sábado, 30 de novembro de 2019

“Alice no País das Maravilhas”


O comentário de Joaquim Almeida justifica este meu título.

A história do Livre explicada às criancinhas (que votaram naquilo) /premium
Sexta-feira não houve novidades sobre o menino Rui, a menina Joacine e o almocreve, o que não augura nada de bom, pelo menos no que toca ao divertimento do povo.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 30 nov 2019
Era uma vez o Rui, um menino inteligente que repetia na internet as coisas inteligentes que o professor doutor Louçã dizia na televisão. De tanto repetir coisas inteligentes, o menino Rui ganhou um concurso do tipo “Quem Quer Ser Milionário?” ou “Preço Certo” e foi para Bruxelas, que é um lugar distante onde pessoas inteligentes como o menino Rui decidem coisas para melhorar as vidas de todos nós. Além de inteligente, o menino Rui é generoso, e deu um bocadinho do salário para ajudar outros meninos a serem tão inteligentes quanto ele. Por azar, um dia o menino Rui zangou-se com o professor doutor Louçã e deixou de ser sócio da associação a que ambos pertenciam. Porém, o menino Rui não quis desapontar os outros meninos e manteve o emprego e o salário.
Quando o emprego acabou, o menino Rui ficou aborrecido e inventou uma associação só dele para continuar a espalhar dinheiro e ser útil à humanidade. Desgraçadamente, os azares sucederam-se, e o menino Rui perdeu todos os concursos seguintes, e as respectivas estadias em Bruxelas, Lisboa ou até nos arredores de Torre de Moncorvo. Após vários concursos perdidos, a associação do menino Rui, que é o menino Rui,  lembrou-se de mandar aos concursos uma criatura que não fosse o menino Rui. Escolheram a menina Joacine, que é da Guiné e que, sempre que começa a falar, desata a fazer barulhos esquisitos, às vezes iguaizinhos aos de um helicóptero, às vezes parecidos com um modem de 1995. O primeiro resultado é que nunca ninguém ouviu o que ela quer dizer. O segundo resultado é que a estratégia funcionou em cheio, e a menina Joacine ganhou um concurso para ficar na Assembleia da República, que é um lugar onde pessoas inteligentes como o menino Rui decidem coisas para melhorar as vidas de todos nós. Não sei se a menina Joacine é inteligente porque não sei se imitar helicópteros é sinal de inteligência.
De qualquer maneira, burra é que a menina Joacine não é: logo no primeiro dia de trabalho, conseguiu um almocreve para lhe carregar a bolsa. Toda a gente se riu do saiote que o almocreve vestia, mas os senhores educados informaram o povo de que o saiote é moderno. Quando o meu vizinho Armando saiu à rua em pelota e de galochas, não houve quem explicasse à ambulância do INEM que o Armando estava apenas a seguir as tendências da moda. Por causa disso, o infeliz vive no Magalhães Lemos vai para seis meses.
Um só mês bastou para estragar a harmonia entre o menino Rui e a menina Joacine, e entre o almocreve da menina Joacine e a Terra em peso. A princípio, tudo corria bem. O menino Rui festejou aos gritos a vitória da menina Joacine, que arranjou uma hérnia de muito se baixar para abraçá-lo. A menina Joacine passeava jovialmente pelo parlamento, a denunciar o racismo do país que a elegeu deputada. E o almocreve visitava o programa da Cristina – ou do Goucha, um desses que o meu vizinho Armando via antes do internamento e continua a ver depois. De repente, a catástrofe.
A catástrofe começou com uma proposta do PCP para o parlamento criticar Israel. Dado que a associação do menino Rui é a favor dos gays, a menina Joacine tinha obviamente de defender a Palestina, que pega nos gays e os enfia na cadeia ou no cemitério. Ora a menina Joacine confundiu-se com tamanha clareza programática e fez uns telefonemas ao “grupo de contacto” (não estou a brincar: eles estão). Visto que não a atenderam, ou julgaram que a rede estava com cortes, a menina Joacine preferiu abster-se. O menino Rui ficou fulo com a menina Joacine. A menina Joacine ficou fula com o menino Rui. O almocreve vestiu um trapinho à pressa e sentou-se ao twitter.
Vamos por partes. O menino Rui, que é rancoroso, convenceu os amiguinhos dele a correr com a menina Joacine da associação. A menina Joacine, que é danada, jurou que não saía da associação nem do parlamento. De pirraça, entrou justamente no parlamento sem falar a uma jornalista que a maçava com questões. O almocreve, com traje indefinido, chamou um GNR para escoltar o sagrado recato da menina Joacine. De seguida, negou tudo e, para pôr água na fervura, afirmou que os jornalistas padecem de “desordens mentais” por culpa do “mercantilismo” ou assim. Não satisfeito, o almocreve, que não sabe escrever em português e era leitor de português, explicou que a “cultura de trabalho” da menina Joacine é “uma cultura de descanso, no sentido intelectual do termo.” No sentido intelectual do termo, o almocreve não regula bem. Algures no meio destes imbróglios, a menina Joacine falhou os prazos para entregar uma proposta de alteração da lei da nacionalidade, decerto porque cumpri-los colidia com a cultura do descanso.
Hoje, sexta-feira, não houve novidades sobre o menino Rui, a menina Joacine e o almocreve, o que não augura nada de bom, pelo menos no que toca ao divertimento do povo. Entretanto, um menino fundador da associação fundada pelo menino Rui anunciou que ia embora, notando que a decisão da saída, suponho que ao contrário da entrada, “não foi fácil nem leviana”. Um segundo menino fundador da associação fundada pelo menino Rui confessou sentir “vergonha” da “telenovela”. Eu não sinto vergonha: sinto falta. Mais, por favor.

COMENTÁRIO
Joaquim Almeida: Delicioso! 


Eternidade



Não, nunca mudaremos, os problemas são os de sempre, a impotência financeira, a inapetência laboral, que resultam, acima de tudo, da imprudência educacional… Desconcertante. Sem conserto. Por direito próprio. Sem amor próprio.

