sexta-feira, 5 de maio de 2017

Tempo de Gil Vicente



Está-nos nos genes de bacoquice, isto de ir espreitando o ovo que vai sair da galinha, e aí estamos nós pendentes dos ovos que António Costa põe e que Marcelo Rebelo de Sousa, em foguetório estridente, assinala disciplinadamente, nos seus discursos sem gema que preste mas com muita clara viscosa, que até convence o articulista David Dinis. O resultado será o mesmo que a azougada Mofina Mendes sofrerá no seu baile de optimismo descuidado, na sua visão de uma felicidade utópica, demonstrativos da transitoriedade de todas as coisas, mesmo as ambições ou os prazeres humanos, Mofina encarnando assim a própria desgraça que o seu nome traduz.
Esperto, o nosso Gil Vicente, na auscultação da nossa inconsciência, bem simbolizada há tantos séculos, e há muito exibindo os seus direitos à paga, com azeite que seja, não ao cumprimento do dever de trabalhar em sintonia. Os artigos de João Miguel Tavares e de David Dinis dão disso conta, nas trapalhadas financeiras do ministro, nas justificações embrulhadas do presidente, no espreitar lânguido e submisso do povo, que espera sempre.
1º Texto:Os devotos de Santo António Costa
25 de Março de 2017
João Miguel Tavares
A grande conquista de António Costa em 2016 não foi o défice de 2,1% – foi ter despertado em muita gente o desejo genuíno de acreditar que aquele défice corresponde a uma melhoria do estado do país. A maior parte dos portugueses quer crer que os 2,1% são sustentados, reais, inteiramente merecidos, uma vitória extraordinária da estratégia económica socialista e a prova definitiva de que o país está no caminho certo. Quer crer que o verdadeiro diabo foi Passos Coelho e que António Costa conseguiu melhores resultados com menos enxofre. Quer ter fé no primeiro-ministro. Essa é, sem dúvida, a maior das suas vitórias.
A Europa, os mercados e as agências de rating continuam a não ter qualquer confiança em Portugal – mas os portugueses, que não têm um matemático de jeito desde Pedro Nunes, confiam nas contas do primeiro-ministro. Confiam, por exemplo, na sua palavra quando ele garante, em resposta ao cepticismo de Wolfgang Schäuble: “Os números são simples: 2,1% de défice, o melhor em 42 anos de democracia, 2% de saldo primário positivo, diminuição de um ponto da dívida líquida, estabilização da dívida bruta e começo da redução, estabilização do sistema financeiro, criação de 118 mil postos de trabalho líquidos. Estes são os números. E contra factos não há argumentos.”
Mas será que os números são só estes e que não há argumentos contra tais factos? Peguemos num excerto de um artigo do economista João Duque no Expresso da semana passada, dedicado a tentar compreender por que mistério a diferença nas taxas de juro a 10 anos entre Portugal e a Alemanha era de 1,85% quanto Costa tomou posse, e hoje é de 3,85%: “A atividade económica medida através do PIB cresceu menos em 2016 (1,4%) do que em 2015 (1,6%). O consumo interno, apesar de um esforço grande do Governo para o promover, cresceu menos em 2016 (2,3%) do que em 2015 (2,6%). O investimento caiu em 2016 (-0,3%), quando em 2015 tinha subido (4,5%). As exportações cresceram menos em 2016 (4,4%) do que em 2015 (6,1%). O aumento da dívida pública (aproximadamente 7 mil milhões de euros em 2016) foi superior ao défice orçamental do ano (4,2 mil milhões de euros), mostrando que além do adiamento de despesa ainda houve muita que não passou pelo Orçamento.”
Dir-se-á: há números para todos os gostos, que permitem sustentar as teses dos dois lados. Certo. Mas será tão simples assim? É verdade que cada um pega nos números que mais lhe interessam, conforme as suas convicções ideológicas. A esquerda agarra-se ao défice. A direita atira-se à dívida. Mas este não é um simples jogo de soma zero. Nos anos pré-crise, todos reconheciam que Portugal precisava de reformas profundíssimas, em virtude do descalabro demográfico e de várias décadas de políticas públicas insustentáveis. Ora, a discussão sobre esta visão de futuro pura e simplesmente desapareceu, triturada por uma obsessão pelo presente. Muito por culpa da desastrada estratégia de Passos Coelho, cada mês de vida deste governo dá direito a bolo e soprar de velas. Por cada número que supera as expectativas, há fogo de artifício. Costa precisa de muito pouco para fazer a festa e – má notícia para a direita – muitos portugueses querem festejar com ele. Daí este clima ridículo de foguetório na frente interna quando comparado com o absoluto cepticismo na frente externa. Lição de política que nenhum de nós deve esquecer: a melhor receita para perpetuar um estado de graça é viver sob a permanente ameaça de desgraça.

