O certo é que estamos cada vez mais pessimistas.
OPINIÃO,
Liberdade, ano zero
Recordemos essa data tão auspiciosa de
9 de Novembro de 1989 – quando
o impensável aconteceu com a queda do muro de Berlim –, buscando nela a
inspiração e a força necessárias para voltar a acreditar no futuro.
VICENTE JORGE SILVA OPINIÃO, 10 de Novembro de 2019
Se,
como estava previsto, a primeira
edição do PÚBLICO tivesse saído para as bancas a 1 de Janeiro de 1990 e
não apenas três meses depois, devido a condicionalismos técnicos que não
conseguimos ultrapassar, a convergência festiva da história deste jornal com o
dealbar da última década do século XX teria sido bastante mais exuberante. E
essa festa era desde logo visível na capa, com o título “Liberdade, ano
zero” e imagens da queda do muro de
Berlim, de uma entrevista com Vaclav Havel – um dos grandes heróis da resistência checoslovaca –
e do levantamento na Roménia.
Uma equipa de enviados especiais do PÚBLICO, da escrita à imagem, tinha
acompanhado intimamente as convulsões que foram mudando a paisagem política e
social da Europa de Leste – tendo como epicentro o grande sismo de 9 de
Novembro de 1989, quando o inimaginável aconteceu com a queda do muro de
Berlim.
Este
jornal tem, pois, inscrito no seu código genético esse sobressalto histórico
que transformou a face da Europa, apesar do tal atraso verificado na data
da sua saída. Fomos todos – os que partilharam as dores de parto do PÚBLICO –
profundamente marcados por esses acontecimentos e eles tornaram-se parte integrante
das nossas vidas – se é que não mudaram mesmo o seu sentido. Depois da
conquista da democracia em Portugal, em 1974, a queda do muro e a implosão do
comunismo na URSS e respectivos países satélites foram momentos absolutamente
decisivos da nossa memória no final do século XX – pode mesmo dizer-se: foram
os momentos mais emblemáticos da passagem de um século para outro, de uma era
para outra era. A liberdade tornara-se
uma palavra e um valor mágicos, que ultrapassavam as fronteiras ideológicas e
os dogmas dos regimes.
Dito
isto, é impossível olhar hoje para trás sem experimentar um sentimento profundo
de nostalgia perante as grandes promessas desses tempos. A enorme
esperança da liberdade foi sendo substituída pelo autoritarismo autocrático dos
regimes pós-comunistas, ou “democracias iliberais", que se
foram implantando através da Europa de Leste, para não falar, obviamente, da
própria Rússia. No fundo,
as raízes autocráticas do comunismo sobreviveram nos regimes que lhe sucederam,
independentemente da sua matriz ideológica: as sociedades saídas do comunismo
eram, em larga medida, sociedades conservadoras fechadas sobre si próprias (o
catolicismo arcaico polaco, por exemplo, revelou-se uma imagem invertida do
modelo comunista). Não é por acaso, de resto, que alguns dos actuais regimes da
Europa de Leste – como a Hungria e outros países do grupo de Visegrado – se
sintam tão identificados com o regime de Putin.
Infelizmente,
a Europa actual – como o
Presidente Macron advertiu numa recente entrevista ao The Economist, independentemente
das ilusões que alimenta sobre o revigoramento da relação europeia com a Rússia
– corre o risco de afastar-se cada vez mais daquilo que constituiu o fundamento
da sua força: uma efectiva capacidade de integração cada vez mais estreita face
às actuais tentações de desagregação e as tendências xenófobas e populistas. Se
a Europa não souber enfrentar os seus fantasmas (velhos e novos), através de
uma nova energia convergente entre as suas instituições, envolvendo os sectores
financeiro, tecnológico, ambiental e de Defesa – onde a insustentável
fragilidade da NATO foi também apontada por Macron ao The Economist –,
a grande esperança do ano zero da Liberdade poderá
converter-se num pesadelo. Recordemos então essa data tão auspiciosa de 9 de Novembro
de 1989 – quando o impensável aconteceu com a queda do muro de Berlim –,
buscando nela a inspiração e a força necessárias para voltar a acreditar no
futuro.
COMENTÁRIOS
Colete Amarelo, 10.11.2019: Celebramos a queda de um muro físico, que
adotamos como um símbolo vitorioso da Liberdade. E se tivéssemos simplesmente a
celebrar a vitória de um sistema sobre o outro ? E se com esta vitória
estivéssemos a excluir o outro de usufruir da Liberdade? Por que é que a uma
vitória se sucede a punição do derrotado? Não é isto muito básico? Uma vitória
deveria traduzir-se pela elevação do derrotado à condição do que é o vencedor.
Assim foi o desfecho da 1 Guerra Mundial, e a queda do Muro de Berlim. O muro
continua a existir, ele sempre existiu dentro de nós. Infelizmente, o "Ano
Zero" da liberdade já nasceu sem futuro. O convencimento de que o mérito
da queda do Muro de Berlim era exclusivo do mundo ocidental, ou do capitalismo;
a prova de que deste lado estávamos certos e do outro errados foi um erro.
Imaginava-se e desejava-se um mundo melhor, mas só para nós. Na realidade, a
queda do Muro de Berlim também é do mérito da União Soviética que estava em
profunda mudança liderada por Gorbatchev. A ação deste homem nunca foi
devidamente apreciada pelos "Ocidentais" e por isso perdeu-se a
oportunidade de se criar esse mundo que se julgava ser possível. Nunca se
esteve tão perto dessa liberdade, mas Bush achou mais interessante investir na
guerra do Iraque. O egoísmo, sem que fizesse notado, já fazia parte desse
sentimento de liberdade e euforia.
DNG, 10.11.2019: Boa leitura
matinal.
Mario Coimbra, 10.11.2019: Obrigado
por estas lembranças. A capa era optima.
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