EDITORIAL
Mário Centeno contra o resto do Governo
Polícias, médicos, militares, sindicatos, professores e todos os demais interesses corporativos espreitam o evoluir deste conflito para perceber até que ponto a intransigência de Centeno é inamovível e a blindagem do Governo às pressões externas impenetrável.
MANUEL CARVALHO
PÚBLICO, 29 de Novembro de 2019

O poderoso ministro das Finanças, Mário Centeno, não está disposto a dar ao menos poderoso ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, os 80 milhões de euros que este julga serem indispensáveis para acudir às necessidades das forças de segurança. O ministro da Ciência e do Ensino Superior, Manuel Heitor, quer ser mais generoso na concessão de bolsas a estudantes universitários, mas condiciona as suas ambições à disponibilidade de fundos da União Europeia.
As eleições do ano em curso foram pagas por fundos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, porque no orçamento do MAI não havia dinheiro para esse fim. Junte-se a este rol de problemas retratados na edição desta quinta-feira do PÚBLICO os que permanecem há meses em aberto: carências graves nos tribunais, atrasos nos pagamentos na Saúde, falta de consumíveis básicos nas escolas, salários desactualizados na função pública, problemas graves e de infra-estruturas e constatemos a realidade: esta legislatura vai ser difícil e muito provavelmente tumultuosa.
O Presidente da República fez o aviso no exacto dia em que deu posse ao novo Governo de António Costa. “Não terá uma tarefa fácil”, disse Marcelo Rebelo de Sousa. E explicou porquê: porque “não há recursos para tantas e tamanhas expectativas e exigências” dos portugueses. Sem meios capazes de acudir a todas as necessidades, a todos os problemas acumulados ao longo de anos, e, principalmente, às exigências dos cidadãos que todos os dias recebem notícias sobre o suposto bom estado das contas públicas, o Governo, recordava ainda o Presidente, vai ter de encontrar a sua legitimidade “na escolha, na hierarquização, na concentração e na clareza das respostas que entender ser possível dar”. Porque não vai ser possível responder a tudo e a todos.
Governar é fazer escolhas e a chave dos próximos orçamentos vai estar precisamente nas escolhas. Mário Centeno fará o seu dever e tentará a todo o custo manter as contas públicas sãs e a credibilidade externa do país intacta. Mas, já se percebeu, não vai impor as suas regras da forma imperial como o fez até agora. Os outros ministros dificilmente aceitarão ser bombos da festa, para que ele continue a ser o “Ronaldo” das Finanças.
Para manter o Governo coeso, António Costa vai ter de arbitrar muitos mais conflitos e, em última instância, de assumir a palavra final. Polícias, médicos, militares, sindicatos, professores e todos os demais interesses corporativos espreitam o evoluir deste conflito para perceber até que ponto a intransigência de Centeno é inamovível e a blindagem do Governo às pressões externas impenetrável. O que acontecer até à Primavera será crucial para saber o que espera o país no médio prazo.

COMENTÁRIOS
danielcouto1100: Assim como Portugal precisa de dois planetas para ser sustentável, precisa muito mais do que dois orçamentos em cada ano para satisfazer as "legitimas necessidades e anseios". A questão é simples: Não há dinheiro! Como nas famílias ou vivemos com o que temos ou fazemos dívidas até sermos insolventes. Mas o que aborrece neste problema é ter de haver dinheiro para pagar ou tapar as famosas imparidades de muitos que encheram os bolsos nos offshores.
JonasAlmeida, 29.11.2019:  Quem acha que os governos deviam ser dirigidos por ministérios da finanças devia dar uma olhada no estudo do euro por Stiglitz: é o que tipifica os arranjos coloniais. A regra não se aplica é claro às metrópoles - por ex. ninguém se atreveria a exigir ao ministério da educação alemão que cobrasse propinas às licenciaturas ou mestrados em instituições de ensino superior nesse país
TM 29.11.2019: Pois não. E também ninguém se atreve a exigir isso a Portugal que eu saiba! Essa paranóia da metrópole versus periferia já não pega.
Espectro, 29.11.2019 : Problema eterno: Recursos escassos e "necessidades" infinitas. O necessidades foi entre aspas porque na verdade não estamos a falar de verdadeiras necessidades, pelo menos no sentido mais comum de necessidades vitais, urgentes, daquelas de que dependa a a sobrevivência ou até a qualidade de vida. São necessidades psicológicas (um carro mais caro, um televisor com mais polegadas), porque em Portugal, e na UE, já ninguém passa fome ou morre à porta do hospital. E a ladainha das corporações já é quase tão velha como a ladainha dos santos da "santa" igreja católica apostólica e romana. Portanto, pergunto: Alguém sabe o que diz a ladainha da ICAR?! O mesmo vai acabar por acontecer à ladainha das corporações. Coisas ridículas e obscuras. LOL
Carlos Paiva, 29.11.2019: A actual maioria é muito boa a discutir eutanásia, casamentos gays, barrigas de aluguer etc etc, mas fazer crescer a economia para financiar os serviços públicos e aumentar a qualidade de vida dos portugueses é que é o diabo!!! Os portugueses só vão acordar quando ganharem menos que os romenos e os búlgaros!!!!
Nelson Sousa, 29.11.2019: É verdade Carlos. E tenho dúvidas de que acordem quando ganharem menos do que os romenos ou búlgaros. Isso já aconteceu com os checos, com os eslovacos, com os malteses e ninguém acordou.
Centeno faz o trabalho dele.  É muito simples. Não se pode gastar o que não se tem, o que não se produz. Se o fizermos vamos ter de pagar mais tarde, com juros. A única coisa a discutir é como gastar, como distribuir, porque o limite está definido.
Antonio Leitao, 29.11.2019:Este tipo de análises, que seguem a mesma converseta de sempre, são tão inócuas quanto aborrecidas. O problema não é Centeno, a credibilidade externa do país ou as expectativas dos portugueses. O problema é a zona euro: as suas regras absurdas, os desequilíbrios constantes que gera e a falta de alternativas na esfera europeia. O resto é conversa já consumida e regurgitada tantas vezes...
Nelson Sousa, 29.11.2019: Nós sabemos que o problema é a zona euro. Aliás o problema são sempre os outros. As 2 intervenções do FMI antes de aderimos ao euro foram culpa do Salazar. Em irresponsabilidade sempre fomos campeões.
TM 29.11.2019 : A culpa é sempre dos outros , não é? Os outros países do Euro estão bem mas só Portugal é que está mal. Porque será? Em vez de ter um Estado eficiente e cortar onde deve ser cortado, não! Andaram a acumular dívida durante anos e agora não sabem como pagá- la nem como gerir. Ém que é que acabar com o Euro ajudava a má gestão do Estado Português?
Antonio Leitao, 29.11.2019: Fim dos mecanismos de ajustamento cambial e política monetária autónoma. Mas é como bater a mortos esta conversa. É preciso ler mais do que estas crónicas para perceber a dinâmica da zona euro, principalmente entre centro e periferia. Pensar custa, mas é preciso.
TM, 29.11.2019: Pensar custa e nota-se que pensar não é o forte do António. O ajustamento cambial não está nas mãos dos governos. Pelo menos nos países desenvolvidos. E também não é a politica monetária. A Bulgária e a Roménia têm ambos politica monetária e sabe como funcionam os serviços públicos lá? A Holanda e o Luxemburgo estão no Euro e sabe como funcionam os serviços públicos lá?


Frases realmente pessimistas


Mas de um saber cáustico e tão certeiro, hoje como ontem. Salles da Fonseca seleccionou-as, no mesmo sentimento de humor “vivido” como o que, afinal unia os dois amigos, Nietzsche e Shopenhauer

HUMOR DE NIETZSCHE
  HENRIQUE SALLES DA FONSECA
  A BEM DA NAÇÃO,  29.11.19

In 3ª Consideração Intempestiva – Schopenhauer como educador

Temos de seguir um curso um pouco ousado e perigoso nesta vida, em especial porque, aconteça o que acontecer, estamos destinados a perdê-la.
* * *
O artista está relacionado com os amantes da sua arte como um canhão pesado com um bando de pardais.
* * *
O Estado nunca tem qualquer serventia para a verdade como tal, apenas para a verdade que lhe é útil.
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O Estado quer que os homens lhe prestem o mesmo culto que anteriormente prestavam à Igreja.

COMENTÁRIOS:
 Francisco G. de Amorim  30.11.2019Só mais uma do filósofo: "Há livros tão ligeiros que parece que dançam; são os mais difíceis de escrever"!


SNS



Mais um texto esclarecedor de Alexandre Homem Cristo que nos informa seriamente sobre a “qualidade” dos Serviços de Saúde e sobre as manobras dos principais responsáveis pela sua degradação. Ler para reter. Alguns comentadores o apoiam, com igual hombridade.
Saúde: a geringonça tem as mãos sujas /premium
Com o SNS à beira do colapso, importa fixar isto: os que à esquerda hoje se posicionam na primeira fila para salvar o SNS são os mesmos que passaram os últimos 4 anos a autorizar o seu estrangulamento.
ALEXANDRE HOMEM CRISTO
OBSERVADOR, 28 nov 2019
Afirmar que o SNS está à beira do colapso é insistir numa evidência que todo país já constatou. É preciso salvá-lo, como tanto por aí se ouve? Sim, será. Mas, para o salvar, será antes forçoso perceber o que fez o SNS aproximar-se tanto do abismo. É essa reflexão política que PS-BE-PCP estão a bloquear, fazendo um spin de apelos pela salvação dos serviços públicos de saúde e sacudindo fantasmas contra a direita. Há dois dias, foi Francisco Louçã a fazer o número de contorcionismo. Antes, do lado do PS, foi a vez de Ana Catarina Mendes e Carlos César. Desde há um ano, outros dirigentes do BE têm feito o exercício. Se o cinismo matasse, caíram redondos no chão, pois só a cegueira ideológica faria alguém cair na narrativa de ocasião: os dados conhecidos sobre a queda do SNS mostram a profundidade das responsabilidades do PS (no governo) e da esquerda parlamentar (no apoio ao governo) nos últimos 4 anos.
Primeiro, essas responsabilidades são financeiras. De acordo com uma auditoria do Tribunal de Contas, a dívida do SNS a fornecedores e outros credores aumentou 51% entre 2014 e 2017 – de 1,9 mil milhões para 3 mil milhões de euros. O facto é particularmente preocupante se se tiver em conta que, entre 2011 e 2014, se havia conseguido reduzir a dívida a fornecedores de 3615 milhões para 1930 milhões. Ou seja, com o PS, observou-se a uma espectacular regressão, porque o agravamento da dívida teve particular incidência na passagem de 2016 para 2017, aumentando 21,4% num só ano. Apontou o Tribunal de Contas, ainda, que a raiz do problema estava na diminuição de transferências do Estado para o SNS. Repare-se: no triénio 2015-2017 foi transferido menos 6,1% do dinheiro que entrou no SNS durante o triénio 2012-2014 – com a particularidade de, nesse período, estar em curso o programa da troika.
O governo contestou estes dados, informando sobre a sua aposta em reduzir a dívida a fornecedores e de lançar um reforço orçamental no SNS para 2018 e 2019. O balanço do cumprimento desses compromissos será possível em breve, nomeadamente observando as verbas executadas no sector (por exemplo, há dias constatou-se que a dívida aos fornecedores continua a ser um desafio, mesmo após várias injecções de financiamento). Mas, mesmo aceitando essas intenções, isso apenas significaria que 2018 e 2019 serviriam para corrigir os erros de 2016 e 2017. Erros cujas consequências se arrastam e se manifestam repetidamente, seja através do encerramento de serviços de urgência, seja através de médicos que pedem escusas de responsabilidades (não têm meios para assegurar os cuidados adequados aos seus doentes), seja através dos alertas do Tribunal de Contas sobre a (in)sustentabilidade financeira da ADSE (em vias de voltar a ter de ser financiada pelo Orçamento de Estado). Olhe-se de onde se olhar, é impossível deixar de reconhecer que o SNS foi financeiramente estrangulado nos últimos anos — e que, consequentemente, quem aprovou os Orçamentos de Estado respectivos (PS-BE-PCP-PEV) na Assembleia da República tem a sua quota de responsabilidade.
Segundo, as responsabilidades de PS e de BE-PCP-PEV são também do domínio das políticas públicas: nestes últimos anos, o SNS permaneceu estagnado e em gestão corrente. Não se conheceu uma única visão reformista para modernizar o sector — exceptuando-se, talvez, uma disponibilização mais transparente dos dados de desempenho do SNS. É inegável que a situação do SNS é problemática há muito tempo, com desafios diagnosticados há vários anos. De resto, é de elementar bom-senso sublinhar que o envelhecimento da população portuguesa representa uma pressão crescente sobre os serviços de saúde – e que, inevitavelmente, as suas falhas se irão expandir se não se prepararem respostas adequadas.
Não foi, contudo, esse o debate estratégico que animou as hostes políticas nos últimos anos. Pelo contrário, a prioridade política dos partidos à esquerda foi a revisão da Lei de Bases da Saúde, num acto de propaganda alinhado com a comemoração dos 40 anos do SNS. E, nesse processo de revisão, a bandeira da esquerda parlamentar foi a ruptura com o sector privado, visando as PPP na saúde — por sinal, com excelentes indicadores de desempenho. Ou seja, em vez de preparar o futuro, a grande prioridade da esquerda parlamentar foi retirar da esfera pública os hospitais privados que têm servido bem a população e que tanto dinheiro têm poupado ao Estado — não só piorando a qualidade dos serviços prestados à população, como aumentando os encargos do Estado com esses cuidados. É certo que a ambição não foi cumprida na sua plenitude, mas esse caminho nefasto começou a ser percorrido.
Ora, o resultado destas opções (orçamentais e não-reformistas) no terreno foi um SNS de funcionamento débil e com indicadores de desempenho no vermelho. Dos dados disponíveis, sabe-se que, em 2018, os tempos de espera para consultas e cirurgias pioraram muito face a 2017, e nos vários graus de prioridade — para os “não-urgentes”, tal aconteceu também porque o governo decidiu redefinir para baixo os tempos máximos de espera, mas não deu meios aos hospitais para os cumprir. E, de resto, nem os dados são inteiramente fiáveis, visto que o Ministério da Saúde é suspeito de ter executado uma limpeza administrativa das listas de espera — um alerta do Tribunal de Contas (2017) acerca da qual escrevi aqui e que, mais recentemente, foi avaliado por um grupo de trabalho, que acusou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) de bloquear a informação necessária para assim impedir a avaliação do impacto dessa exclusão de doentes das listas.
Sim, fazer o diagnóstico do que está a corroer SNS é crucial para o melhorar — e todos esperamos que o próximo Orçamento de Estado responda a essas necessidades com seriedade. Mas o diagnóstico político é igualmente indispensável e nenhum exercício de retórica politiqueira poderá apagar as responsabilidades de PS-BE-PCP-PEV no actual estado do SNS. É, claro, elementar apontar o dedo ao PS, no governo, porque é o primeiro responsável. Mas o PS não fez nada disto sozinho. Os que à esquerda hoje se posicionam na primeira fila para salvar o SNS são, precisamente, os mesmos que passaram os últimos 4 anos a autorizar o seu estrangulamento. Por mais que sacudam responsabilidades, as suas mãos permanecerão sujas.
COMENTÁRIOS
Ana Brito: O PS gere o país como um motel de beira de estrada: entra quem quer, faz-se dinheiro com tudo, o dinheiro entra aos rodos, mas para os mesmos. Quando desaparece, só fica terra queimada.
Maria Carmo: Excelente artigo. A esquerda miserável apoiou todos os orçamentos e cativações que levaram a esta tristeza. O sector privado não tem falta de médicos por uma razão simples: paga o que é justo!
Ana Brito: O país está a ser governado como um bordel: entra quem quer, ganha-se dinheiro com tudo, não se salvará ninguém!
Carlos Chaves: Caro Alexandre obrigado pelo seu artigo, por enquanto parecem só números o pior é quando esses números começarem a revelar o agravamento dos indicadores de mortalidade (e já começaram), do acesso aos cuidados de saúde, de diagnóstico, de medicação… no fundo de atraso no progresso que se quer na nossa sociedade. Enquanto nós pioramos, outros melhoram e o fosso não para de aumentar. São os resultados que a esquerda tem para apresentar!           
Stra. Anabela Faísca: Adianta muito estes artigos a criticar o que está mal, quando antes os mesmos criticavam ainda mais quem queria reformar o país e tornar mais transparentes as instituições.
Leopoldo Palha: Não é só na saúde, o mesmo se passa nos transportes e na educação.
A concordância com as cativações, a canalização do dinheiro para "seu público" (leia-se funcionários públicos), fazem do BE e do PCP cúmplices de tudo o que está a acontecer e não virgens ofendidas do estado capitalista, como gostam tanto de fazer.
José Montargil: O SNS tornou-se numa maldição para os portugueses! Tem decaído a olhos vistos. Em plena crise, em 2012 e 2013, fui variadíssimas vezes como acompanhante a hospitais públicos e posso garantir que os doentes tinham todos os cuidados que os médicos consideravam na altura necessários. Nunca percebi que algum tratamento ou operação não eram feitos para evitar despesas. Em 2019 é completamente o inverso. Os doentes passam mal porque acima de tudo há que evitar gastos. Não se fazem operações para não gastar dinheiro em material. Não foram os médicos nem os enfermeiros que mudaram, pois continuam os mesmos. Foi a política desgraçada que esta esquerda sinistra tem feito na Saúde e que os doentes ficam em último lugar. Este governo, esta política por ele desenvolvida é criminosa. O orçamento de Portugal é completamente manipulado em função de interesses partidários, tendo em consideração apenas motivos e crenças políticas. Portugal está entregue a políticos oportunistas que apenas pretendem obter dinheiro, poder à custa dos doentes que são os contribuintes, os que pagam esta política de terra queimada.
Maria Mateus: Se isto fosse no tempo de P Coelho havia manifestações de rua e protestos à porta dos hospitais.  Mas, com a ajuda conivente de uma CS amestrada, tenta-se varrer todos os males para debaixo do tapete.  Aposto que ainda há gente a dizer que a culpa é do Passos Coelho. Gente  hipócrita e sem vergonha.  Mas temos que reconhecer que os Portugueses que votaram nesta corja (e também os que não se deram ao trabalho de votar) têm muita culpa nisto.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Eu não quero. Mas acredito.



É apenas uma resposta a um comentário sobre o texto de José Manuel Fernandes a respeito do posicionamento de Mário Centeno dentro do Governo. Mas julgo que ainda a procissão vai no adro e nem os andores nos vão salvar. José Manuel Fernandes não é o único pessimista na questão dos dinheiros da nação, de resto. Uma geringonça mal atamancada não pode deixar de ruir. Mas quem dera que o comentador Conde do Cruzeiro tivesse razão.
Não há dinheiro. Qual das três palavras não percebeu? /premium
Mário Centeno pertence ao passado, António Costa já começou a descartá-lo. Ambos sabem que não há mesmo dinheiro para as expectativas que criaram, mas um vai-se embora mal possa, o outro sabe-se lá.
JOSÉ MANUEL FERNANDES
OBSERVADOR, 29 nov 2019
Poucos dias depois das eleições do passado mês de Outubro o primeiro-ministro foi pagar uma promessa a um café da Margem Sul do Tejo. Em campanha tinha garantido lá voltar se ganhasse pois as empregadas prometeram votar nele – e por isso voltou, com as televisões atrás, para que pudessem ouvi-las dizer que antes eram eleitoras do PSD mas agora tinham votado PS. Enquanto Costa beberricava a sua bica, ela agarravam-se a ele para lhe arrancar outra promessa: a de que conservasse Mário Centeno no Governo. Costa tentou prometer sem se comprometer, e hoje já todos percebemos porquê: este Governo já não é de Mário Centeno, ele já não é a mais valia para falar das “contas certas”, ele é o empecilho que só atrapalha e contra quem já se colocam notícias nos jornais.
Na hierarquia do Executivo, o “Ronaldo das Finanças” passou a ser apenas o quarto entre quatro ministros de Estado, uma óbvia despromoção até porque para primeiro lugar passou o ministro da Economia, Siza Vieira, e à sua frente também está uma ministra novata e que tem apenas funções de coordenação política, Mariana Vieira da Silva. Uma humilhação, um sinal de que as relações entre António Costa e o seu homem do cofre já conheceram melhores dias. Muito melhores dias.
Até porque se imagina – eu até diria: se sabe – que por estes exactos dias Mário Centeno deve andar a repetir aos seus colegas de Governo (e agora são muito mais os colegas de Governo) aquilo que um dia Vítor Gaspar teve de dizer alto e bom som aos seus pares: “Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que não percebeu?”.
O episódio que já transpirou para os jornais – o braço de ferro com Eduardo Cabrita sobre o reforço orçamental de 80 milhões para pagar às forças de segurança – é apenas um sinal de como as contas de Centeno são cada vez mais impossíveis. Impossíveis de fazer e impossíveis de explicar.
Reparem só neste paradoxo. Na concertação social o Governo propôs que os patrões do sector privado dessem aos seus trabalhadores aumentos superiores à soma da inflação e dos ganhos de produtividade, avançando com 2,7% para 2020. Ao mesmo tempo, à mesa das negociações com os trabalhadores da Administração Pública, o que é que esse exacto Governo está a propor? Que em vez de considerar a inflação prevista para 2020 (1,6%), se tenha como referência para os aumentos a inflação de 2019 (0,4%).
Quem me costuma ler sabe que não irei defender que o Estado, com os impostos de nós todos, pague aos funcionários públicos aquilo que não pode pagar, tal como sabe que denunciei vezes sem conta os privilégios relativos dos trabalhadores do Estado por comparação com os trabalhadores do sector privado. Mas não deixo de ficar boquiaberto com o descaramento de querer que os patrões suportem nas suas empresas aumentos de 2,7% em 2020 quando, no Estado, Mário Centeno diz que só pode pagar 0,4%.
E porque que é que só pode pagar 0,4%? Porque ao contrário da propaganda não houve nenhum milagre de “consolidação das finanças públicas”. Eu sei que este ano deveremos ter défice zero, ou perto disso, mas importa saber como é que lá chegámos para percebermos a ilusão que nos venderam.
Primeiro, o ponto de partida era um défice de 3%. Ou seja, Centeno teve de cortar três pontos percentuais no défice, e ainda bem que o fez. Mas o governo anterior teve de trazer o défice de 9% para 3%, ou seja, cortou seis pontos percentuais, o dobro.
Depois, dois dos três pontos percentuais que Centeno cortou qualquer um cortaria, porque decorreram directamente das políticas do Banco Central Europeu: o Tesouro paga em juros o equivalente a menos 1,4 p.p. e o Orçamento recebe em dividendos e em IRC do Banco de Portugal mais 0,5 p.p. do que recebia há quatro anos. Só estes efeitos financeiros representaram dois terços da nossa consolidação orçamental. O resto veio do crescimento económico e, sobretudo, da descida do desemprego.
O que é que vai acontecer daqui para a frente? Os juros já não podem descer mais. O desemprego muito dificilmente diminuirá algo que se veja. O crescimento económico está a arrefecer. E entretanto houve alguns travões à despesa pública, como as progressões nas carreiras, que foram soltos.
Não surpreende pois que o Ministério das Finanças só possa estar a dizer-se: “Não há dinheiro”.
E, no entanto, tem de haver dinheiro. Pelo menos tem de, politicamente, haver algum dinheiro.
É possível enganar alguns todo o tempo, é possível enganar todos algum tempo, não é possível enganar todos o tempo todo. Na legislatura anterior já estávamos a chegar àquela fase em que uma parte do “todos” estava a ser voluntariamente cega, e nessa sua cegueira voluntária fingia que não via a dimensão das cativações, fingia que não reparava que todos os anos aprovava Orçamentos de Estado com planos de investimento público que depois não se concretizavam, fingia que umas “conquistas” simbólicas escondiam a austeridade com outro nome.
Esse tempo acabou e agora, no Parlamento, o Governo vai ter oposição à direita e oposição à esquerda. O último debate quinzenal foi disso um bom indicativo: na velha geringonça tiraram-se as luvas de pelica e calçaram-se as luvas de boxe.
Mas a política parlamentar ainda é o menos. O pior é mesmo a realidade, a dura realidade, essa coisa terrível que insiste em saltar todos os dias para os jornais, para as rádios e para as televisões.
O ministro Cabrita pede 80 milhões para as polícias com medo do deputado Ventura? E quanto estará a pedir a ministra Temido agora que já não há forma de esconder a dramática degradação do SNS, agora que já não se consegue fazer o número de culpar os privados, agora que todos os dias há mais uma urgência a fechar, mais uma lista de espera a rebentar, mais uma equipa médica a demitir-se, mais uma greve anunciada?
No SNS não faltam dezenas de milhões – faltam centenas de milhões.
E que dirá Centeno ao seu ambicioso colega Pedro Nuno Santos? Ele não pode continuar a fazer várias cerimónias de lançamento da mesma obra, nem a justificar outra vez mais outro atraso ou suspensão nos investimentos rodoviáriosIsto sem esquecer que algures terão de estar os cheques para os passes sociais.
Eu podia continuar a fazer listas, mas basta pensar que os diferentes ministérios vão ter de dar conta dos seus recados só com mais um por cento nos seus orçamentos, e sabendo o que a todos foi prometido, ou as expectativas que por aí andaram a ser criadas, para perceber que não é difícil prever borrasca.
Claro que há sempre os impostos, e já aprendemos à nossa custa duas coisas. Primeiro, que o que Costa dá com uma mão tira com a outra (entre 2016 e 2018, a redução do IRS valeu cerca de mil milhões de euros, exactamente o mesmo que subiram os impostos indirectos, sobretudo o imposto sobre os combustíveis). Vem aí mais pancada fiscal, já todos percebemos.
Depois que, no fim do dia, ou no fim do ano, quando vamos apurar as contas, chegámos sempre a um valor record de carga fiscal. Mesmo com cativações, pouco investimento e maus serviços públicos, este Estado sai muito caro aos portugueses – sai cada vez mais caro.
Centeno sabe disto tudo e sabe que não há mais milagres. Pelo contrário. O que vai haver é mais gente a resistir aos seus “não, não e não”. Sendo que, com a pressão política e social a aumentar – não há nada pior do que expectativas criadas mas não correspondidas –, vai haver nervosismo no PS. Um nervosismo que já é vocal — basta ouvir o que já disseram Carlos César e Ana Catarina Mendes.
Falta saber como irá António Costa gerir este ambiente – um ambiente onde, pela primeira vez, os ventos não soprarão a seu favor. Se tivesse de apostar eu diria que, à pergunta “Não há dinheiro. Qual destas três palavras é que não percebeu?”, ele acabará por ser o primeiro a responder: “As três, não percebi as três”.

COMENTÁRIO
Conde do Cruzeiro: Na hierarquia do Executivo, o “Ronaldo das Finanças” passou a ser apenas o quarto entre quatro ministros de Estado, uma óbvia despromoção até porque para primeiro lugar passou o ministro da Economia, Siza Vieira, e à sua frente também está uma ministra novata e que tem apenas funções de coordenação política, Mariana Vieira da Silva. Uma humilhação, um sinal de que as relações entre António Costa e o seu homem do cofre já conheceram melhores dias. Muito melhores dias. Esta é uma opinião de um jornalista criativo. Que já várias vezes nos brindou com factos irreais. Por esse motivo acredita quem quiser.

É apenas uma resposta a um comentário sobre o texto de José Manuel Fernandes a respeito do posicionamento de Mário Centeno dentro do Governo. Mas julgo que ainda a procissão vai no adro. E nem os andores nos vão salvar. 


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Cruzes, credo!



Estávamos as duas – a nossa amiga e eu, embevecidas, pendentes do relato que a minha irmã nos fazia de um telefonema que fizera a uns amigos ultimamente muito renhidos na devoção a Deus, pois rezam o terço, de manhã, à noite e não sei se em mais alguma hora do dia, além das missas. A minha irmã contava que telefonou e foi atendida pelo marido, em surdina, explicando que a mulher estava a rezar o terço, o que levou a minha irmã, comprometida, a desligar, também em surdina. E a minha irmã estranhava tal devoção e saiu-se mesmo com uma pergunta que considerei de extrema irreverência, sobre o excesso das rezas, e logo ali lho transmiti! Foi a seguinte, a pergunta: Mas isto dá algum resultado?
A nossa amiga riu-se, também pouco convicta do resultado das rezas, mas o meu modo de ser e de estar, de profunda amplitude liberal, fez-me condenar, embora suavemente, que não sou pessoa de azedumes, o precipitado da sua pergunta.
A verdade é que a minha irmã é pessoa equilibrada e mede tudo por uma bitola de rigor, onde os excessos não entram - por isso mantém o peso de sempre e condena rigidamente o meu aumento no capítulo, que se deve muito às guloseimas irresistíveis que fortalecem a minha doçura natural. Quanto à religião que cada um pratica, é adepta do paralelo do Bispo Alves Martins entre aquela e o sal da comida, que, aliás, é usado com cada vez maior parcimónia, o que justifica talvez a tendência da minha irmã para a diminuição da sua fé, com condenação do excesso de terços diários.
Mas o problema é complexo e nem teólogos nem positivistas chegaram ainda a um consenso. O certo é que gostaria de encontrar no Além os pais que lembro sempre com saudade e que continuasse ali mais tarde a presença da família que tenho hoje e que me custa deixar.
Mas mais vale rir com a minha irmã dos exageros – desses do terço e dos meus sem terço.
Tanto mais que neste dia, há 56 anos, nasceu o meu filho João. Rions, donc.




E assim se vai viajando



Um texto simples e bom – de Pedro Machado, “Praga e os bons exemplos a seguir” -  sem preciosismos e apenas directo no paralelo entre duas cidades, no propósito enriquecedor de aprendermos com os outros, mais trabalhadores, talvez, do que nós - cuja calçada empedrada e mal cuidada faz partir muitos ossos, hélas! - para além de outras facetas desses, que apontam directamente para estímulos educativos que por aqui tanto falham.

