Está-nos nos genes de bacoquice, isto de ir espreitando
o ovo que vai sair da galinha, e aí estamos nós pendentes dos ovos que António
Costa põe e que Marcelo Rebelo de Sousa, em foguetório estridente, assinala
disciplinadamente, nos seus discursos sem gema que preste mas com muita clara
viscosa, que até convence o articulista David Dinis. O resultado será o mesmo
que a azougada Mofina Mendes sofrerá no seu baile de optimismo descuidado, na
sua visão de uma felicidade utópica, demonstrativos da transitoriedade de todas
as coisas, mesmo as ambições ou os prazeres humanos, Mofina encarnando assim a
própria desgraça que o seu nome traduz.
Esperto, o nosso Gil Vicente, na auscultação da
nossa inconsciência, bem simbolizada há tantos séculos, e há muito exibindo os
seus direitos à paga, com azeite que seja, não ao cumprimento do dever de
trabalhar em sintonia. Os artigos de João Miguel Tavares e de David Dinis dão
disso conta, nas trapalhadas financeiras do ministro, nas justificações
embrulhadas do presidente, no espreitar lânguido e submisso do povo, que espera
sempre.
1º Texto:Os devotos de Santo António
Costa
25 de Março de
2017
João Miguel
Tavares
A grande conquista de António Costa em 2016 não foi o défice de
2,1% – foi ter despertado em muita gente o desejo genuíno de acreditar que
aquele défice corresponde a uma melhoria do estado do país. A maior parte dos portugueses quer crer que os 2,1% são
sustentados, reais, inteiramente merecidos, uma vitória extraordinária da
estratégia económica socialista e a prova definitiva de que o país está no
caminho certo. Quer crer que o verdadeiro diabo foi Passos Coelho e que António
Costa conseguiu melhores resultados com menos enxofre. Quer ter fé no
primeiro-ministro. Essa é, sem dúvida, a maior das suas vitórias.
A Europa, os mercados e as agências de rating continuam a não ter
qualquer confiança em Portugal – mas os portugueses, que não têm um matemático
de jeito desde Pedro Nunes, confiam nas contas do primeiro-ministro. Confiam,
por exemplo, na sua palavra quando ele garante, em resposta ao cepticismo de
Wolfgang Schäuble: “Os números são simples: 2,1% de défice, o melhor em 42 anos
de democracia, 2% de saldo primário positivo, diminuição de um ponto da dívida
líquida, estabilização da dívida bruta e começo da redução, estabilização do
sistema financeiro, criação de 118 mil postos de trabalho líquidos. Estes são
os números. E contra factos não há argumentos.”
Mas será que os números são só estes e que não há argumentos contra
tais factos? Peguemos num excerto de um artigo do
economista João Duque no Expresso da
semana passada, dedicado a tentar compreender por que mistério a diferença nas
taxas de juro a 10 anos entre Portugal e a Alemanha era de 1,85% quanto Costa
tomou posse, e hoje é de 3,85%: “A atividade económica medida através do PIB
cresceu menos em 2016 (1,4%) do que em 2015 (1,6%). O consumo interno, apesar
de um esforço grande do Governo para o promover, cresceu menos em 2016 (2,3%)
do que em 2015 (2,6%). O investimento caiu em 2016 (-0,3%), quando em 2015
tinha subido (4,5%). As exportações cresceram menos em 2016 (4,4%) do que em
2015 (6,1%). O aumento da dívida pública (aproximadamente 7 mil milhões de
euros em 2016) foi superior ao défice orçamental do ano (4,2 mil milhões de
euros), mostrando que além do adiamento de despesa ainda houve muita que não
passou pelo Orçamento.”
Dir-se-á: há números para todos os gostos, que permitem sustentar
as teses dos dois lados. Certo. Mas será
tão simples assim? É verdade que cada um pega nos números que mais lhe
interessam, conforme as suas convicções ideológicas. A esquerda agarra-se ao
défice. A direita atira-se à dívida. Mas este não é um simples jogo de soma
zero. Nos anos pré-crise, todos reconheciam que Portugal precisava de
reformas profundíssimas, em virtude do descalabro demográfico e de várias
décadas de políticas públicas insustentáveis. Ora, a discussão sobre
esta visão de futuro pura e simplesmente desapareceu, triturada por uma
obsessão pelo presente. Muito por culpa da desastrada estratégia de Passos
Coelho, cada mês de vida deste governo dá direito a bolo e soprar de velas. Por
cada número que supera as expectativas, há fogo de artifício. Costa precisa de
muito pouco para fazer a festa e – má notícia para a direita –
muitos portugueses querem festejar com ele. Daí este clima ridículo de
foguetório na frente interna quando comparado com o absoluto cepticismo na
frente externa. Lição de política que nenhum de nós deve esquecer: a
melhor receita para perpetuar um estado de graça é viver sob a permanente
ameaça de desgraça.
2º Texto: O antídoto de Marcelo
Marcelo assinalou um
consenso político que não é assumido, mas também não é contestado no dia-a-dia
da governação: o do pragmatismo. E pediu o que é decisivo: resultados.
26 de Abril de 2017,
David Dinis
Foi há uma semana, perante os seus “mestres” - como descreveu aqui no PÚBLICO o Paulo Pena - que Marcelo explicou por que resolveu
ocupar todo o espaço que conseguir - o político e o mediático.
Temos hoje "um problema de fundo” na democracia, disse
Marcelo, dividindo-o em "tempo e espaço". Um problema de tempo porque este
se acelerou, porque “os media são simplistas e criam disrupções permanentes”.
Um problema de espaço, porque os países perderam a dimensão de
“soberania" a que só se consegue responder se as instituições funcionarem.
