sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A firmeza dos opostos

O texto de Paulo Tunhas sobre um livro de Fernando GilAproximação Antropológica - o primeiro livro de Filosofia deste, que ofereceu aos seus amigos em África, os quais se disputavam méritos de leitura que não ultrapassavam algumas linhas ou parágrafos - ou, os mais arrojados, algumas páginas - tão abstruso parecia, no seu discurso complicado, para as juvenilidades dos colegas, mas que Paulo Tunhas exalta, ao mesmo tempo que aponta um pessimismo existencial que em todos os tempos teve razão de ser, afinal, e que mesmo os poetas – esses, sobretudo, além dos filósofos específicos que os influenciaram – exploraram, caso de António Nobre, por exemplo, no seu poema “A Vida”, entre outros, como exemplificativo desse pessimismo a que outros poetas e prosadores igualmente foram sensíveis, nas suas reacções perante o mundo. Vejamos o poema, de um poeta simbolista decadentista, que a tuberculose levou, com apenas 32 anos:

A Vida
Ó grandes olhos outonais! místicas luzes!
Mais tristes do que o amor, solenes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, num corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!

 Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de três luas cheias:
Sois vós que alumiais os presos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outonais, cheios de Graça!
Olhos acesos como altares de novena!
Olhos de génio, aonde o Bardo molha a pena!
Ó carvões que acendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas...
Ó farolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pirilampos a alumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligência pela serra!
Ó Extrema-Unção final dos que se vão da Terra!
Ó janelas de treva, abertas no teu rosto!
Turíbulos de luar! Luas cheias d'Agosto!
Luas d'Estio! Luas negras de veludo!
Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudo
Quanto há de branco: véus de noivas, cal
Da ermida, velas do iate, sol de Portugal,
Linho de fiar, leite de nossas mães, mãos juntas
Que têm erguidas entre círios, as defuntas!
Consoladores dos Aflitos! Ó olhos, Portas
Do Céu! Ó olhos sem bulir como águas mortas!
Olhos ofélicos! Dois sóis, que dão sombrinha...
Que são em preto os Olhos Verdes de Joaninha...
Olhos tranquillos e serenos como pias!
Olhos Cristãos a orar, a orar Ave Marias
Cheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,
Aos quais estendo, toda a hora, as frias mãos!
Estrelas do pastor! Olhos silenciosos,
E milagrosos, e misericordiosos,
Com os teus olhos nunca há noites sem luar,
Mesmo no inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sois duas noites fechadas,
Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...

Mas dize, meu amor! ó Dona de olhos tais!
De que te serve ter uns astros sem iguais?
Olha em redor, poisa os teus olhos! O que vês?
O mar a uivar! A espuma verde das marés!
Escarros! A traição, o ódio, a agonia, a inveja!
Toda uma catedral de lutas, uma igreja
A arder entre clarões de cóleras! O orgulho
Insuportável tal o meu, e o sol de Julho!
Jesus! Jesus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos reis em palácio e quanta alma sem férias!
Quantas torturas! Quantas Londres de misérias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças
A trasbordar veneno em espumantes bocas!
Quantos martírios, ai! quantas cabeças loucas,
Neste manicómio do Planeta! E as orfandades!
E os vapores no mar, doidos, ás tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o vento traz à praia!
E aquela que não sai por ter usada a saia!
E os que soçobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma letra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado
De Infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,
E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insónias duma noite de remorsos,
Como dez anos de prisão maior celular!
Olha esse tísico a tossir, á beira-mar...
Olha o bebé que teve Torre de coral
De lindas ilusões, mas que uma águia, afinal,
Devorou, pois, ao vê-la ao longe, avermelhada,
Cuidou, ingénua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da política!
Olha um artista a ler, soluçando, uma crítica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquele outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade!
Olha os Aflitos! A Mentira na Verdade!
Olha um filho a espancar o pai que tem cem anos!
Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos!
Olha o nome de Deus, cuspido num jornal!
Olha aquele que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,
Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas!
Olha um velhinho a carregar com a farinha
E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha lá vai saindo o paquete Dom Gil
Com os nossos irmãos que vão para o Brasil
Olha, acolá, no cais uma outra como chora:
É o marido, um ladrão, que vai «p'la barra fora!»
Olha esta noiva amortalhada, num caixão...