OPINIÃO: Praga e os bons exemplos a seguir
Se fizermos uma comparação com a cidade de Lisboa existem alguns aspectos em Praga que revelam um funcionamento incomparavelmente melhor de alguns serviços e instituições.
PEDRO MACHADO
PÚBLICO, 28 de Novembro de 2019
Em 2001, alguns dos meus colegas de faculdade pensaram em fazer a viagem de finalistas à República Dominicana. A opção não se afigurava muito satisfatória para mim e para outro amigo e decidimos ir para outra República, a Checa, da qual tínhamos ouvido falar muito bem mas não sabíamos propriamente o que iríamos encontrar pela frente. Chegámos a Praga em Abril desse ano. De repente um novo mundo se revelou diante dos nossos olhos. Umas vezes chovia e outras ainda nevava, mas fazia sempre muito frio. A arquitectura era bastante diferente da nossa, sobretudo com a quantidade interminável de edifícios Art Nouveau e Art Déco e toda a atmosfera medieval que resultava do labirinto de ruas sinuosas do centro histórico e das torres góticas que pontuavam pela cidade. Deambulávamos incessantemente pela ponte Carlos entre  Malá Strana  e Staré Město. Com frequência, músicos talentosos tocavam na rua música clássica ou música jazz. A gastronomia, praticamente desprovida de peixe, não seria nada de nos fazer invejar mas ainda assim tinham uma série de sabores novos que nos eram dados a conhecer: o famoso goulash, as sopas bem mais condimentadas, o nakládaný hermelín - o queijo do tipo camembert servido com pimentos e cebola, os chlebíčky, as versões locais de canapés, o medovnik, o delicioso bolo de mel e nozes e ainda o vepřové koleno, o saboroso joelho de porco assado servido com mostarda e rábano ralado, tudo isto regado com cerveja de óptima qualidade sempre servida em doses de meio litro. A língua, à altura praticamente incompreensível mas também intrigante e fascinante, tornou-se numa espécie de desafio pessoal. As pessoas deste país da Europa Central tinham obviamente um aspecto bastante diferente de nós e isso acentuou ainda mais o exotismo de toda a experiência.
O meu amigo acabou por ir viver para lá e aí constituiu família. Para mim, Praga tornou-se a partir desse momento um destino frequente, em 2004 vivi lá por um período de 5 meses, e voltei com bastante frequência. Por isso o que vos vou descrever a seguir resulta de uma observação repetida ao longo dos últimos 18 anos distribuída por diferentes épocas do ano.
Se fizermos uma comparação com a cidade de Lisboa existem alguns aspectos em Praga que revelam um funcionamento incomparavelmente melhor de alguns serviços e instituições.
O pavimento que é cada vez mais em calçada e também com padrões artísticos, apresenta um óptimo estado de conservação, é raro encontrar buracos, pedras soltas, altos ou depressões como se vê frequentemente por aqui, mesmo o pavimento que bordeja as caldeiras das árvores encontra-se em boas condições. Ao contrário de Lisboa, em Praga aposta-se na substituição do cimento e alcatrão por calçada, que eles consideram ser mais bonita e que mantém alguma permeabilidade dos solos. Falando sobre pavimentos permitam-me referir uma situação pessoal que considero elucidativa - no dia 13 de Fevereiro de 2019 fiz uma participação à CML a alertar para o mau estado da via na travessia de peões entre a Rua Augusta e o Rossio, as pedras estavam desalinhadas e nos dias de chuva formavam-se largas poças de água; fui notificado sobre a recepção e encaminhamento da reclamação mas a situação permanece inalterada passados 9 meses, ou seja, não só não se faz uma manutenção activa e regular da via pública (veja-se por exemplo o estado lastimável da Rua das Escolas Gerais e Rua dos Cavaleiros) como parece não existir capacidade de se responder em tempo razoável às justas reclamações dos munícipes.
sistema de transportes em Praga, sob gestão integralmente pública, é de altíssima qualidade. Nunca presenciei uma única avaria do metropolitano, nem atrasos, e a frequência, mesmo a programada, é bastante superior à de Lisboa, em algumas linhas e em determinados horários chegam a ter 20 comboios por hora.
À superfície, a cidade é servida por mais de 20 linhas de eléctrico e por linhas de autocarro complementares. Além disso, a rede de eléctricos funciona durante toda a madrugada, de forma muito abrangente. Mesmo as paragens intermédias têm inscrito em papel os tempos exactos de passagem. Não só a frequência é muito elevada como a pontualidade é quase irrepreensível, dois indicadores que em Lisboa deixam muito a desejar.
Praga está atafulhada de turistas e é por vezes difícil circular em algumas ruas mesmo que exclusivamente pedonais. Também existem carteiristas, infelizmente, o que é muito pouco provável é que seja abordado e importunado no meio da rua para me venderem estupefacientes, falsos ou não.
É muito raro encontrar lixo acumulado nas ruas como infelizmente acontece amiúde em Lisboa.
Ao contrário do que acontece na nossa capital, os prédios devolutos e notoriamente em estado de abandono e degradação são em Praga uma raríssima excepção e não algo que se vê em abundância como na Baixa de Lisboa, ainda que nos últimos anos tenham sido aí recuperados, a acreditar nas fachadas, um número significativo de edifícios.
Por último é com agrado que vejo que em Praga souberam conservar as suas tabernas históricas - parte importante da sua cultura onde a produção e consumo de cerveja ocupa lugar relevante - praticamente iguais ao que eram há várias décadas, das quais são exemplos U Zlateho Tygra, U Hrocha ou U Jelinku. Sobre U Zlateho Tygra conta-se aliás uma história curiosa, que no tempo entre guerras ali se terá sentado o primeiro-ministro de França, Herriot, de forma completamente incógnita e ali terá comido um pescoço de porco enquanto convivia com os demais clientes da taberna, algo impensável nos nossos dias. Em Lisboa infelizmente, temos vindo a perder todas as tabernas uma a uma e a trocá-las por wine bars, tapas, gin, hamburguerias e kebabs.
Praga também tem as suas chagas, claro, o centro está pejado de lojas de souvenirs muito acima do que seria necessário ou sequer razoável, existem muitas casas de câmbio que praticam taxas exacerbadas e os subúrbios são na sua maioria feios e demasiado uniformes.
E é tudo mau na gestão de Lisboa? Certamente que não e nem todos os problemas dependem da administração local. A ampliação de espaços pedonais, a criação de ciclovias e sistema de bicicletas partilhadas e a requalificação de alguns espaços públicos (veja-se o excelente restauro do miradouro de Santa Luzia) contam-se entre alguns passos muito positivos dos últimos anos, mas a comparação com outras cidades mostra-nos que ainda há muito caminho a percorrer.
Certamente que há diferenças de base nas duas cidades que justificam uma maior dificuldade da cidade de Lisboa em ultrapassar alguns problemas. Por exemplo grande parte da rede de eléctrico em Praga funciona em via segregada, algo difícil de implementar na malha urbana mais antiga de Lisboa, mas já a regulação do tráfego é algo em que se pode intervir e tem consequências directas sobre a fluidez do transporte público. A esse propósito convém lembrar o gigantesco investimento de recursos na sub-urbanização da área metropolitana quando o centro de Lisboa literalmente apodrecia dando origem a um movimento pendular diário de 400 mil viaturas entre Lisboa e as periferias, ou seja, uma política de ocupação mais racional do território e um maior investimento em transportes públicos poderiam ter minorado bastante esta tragédia permanente.
O Presidente da República gosta de dizer que somos tão bons como os melhores do mundo, algo que se pode interpretar benevolamente como um estímulo a uma maior auto-estima e capacidade de superação. Lamentavelmente existem ainda muitos domínios em que essas virtudes não se manifestam.
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A vassoira e o espanador