2º Texto: O antídoto de Marcelo
Marcelo assinalou um consenso político que não é assumido, mas também não é contestado no dia-a-dia da governação: o do pragmatismo. E pediu o que é decisivo: resultados.
26 de Abril de 2017,
David Dinis
Foi há uma semana, perante os seus “mestres” - como descreveu aqui no PÚBLICO o Paulo Pena - que Marcelo explicou por que resolveu ocupar todo o espaço que conseguir - o político e o mediático. 
Temos hoje "um problema de fundo” na democracia, disse Marcelo, dividindo-o em "tempo e espaço". Um problema de tempo porque este se acelerou, porque “os media são simplistas e criam disrupções permanentes”. Um problema de espaço, porque os países perderam a dimensão de “soberania" a que só se consegue responder se as instituições funcionarem.
Nesse final de manhã, numa reunião com alguns dos nomes mais importantes da ciência política do último século, o Presidente explicou que é por estas portas que o populismo entra: “Alimenta-se do vazio, prometendo um regresso a um passado que não volta”; “torna-se sedutor” quando as instituições não acompanham o novo ritmo. Daí que ele tente preencher o espaço. E deu um exemplo: lembra-se da queda da avioneta em Tires e de Marcelo ter ido a correr ver o acidente? "O poder político tem de estar pronto a responder a situações como esta”, explicou ele.
Ontem, na Assembleia da República, nas cerimónias do 25 de Abril, Marcelo voltou a preencher o espaço em branco. Depois de a esquerda ter apontado discursos à Europa que falha, depois do PSD ter disparado contra dois projectos “inconciliáveis” (o europeu e o eurocéptico, o do mercado livre e o do mercado dirigido, o do PS e o das esquerdas que o apoiam no Governo), o Presidente tratou de colar as peças e anotar o exemplo português. O bom exemplo, perante o que vemos no turbulento Ocidente.
Marcelo diferenciou alternativas e populismos. E, sem o dizer, assinalou um consenso político que não é assumido, mas também não é contestado no dia-a-dia da governação: o do pragmatismo. “Não trocamos o certo pelo incerto”, disse, como quem diz que o que nos une é ainda mais do que o que nos separa
Até agora. Mas os equilíbrios são frágeis e um político nunca consegue preencher o espaço eternamente. ”As democracias precisam de classes médias fortes e elas estão a desaparecer. Há que refazê-las”, dizia o Presidente há uma semana. Ontem completou o parágrafo, virando-se directamente para o Governo e a maioria de esquerda que o suporta: “Nestes dois anos e meio que faltam, terá de ser maior a criação de riqueza e maior a sua distribuição”. Porque é disso que os populismos se alimentam: da desresponsabilização, da ausência de resultados e do enfraquecimento da classe média. Marcelo sabe-o. Isso já é uma garantia.

3º Texto: Excerto do «Auto de Mofina Mendes ou dos Mistérios da Virgem» (Gil Vicente)
Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz:
Pai.
Onde deixas a boiada
e as vacas, Mofina Mendes?
Mof.
Mas, que cuidado vós tendes
de me pagar a soldada
que há tanto que me retendes?
Pai.
Mofina, dá-me conta tu
onde fica o gado meu.
Mof.
A boiada não vi eu,
andam lá não sei por u,
nem sei que pacigo é o seu.
Nem as cabras não nas vi,
samicas cos arvoredos;
mas não sei a quem ouvi
que andavam elas por i
saltando pelos penedos.
Pai.
Dá-me conta rês e rês,
pois pedes todo teu frete.
Mof.
Das vacas morreram sete,
e dos bois morreram três.
Pai.
Que conta de negregura!
Que tais andam os meus porcos?
Mof.
Dos porcos os mais são mortos
de magreira e má ventura.
Pai.
E as minhas trinta vitelas
das vacas, que te entregaram?
Mof.
Creio que i ficaram delas,
porque os lobos dizimaram,
e deu olho mau por elas,
que mui poucas escaparam.
Pai.
Dize-me, e dos cabritinhos
que recado me dás tu?
Mof.
Eram tenros e gordinhos,
e a zorra tinha filhinhos
e levou-os um e um.
Pai.
Essa zorra, essa malina,
se lhe correras trigosa,
não fizera essa chacina,
porque mais corre a Mofina
vinte vezes que a raposa.
Mof.
Meu amo, já tenho dada
a conta do vosso gado
muito bem, com bom recado;
pagai-me minha soldada,
como temos concertado.
Pai.
Os carneiros que ficaram,
e as cabras, que se fizeram?
Mof.
As ovelhas reganharam,
as cabras engafeceram,
os carneiros se afogaram,
e os rafeiros morreram.
Pessival.
Paio Vaz, se queres gado,
dá ao demo essa pastora:
paga-lhe o seu, vá-se embora
ou má-hora, e põe o teu em recado.
Pai.
Pois Deus quer que pague e peite
tão daninha pegureira,
em pago desta canseira
toma este pote de azeite
e vai-o vender à feira;
e quiçais medrarás tu
o que eu contigo não posso.
Mof.
Vou-me à feira de Trancoso
logo, nome de Jesus,
e farei dinheiro grosso.
Do que este azeite render
comprarei ovos de pata,
que é a coisa mais barata
que eu de lá posso trazer;
e estes ovos chocarão;
cada ovo dará um pato,
e cada pato um tostão,
que passará de um milhão
e meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada
por estes ovos de pata,
e o dia que for casada
sairei ataviada
com um brial de escarlata,
e diante o desposado,
que me estará namorando:
virei de dentro bailando
assim dest’arte bailado,
esta cantiga cantando.
Estas cousas diz Molina Mendes com o pote de azeite à cabeça e, andando enlevada no baile, cai-lhe, e diz:
Pai.
Agora posso eu dizer,
e jurar, e apostar,
que és Mofina Mendes toda.
Pessival
E s’ela baila na boda,
qu’está ainda por sonhar,
e os patos por nascer,
e o azeite por vender,
e o noivo por achar,
e a Mofina a bailar;
que menos podia ser?

Vai-se Molina Mendes, cantando.
Mof.
Por mais que a dita me enjeite,
pastores, não me deis guerra;
que todo o humano deleite,
como o meu pote de azeite,
há-de dar consigo em terra.


Nenhum comentário: