainstream conseguiu ocultar.
A
sua última obra “Décadence” (Flammarion), dedica-se a mostrar como todas as
civilizações são ontologicamente fundadas sobre religiões, como elas nascem,
crescem, conquistam, declinam e morrem. Partindo de Jesus Cristo, percorre com
atordoante precisão bibliográfica, as etapas do desenvolvimento e do declínio
da nossa civilização judaico-cristã, avançando um diagnóstico pessimista para
os anos que se seguem, os últimos, e que serão fatais. «Chamo decadência ao
que vem da força plena e que conduz ao final dessa mesma força”
-
«Ninguém já acredita nos deuses dos egípcios, nos dos gregos do tempo de
Péricles, ou nos do México pré-colombiano. Mas essas religiões perdurarão
enquanto o homem perdurar, porque elas trazem consolo àqueles a quem a
filosofia não trouxe a serenidade»
«As
pessoas preferem uma ilusão que lhes dê segurança, a uma verdade que as
inquiete. Antes fábulas que prometem que a morte não existe e que a vida
continua depois do falecimento, do que uma verdade científica que traz a prova
de que, uma vez mortos, apenas conhecemos a decomposição e o vazio.»
-
«Jesus Cristo nunca existiu» (segue-se
a demonstração)
"Não acredito na morte do sentimento
religioso. Creio na morte, de uma forma refém desse sentimento, a
religião" ….
E
tantas mais informações, que gostarei de reler, nesta entrevista, que guardarei
religiosamente, o artigo extenso sublinhado atentamente pela minha irmã. Em
apoio da tese sobre a condição definitiva da materialidade do corpo, lembro que
o próprio Genesis já o informara no seu aforismo “pulvis est et in pulverem
reverteris”, mas, em sugestiva tese contrária, não podemos esquecer que Virgílio
revelara essa inverdade, ao pôr Eneias a visitar o seu pai Anquises, no
inferno, por artes mágicas da Sibila, é certo, o qual o recebeu de braços
abertos e com muita informação sobre alguns presentes nesse além, povoado de
mortos conhecidos; e até, uns séculos depois, o próprio Dante os
encontrou, num inferno ainda mais povoado, e tendo por acompanhante o mesmo Virgílio, seu guia e seu mestre. Por isso, continuemos a ter esperança numa vida
eterna, se tal nos tranquilizar a mente inquieta.
Vivemos
em democracia e as opiniões são livres. Digamos, com José Régio,
da nossa independência. Maria João Avillez não a põe em dúvida.
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os
olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos........
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos........
Sentinelas da madrugada
OBSERVADOR, 16/5/2017
Mesmo
suspeitando eu que o dr. Salazar não apreciava os "efes" que
delimitariam o perímetro da nossa alienação, para a minha felicidade eles muito
contribuíram.
1. Domingo de manhã meti-me num táxi e
dei com a infalível Rádio Amália. Vinha a calhar. Na véspera, já tarde, perto
da meia noite, na esquina da Duque de Ávila com a Avenida da República,
observara extasiada a gloriosa passagem dos gloriosos encarnados e do seu tetra
e isto para não falar, das irrepetíveis vinte e quatro horas de Fátima.
Eu
não sei se António Costa foi ouvir algum fado neste domingo, após ter
estado tão feliz em Fátima no sábado e de horas depois ter apanhado com a
jubilosa vitória do seu e meu Benfica. Mas talvez não lhe valesse a pena andar
afanosamente à procura do fado pela cidade, quem sabe se Salvador Sobral,
mesmo que momentaneamente, não terá encarnado, aos seus olhos, a canção
nacional. Também vinha a calhar e pela festa, parecia. O que sei é que dizer
coincidência – ou dizer o que quer que seja, de resto – ficará sempre aquém da
espantosa ironia do feito. Basta apenas atentar na velocidade com que se
eclipsaram hoje os efeitos maléficos que ontem as esquerdas que aí estão, nos
diziam que o fado, Fátima e o futebol teriam sobre o pobre povo, para perceber
como a natureza humana política se ajeita ao que convém. E mesmo
suspeitando eu que o dr. Salazar não apreciava qualquer dos “efes” que
supostamente delimitariam o perímetro da nossa alienação, para a minha
felicidade contribuíram generosamente, passe o choque desta abrupta confissão.
Deve até haver pouca gente no país que lide tão bem com eles (os “efes”) e os
pratique com tão pública convicção.
2. O fado só pode ter vindo ter comigo
na casa onde nasci, aqui no Campo Grande. Ao tempo dos Condes de Vimioso
que nela habitaram em meados do século XIX – antes de ser comprada por
antepassados meus — o fado escorria pelas paredes. Havia touradas no
pátio onde hoje vivo, dizia-se que vinha a Severa e cantava, a noite
consumia-se por entre festas concorridas, altíssima boémia, alma e cantorias
que deixaram assinatura e memória na então casa da Quinta dos Condes de Vimioso.
Terei ficado com alguma coisa disso. E se não entro numa praça de touros, tenho
o fado comigo desde que me lembro. Contavam-nos estas e outras histórias em
pequenas, às minhas irmãs e a mim e divertíamo-nos a detalhar como seria o
pátio com touros lá dentro ou guitarristas dedilhando nos degraus de pedra.
Depois, no tempo dos meus pais , lembro-me que por vezes também se “fadistava”
e que Amália aqui cantou. Estava longe de sequer adivinhar que um dia
entrevistaria a diva com uma devoção difícil de explicar. Mas nesse tempo eu
ainda não sabia que a vida –regra sem excepção — é sempre mais poderosa que o
sonho.
3. O Benfica é mais inexplicável,
porventura totalmente inexplicável. Foi pelos treze anos e o Campo Grande
ia caindo: “do” Benfica? A família perplexizou. O meu pai honrava o Belenenses,
as minhas irmãs não eram de nada, os amigos ou militavam no Sporting ou
eram-lhe afeiçoados. Era como se o Benfica não fosse frequentável, julgo que nas
paragens da minha infância e adolescência “se” suspeitava que seria “do
reviralho” e a nossa casa era salazarista, com muito respeito. Pois bem, eu até
sócia me fiz da Luz, catedral que muito frequentei durante anos, em ambas as
suas versões. Acompanhei o clube como convidada a algumas jornadas europeias,
entrevistei jogadores, Eriksson veio jantar a nossa casa. Guardo uma foto com
Eusébio e, no dia em que ele morreu, fui para a rua homenagear a passagem do
seu carro funerário. E flor entre as flores, consegui uma vez, estava então no
Público, juntar Artur Jorge, treinador do Porto, e Eriksson, do Benfica, para
uma entrevista quando os clubes que ambos treinavam estavam empatados no
campeonato (ainda não se dizia Liga).
Paixão
antiga esta, inamovível, fidelíssima. Ligeiro (ou melhor, pesadíssimo)
senão: a ocorrência de um Benfica/Sporting ou de um Sporting/Benfica, revisto
pela conjugalidade. Acontece-nos bastantes vezes mas é pior quando estamos fora
de portas.
O
silêncio do campo e a solidão do lugar acicatam-nos a rivalidade. O tom sobe,
as (minhas) imprecações também, nenhum de nós vê os lances da mesma maneira.
Não costuma acabar bem.
Parabéns
Benfica.
4. E agora vou ao
que de mais sério poderá justificar este texto. Pelo incomum significado do que
se viu e ouviu em Fátima. Pela vinda do Santo Padre a Portugal na mais
disponível, mais despida das condições que é a de peregrino. Pela canonização,
pela primeira vez na longa vida da Igreja, de duas crianças não mártires.
Rudes, simplórias e analfabetas. Pela visita do Papa Francisco a um Santuário
que cumpria cem anos sobre a primeira aparição (se quiserem podem ler “visão”)
de Nossa Senhora, ali celebrada pelo gesto e o verbo do Santo Padre. Eis o que,
apesar de já irreversivelmente inscrito na história do mundo e na da
Cristandade , perturba tanto quanto inexprimivelmente confunde.
“Não
é simples conviver com isto, a graça que nos foi dada a viver requer tempo para
ser interiorizada e aprofundada em todo o seu alcance”, dizia-me D. António
Marto, bispo de Leiria-Fátima e muito inspirado cicerone daquelas horas. É
verdade. Mas também me ocorrem as palavras do sacerdote espanhol José António
Pagola, teólogo crucial pela forma como “pensa “ o Evangelho, quando alerta
para que ”nem tudo é reduzido à razão”. Em Fátima, estes dias, percebeu-se
melhor isso mesmo.
O
Papa não veio por vir. Legitimou um sítio e adubou uma fé mas trouxe desafio e
pediu compromisso. Reafirmou a “proximidade”, entendida como o “ir ter” com o
menos apetecível dos próximos; a urgência da conversão; o poder de dádivas como
é o perdão; o valor quase demencial da misericórdia.
Não
veio por vir, tinha uma agenda. Vir sem depois acontecer nada no dia seguinte,
não parece ser com ele. Se era só para ver Nossa Senhora, na “eternidade haverá
tempo para isso”. Ele sabe que agora o tempo é de sentinelas. Naquele
silêncio imóvel onde cabia a luz e a sombra, a culpa e a redenção e se ouvia o
sussurro de Deus, Francisco pediu essa coisa imensa que são sentinelas. Sentinelas da mensagem de Fátima sob a
forma de uma nova madrugada.
5. Não se esquecerá, julgo eu, a dignidade, a
beleza, a cadência, a sobriedade , a intimidade, das cerimónias no Santuário.
Desde o minuto em que um helicóptero com um homem á janela vestido de branco descia
sobre a Cova da Iria, até à despedida ao pé de um avião imobilizado numa pista,
cada pessoa daquela magna organização sabia a cada momento, o que estava a
fazer. Não posso — nem quero — impedir-me de felicitar os seus mais altos
responsáveis pela intensidade por eles preservada deste momento irrepetível da
nossa vida colectiva. Com ou sem fé.
6. Havia portugueses
suficientes para tudo o que aconteceu em Portugal no sábado?, perguntava ontem
ao telefone um filho que vive longe e fora. De facto.
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