Nesse final de manhã, numa reunião com alguns dos nomes mais
importantes da ciência política do último século, o Presidente explicou que é
por estas portas que o populismo entra: “Alimenta-se do vazio,
prometendo um regresso a um passado que não volta”; “torna-se sedutor”
quando as instituições não acompanham o novo ritmo. Daí que ele tente
preencher o espaço. E deu um exemplo: lembra-se da queda da avioneta em
Tires e de Marcelo ter ido a correr ver o acidente? "O poder político
tem de estar pronto a responder a situações como esta”, explicou ele.
Ontem, na Assembleia da República, nas cerimónias do 25 de Abril,
Marcelo voltou a preencher o espaço em branco. Depois de a esquerda ter
apontado discursos à Europa que falha, depois do PSD ter disparado contra dois
projectos “inconciliáveis” (o europeu e o eurocéptico, o do mercado livre e o
do mercado dirigido, o do PS e o das esquerdas que o apoiam no Governo), o Presidente tratou de colar as peças e anotar o exemplo
português. O bom exemplo, perante o que vemos no turbulento Ocidente.
Marcelo diferenciou alternativas e populismos. E, sem o dizer, assinalou um consenso político que não é assumido,
mas também não é contestado no dia-a-dia da governação: o do pragmatismo.
“Não trocamos o certo pelo incerto”, disse, como quem diz que o que nos une é
ainda mais do que o que nos separa.
Até agora. Mas os equilíbrios são frágeis e um político nunca
consegue preencher o espaço eternamente. ”As democracias precisam de classes médias fortes e elas estão a
desaparecer. Há que refazê-las”, dizia o
Presidente há uma semana. Ontem completou o parágrafo, virando-se directamente para o Governo e a maioria de esquerda que o
suporta: “Nestes dois anos e meio que faltam, terá
de ser maior a criação de riqueza e maior a sua distribuição”. Porque é
disso que os populismos se alimentam: da desresponsabilização, da ausência de
resultados e do enfraquecimento da classe média. Marcelo sabe-o. Isso já é uma
garantia.
3º Texto: Excerto do «Auto de Mofina Mendes ou dos Mistérios da Virgem»
(Gil Vicente)
Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz:
Pai.
Onde deixas a boiada
e as vacas, Mofina
Mendes?
Mof.
Mas, que cuidado vós
tendes
de me pagar a soldada
que há tanto que me
retendes?
Pai.
Mofina, dá-me conta tu
onde fica o gado meu.
Mof.
A boiada não vi eu,
andam lá não sei por u,
nem sei que pacigo é o
seu.
Nem as cabras não nas
vi,
samicas cos arvoredos;
mas não sei a quem ouvi
que andavam elas por i
saltando pelos penedos.
Pai.
Dá-me conta rês e rês,
pois pedes todo teu
frete.
Mof.
Das vacas morreram
sete,
e dos bois morreram
três.
Pai.
Que conta de negregura!
Que tais andam os meus
porcos?
Mof.
Dos porcos os mais são
mortos
de magreira e má
ventura.
Pai.
E as minhas trinta
vitelas
das vacas, que te
entregaram?
Mof.
Creio que i ficaram
delas,
porque os lobos
dizimaram,
e deu olho mau por
elas,
que mui poucas
escaparam.
Pai.
Dize-me, e dos
cabritinhos
que recado me dás tu?
Mof.
Eram tenros e
gordinhos,
e a zorra tinha
filhinhos
e levou-os um e um.
Pai.
Essa zorra, essa
malina,
se lhe correras
trigosa,
não fizera essa
chacina,
porque mais corre a
Mofina
vinte vezes que a
raposa.
Mof.
Meu amo, já tenho dada
a conta do vosso gado
muito bem, com bom
recado;
pagai-me minha soldada,
como temos concertado.
Pai.
Os carneiros que
ficaram,
e as cabras, que se
fizeram?
Mof.
As ovelhas reganharam,
as cabras engafeceram,
os carneiros se afogaram,
e os rafeiros morreram.
Pessival.
Paio Vaz, se queres
gado,
dá ao demo essa
pastora:
paga-lhe o seu, vá-se
embora
ou má-hora, e põe o teu
em recado.
Pai.
Pois Deus quer que
pague e peite
tão daninha pegureira,
em pago desta canseira
toma este pote de
azeite
e vai-o vender à feira;
e quiçais medrarás tu
o que eu contigo não
posso.
Mof.
Vou-me à feira de
Trancoso
logo, nome de Jesus,
e farei dinheiro
grosso.
Do que este azeite
render
comprarei ovos de
pata,
que é a coisa mais
barata
que eu de lá posso
trazer;
e estes ovos
chocarão;
cada ovo dará um
pato,
e cada pato um
tostão,
que passará de um
milhão
e meio, a vender
barato.
Casarei rica e
honrada
por estes ovos de
pata,
e o dia que for
casada
sairei ataviada
com um brial de
escarlata,
e diante o
desposado,
que me estará
namorando:
virei de dentro
bailando
assim dest’arte
bailado,
esta cantiga
cantando.
Estas cousas diz Molina
Mendes com o pote de azeite à cabeça e, andando enlevada no baile, cai-lhe, e
diz:
Pai.
Agora posso eu
dizer,
e jurar, e apostar,
que és Mofina Mendes
toda.
Pessival
E s’ela baila na boda,
qu’está ainda por
sonhar,
e os patos por nascer,
e o azeite por vender,
e o noivo por achar,
e a Mofina a bailar;
que menos podia ser?
Vai-se Molina Mendes,
cantando.
Mof.
Por mais que a dita
me enjeite,
pastores, não me
deis guerra;
que todo o humano
deleite,
como o meu pote de
azeite,
há-de dar consigo em
terra.
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