Jesus! Jesus! Jesus! o que aí vai de aflição!

Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos,
Ó flor sem elles! que tu tens tão lindos olhos!
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama,
Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo espaço vai, leve como a andorinha,
A Terra!

Ó meu amor! antes fosses ceguinha...
  António Nobre, in 'Só'

Paulo Tunhas, todavia, desenvolve o tema menos emotivamente mas mais criticamente do ponto de vista da Ética, sobre o mal-estar social criado pela corrupção - O negativo persegue-nos por todo o lado, a má-fé ocupa o espaço inteiro que respiramos, a superstição e o fanatismo tomam conta de tudo, a ditadura da opinião alcança cumes nunca vistos.- abandonando, por ora, os males físicos que atravessam toda a Terra e a vão destruindo imparavelmente, coisa ignorada ainda no tempo de A. Nobre:
 A luz do dia /premium
O negativo persegue-nos por todo o lado, a má-fé ocupa o espaço inteiro que respiramos, a superstição e o fanatismo tomam conta de tudo, a ditadura da opinião alcança cumes nunca vistos.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 07 nov 2019
Viver num mundo onde o fanatismo espreita a toda a esquina e a má-fé vigia tudo não consola a alma. Mas será que leva ao abatimento radical? Admitindo alguma oscilação no capítulo, a minha resposta definitiva, se alguém me apontasse uma pistola à cabeça e me obrigasse a responder “sim” ou “não”, seria: não. É preciso sorte, é claro, para a resposta ser assim. Imensíssima sorte. Mas a vida, mesmo nas mais terríveis das situações, oferece, inesperadamente, motivos de sorte. Ninguém conta com eles, quando tudo à nossa volta parece obedecer ao princípio do pior, mas eis que, de repente, eles aparecem.
Se eu for contar a quantidade de desgraças que me aconteceram, e que me acontecem, precisava de colunas sobre colunas neste jornal. Consideremos a célebre perfídia alheia. Não me fales. Isto o mundo está cheio de gente de duvidosa moral. Defeitos próprios conducentes à auto-destruição? Rapaz, estou aqui para isso, e apliquei-me com esmero e dedicação. Azares que a pátria, sempre presente, proporciona? Quem não sabe e não se queixa? E estou a falar de quem verdadeiramente sabe e verdadeiramente sente e pensa aquilo de que se queixa. Erros de opinião e de leituras? A vida do espírito faz-se quase só disso e do reconhecimento disso, com um enigmático lugar para o que parece sobreviver, incólume, e que nos alimenta sem nos cansar. Desgostos de amor? Repetitivas biografias poderiam iluminar antagónicas vidas só com a história deles, e a minha não menos do que qualquer outra, com todas as possíveis reflexões retrospectivas entre a indiferença e o raríssimo sentimento de valor absoluto.
Estive, por estes dias, a rever, para a sua publicação, o texto de um artigo, há muito tempo escrito, sobre o primeiro livro de Fernando Gil, Aproximação Antropológica, editado em 1961 pela Guimarães Editores, pouco antes de ele partir para viver, estudar e trabalhar em Paris. É um livro de extrema juventude, no qual Fernando Gil não tinha um excessivo prazer em se rever. Acontece que o livro antecipa, à sua maneira, temas que se repetirão insistentemente na sua obra futura, que constitui aquela que é verosimilmente – desculpe-se este tipo de juízos, mas não cairia neles se tal não se me apresentasse como uma evidência absoluta — a maior contribuição portuguesa para o pensamento filosófico do século XX.
Em primeiro lugar, a ideia de que a filosofia prolonga as interrogações comuns dos seres humanos, transformando-as e aprofundando-as com graus variáveis de tecnicidade. É sempre possível, por mais difícil e contra-intuitivo que às vezes pareça, descobrir o fio que une o mais técnico problema da filosofia à interrogação quotidiana, às coisas das quais os homens falam. Depois, a tese segundo a qual o nosso conhecimento do mundo radica numa afinidade natural nossa com este, que restringe o alcance de todos os artificialismos consabidamente necessários para que o conhecimento tenha lugar. É a nossa afinidade com o mundo, a existência de uma raiz comum que nos liga, que nos permite uma inteligência deste. Em terceiro lugar, essa afinidade natural é, sob a sua forma mais originária, uma afinidade genérica, indiscriminadamente dirigida a tudo. Mas, a pouco e pouco, ela dirige-se a objectos específicos. A nossa mente encontra distintos tipos de coisas sobre as quais pensar, e cada um tenderá a inclinar-se preferencialmente para um deles: o conhecimento da natureza, a arte, a ética e a política. Cada um, por assim dizer, descobrirá as afinidades que lhe serão mais próprias, que melhor lhe convirão.
Um outro tema central do livro é o amor. Nos seus livros de maturidade, Fernando Gil dedicará muitas páginas ao amor, sobretudo à relação do amor com o conhecimento, sob a forma da evidência, prolongando uma corrente central do pensamento do século XVII que associa conhecimento e felicidade, e a música cada vez tenderá mais a ocupar um lugar central nessa reflexão. Em Aproximação Antropológica, o amor é visto sob a forma mais originária e imediata, como o encontro de duas faces em que a multiplicidade descobre em si uma unidade. Essa unidade entre duas faces realiza-se como o oposto da morte. Fernando Gil nunca foi um pensador da morte, do negativo: toda a sua filosofia sempre foi uma filosofia da afirmação, da vida. Um dia escreveu algo que resume magnificamente a sua posição: “As teologias positivas têm negativo que baste – e as negativas repetem-se. A luz do dia dá mais a pensar do que as trevas. E aquece mais”.
Isto foi a razão essencial para ter falado do primeiro livro de Fernando Gil: o que ele diz sobre o amor. Porque tem tudo a ver com o primeiro parágrafo deste artigo. O negativo persegue-nos por todo o lado, a má-fé ocupa o espaço inteiro que respiramos, a superstição e o fanatismo tomam conta de tudo, a ditadura da opinião alcança cumes nunca vistos. Mas se se tem a sorte – repito: a imensíssima sorte – de encontrar outra face que se encontra com a nossa, outra voz e outro pensamento que respondem aos nossos, tudo se coloca no seu devido lugar. Dizia um filósofo, Espinosa, que o verdadeiro é o critério do verdadeiro e do falso. Entre outras coisas, isso quer dizer que a afirmação é anterior à negação – a luz do dia é primeira por relação às trevas, por assim dizer. Saber isto, e experimentar isto, a mim basta-me como ambição de vida. Não me quero estar a dar como exemplo universal, mas, enfim, é preciso procurar a luz do dia.

COMENTÁRIOS:
António Sennfelt: Sim, "a luz do dia é primeira do que as trevas", mas a verdade é que está a anoitecer cada vez mais cedo!
Antaeus IX: Outro psicólogo positivo...: O que seria do positivo sem o negativo?...
Mario Areias: Excelente texto como sempre. Não tenho conhecimentos de filosofia suficientes para saber se podemos equiparar a "outra face" à célebre "alma gémea" do senso comum, mas seja ou não é preciso, de facto, imensíssima sorte.
victor guerra: Um horror estas "trevas" em que vivemos e nem os tipos da "websummit"vêem lá do seu alto. Eu uso drone
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Maria Machado:  “Falando novamente ao povo, Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, nunca andará em trevas, mas terá a luz da vida”- João 8:12.
Antaeus IX > Maria Machado: Se lesse Filosofia em vez de Mitologia...
Maria Machado > Antaeus IX:  “Este é o julgamento: a Luz veio ao mundo mas os homens amaram mais as trevas, e não a Luz, porque as suas obras eram más”- João 3:19.
Ana Ferreira: Fazendo uso da sua inquestionável excelente capacidade de expressão, Tunhas lança-se num auto retrato a roçar a perfeição!
Madalena Barreto: Excelente crónica. É imperativo procurar sempre a luz do dia!


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