São dois instrumentos de limpeza, de puro remedeio temporário, pois que hoje há formas mais radicais de aspirar os pós das poluições ou sujidades que fraternalmente nos acompanham na vida diária. A respeito da vassoira, recordo vagamente parte de uma lenga-lenga da infância, julgo que proveniente de saberes, talvez de séculos, que a nossa mãe nos transmitiu: “Varre, varre, vassoirinha, que esta casa não é minha. Se varreres bem, dou-te um vintém, se varreres mal, nem um real”, provavelmente pronunciada pelas “criadas de servir” de outrora, gatas-borralheiras mandrionas e aspirando a uma condição de princesas, por artes mágicas de uma qualquer varinha de condão, fantasias de séculos, que, já antes da era cristã, se liam, nas malandrices de Vénus para com Psique, obrigando-a a trabalhos inextricáveis, que ela, contudo, resolve, graças a ajudas extra, segundo conta Apuleio, no seu “Burro de Oiro”. Tudo isto a propósito da metáfora do “espanador” de que se socorre Santana Castilho, para identificar a superficialidade com que o nosso PM encara o Ensino e o Saber, como ligeiras limpadelas de espanador, pouco importantes, naturalmente, até porque haverá sempre a possibilidade de auxílios extra  nos recursos de habilidade própria - o nosso PM que o diga – ou até no entretenimento obsessivo com a caixinha mágica, facilmente manipulável, como auxiliar de um mundo novo, espalhafatoso e espesso em meios, que pontapearam o respeito pelos valores antigos, a começar, entre nós, pelo desprezo pela própria língua…

OPINIÃO: Os espanadores e o senso comum
É enviesado o raciocínio de quantos afirmam que o “chumbo” não serve para nada. Como se o “chumbo” fosse um instrumento de ensino.
SANTANA CASTILHO
PÚBLICO, 27 de Novembro de 2019
1. Interpelado por Rui Rio no último debate quinzenal, António Costa meteu os pés pelas mãos no discurso, mas esclareceu as intenções: invocando argumentos não demonstrados, travestiu de progresso mais um retrocesso, qual seja o de acabar com as reprovações no ensino básico. Petulante, acusou Rui Rio de se guiar pelo “senso comum”, em lugar de seguir “decisões informadas”. O problema é que qualquer pavão que use as decisões do PS em matéria de Educação, “assentes nos estudos pedagógicos mais informados”, ficará reduzido a espanador pelo simples “senso comum”.  
Na altura, António Costa exibiu a primeira página de um estudo que não leu, sobre uma matéria que nunca lhe importou. O estudo, que não diz o que ele disse que diz, é teoricamente bem construído, mas deve ser confrontado com a realidade. E a realidade mostra que as reprovações estão associadas a alunos carenciados e à falta de recursos das famílias e das escolas. Eliminá-las passa por políticas sociais que combatam as desigualdades, que não por colocar ainda mais pressão sobre professores desmotivados, mal pagos, expostos à indisciplina e à violência que grassam nas escolas e escravizados por trabalho sem sentido e normativos manicomiais.
2. É enviesado o raciocínio de quantos afirmam que o “chumbo” não serve para nada. Como se o “chumbo” fosse um instrumento de ensino. O “chumbo” é apenas uma expressão classificativa, de último recurso, que introduz um limiar de exigência mínima numa escala classificativa (classificar é seriar). A taxa de reprovações em Portugal (13,6% no secundário e 5% no básico, dados de 2017/2018) tem vindo a diminuir ao longo dos anos e os resultados do nosso sistema de ensino têm vindo a melhorar nas avaliações internacionais, não sendo possível, contrariamente ao que afirmam os porta-vozes do regime, falar de consenso na produção científica sobre os malefícios das reprovações. Há matérias que requerem aprendizagens incrementais e acumulativas, sendo garantido o desastre quando se pula para um nível superior sem domínio do anterior.
3. Quando se retomou a actual polémica sobre a validade das reprovações, li e reli que a sua abolição significaria uma poupança de 250 milhões de euros por ano. É fácil perceber como os criadores da cifra a calcularam: multiplicaram o número de reprovados pelo custo médio anual por aluno. Só que as coisas não se passam assim, já que uma eventual passagem automática de todos não iria originar a redução de professores, de assistentes operacionais e técnicos e o encerramento de escolas, variáveis que determinam os custos.
4. Melhor seria que, logo no primeiro ciclo, detectássemos com rigor as dificuldades de acompanhamento do currículo (fragilidades familiares, cognitivas ou de outra natureza), caracterizando o potencial de desenvolvimento de cada aluno. Isto a partir da ideia de que não deve ser o currículo que se flexibiliza, mas os apoios que se reforçam. Isto que suporia, naturalmente, a existência nas escolas de equipas multidisciplinares estáveis. Do mesmo passo, parece-me importante um debate sério e profundo sobre a eventual alteração para os sete anos da idade de entrada no ensino básico e a eventual junção dos segundo e terceiro ciclos num só.
No que toca ao secundário, com o tempo decorrido sobre o prolongamento da escolaridade obrigatória de nove para 12 anos, o país ganharia em discutir, sem preconceitos, a continuidade ou a reversão da medida (na UE só seis países têm 12 anos obrigatórios), bem assim como repensar toda a lógica organizativa e curricular da via profissionalizante. 
Ao anterior acresce que as “aprendizagens essenciais” assentam na ideia equívoca de que o aluno é capaz de construir autonomamente o seu próprio conhecimento, através de “projectos” funcionais e imediatamente utilitários, desenvolvidos preferencialmente com metodologias lúdicas. Este conceito, que se foi impondo insidiosamente, vem originando uma organização avulsa e destruturada do currículo nacional. A ênfase dada às competências vem negligenciando o conhecimento, quando o conhecimento é nuclear para qualquer tipo de desempenho. Por outro lado, a interpretação que alguns fazem da autonomia curricular põe em perigo a garantia de que um conhecimento principal e nacional seja proporcionado a todos os estudantes, de modo equitativo e universal.
Professor do ensino superior


 3 COMENTÁRIOS
mzeabranches, 27.11.2019 : Excelente análise! E em português correcto! Que felicidade haver ainda quem fale da educação nacional com tanta seriedade e conhecimento! Subscrevo muito particularmente o último parágrafo, pelos perigos aí denunciados.
panjosantos, 27.11.2019: Excelente... como sempre!
Luis Morgado, 27.11.2019: Muito bem!