Sim, sabemos que somos um país pobre de
valores aqui plantado à beira-mar, como acontece a tantos outros, marítimos ou interiores,
que tiveram mais potencial para se realizarem, do ponto de vista racional,
social, económico, educacional, igualitário, democrático, em suma. O certo é
que as estatísticas nos apresentam sempre na cauda dos demais europeus e
sentimos esse ferrete, que mal compreendemos, tendo embora lido textos antigos
de estrangeiros que por cá passaram e já então ironizavam o atraso de uma nossa
classe nobre, vivendo num luxo espectacular, de alarde, inacção e parasitismo,
pecha antiga que lentamente se foi abrindo, mercê de gente que soube furtar-se
a ela. Mas este texto de José
Manuel Fernandes parece-me demasiado contundente, no seu moralismo de
ódio, generalizando a todo o país uma acusação de egoísmo e velhacaria no jogar
as pedras sobre – no caso – a mãe que jogou o filho no contentor e é castigada
por isso, quando devia ser analisada nas suas condições de joguete de um
destino mísero, merecedor de piedade e não das pedradas da moralidade imaculada
de cada um de nós. Só acho que José
Manuel Fernandes exorbita na generalização da sua fúria que me parece
despropositada. Fiquei sem perceber se defende o governo que atamanca as suas
receitas de bem-estar social, numa economia deficitária, cujas importações são
superiores às exportações, se acusa raivosamente uma população inteira de “intifada”
verbal e, aliás, se se inclui nessa. Mas o comentário de João Marques formula a resposta adequada.
O país em que todos
querem atirar a primeira pedra /premium
Não foi bonito de ver o Portugal moralista que se
revelou com o caso do bebé abandonado. Mas é o mesmo Portugal velhaco onde a
responsabilidade é sempre dos outros e que tem sempre uma pedra na mão.
JOSÉ MANUEL FERNANDES
OBSERVADOR, 14 nov 2019
De vez em
quando é assim. Descobrimos que este país tem umas traseiras. Que há uns cantos
escuros onde se acumula o lixo que não queremos ver. Que há uma realidade com
que vivemos paredes meias mas que ignoramos ou fazemos por ignorar.
A mãe que
colocou o filho naquele contentor do lixo não vivia num buraco – vivia paredes
meias com alguns bares da moda e restaurantes de luxo. Ela e outros sem-abrigo.
As tendas ainda lá estão. E estarão. Aquela mãe cometeu um acto monstruoso? Sem
dúvida. Mas eu nem quero imaginar o que ela passou nos anos – cinco anos – que
passaram desde que aterrou em Portugal e acabou ali, como um pedaço de lixo
descartável. Não consigo também imaginar como conseguiu esconder a gravidez,
como viveu com ela, como sobreviveu com ela naquele ambiente hostil. Mas
sobretudo aquilo em que nem sequer quero pensar é nas condições em que teve a
criança, sozinha, ao frio, sem higiene, com medo, com sangue, com dor. O que
ela fez nos minutos – horas? – que se seguiram é a história que está por
contar, e aquela que um dia um juiz terá de julgar. Só que entretanto já
sabemos o que aconteceu.
Em Portugal
somos muito rápidos a atirar a primeira pedra. Se algum dia nos leram a
Parábola da Mulher Adúltera do Evangelho de João, então já a esquecemos: somos
gente sem pecados, sempre prontos apontar um dedo acusador ou a condenar quem
está na mó de baixo. Quando a mãe ficou em prisão preventiva, quem se
interrogou sobre a dureza dessa medida? Na primeira hora só me lembro de uma
pessoa: Dulce Rocha,
do Instituto de Apoio à Criança. Quando foi
levada para Cadeia de Tires, quantos correram o risco de dar sinais de
compreensão, compaixão, porventura solidariedade? O Presidente da República,
que disse algumas palavras sensatas, e os advogados que interpuseram um habeas
corpus. Mas eu até
diria que nestes dias em que as tais traseiras do país ficam de repente
escancaradas à nossa frente – e fazem cair a máscara bem afivelada da Lisboa
toda perfeita da Web Summit – as reacções mais emotivas até se entendem. Se a
multidão já agarrou nas pedras, quem sou eu para também não agarrar numa?
Mais
complicado é termos consciência de que aquele país assim destapado nos é
indiferente 364 dos 365 dias do ano. Ou seja, todos os outros.
Para ser mais
preciso, não nos é indiferente – achamos é que não temos nada a ver com ele. Há
pobreza? O Estado que se ocupe. Gente a passar fome? Então não há um Banco
Alimentar? Tendas de sem-abrigo montadas ao lado do Lux-Frágil? Os fiscais da
câmara que tratem delas.
Andamos muito
preocupados com o mundo e até temos várias “causas” que nos ocupam os
espíritos. A mais recente de todas é esta de que o nosso Planeta está para
acabar, de que há uma emergência climática. Já subscrevemos algumas petições,
sabemos tudo sobre a Greta, trocámos as lâmpadas lá de casa, o ano passado
fomos a uma daquelas acções plantar umas árvores e até já comemos menos carne
(vá lá, um bocadinho menos). Se nos vierem perguntar que assunto nos preocupa
mais, somos mesmo capazes de dizer que é o ambiente.
A nossa
consciência está tranquila, não temos culpa de todo o mal que por aí andam a
fazer. E, se for preciso, também atiraremos uma pedra quem quiser explorar o
lítio, mesmo sabendo nós que ele faz falta para os carros eléctricos. Tal como
iremos ao cordão humano contra uma barragem ou mais de campo de ventoinhas,
porque queremos preservar a paisagem. É o que eu digo: estamos sempre prontos a
atirar a primeira pedra. Mas será que
estamos prontos a mudar comportamentos, a começar pelos nossos?
Vamos ser
honestos: não estamos. É mais confortável ter um discurso politicamente
correcto contra a “caridadezinha” do que ir à noite distribuir alimento aos
sem-abrigo. Para além disso vamos ter muita gente a fazer coro connosco:
“pagámos os nossos impostos, o Estado que trate”.
O Estado, o
Governo, têm sempre culpa de tudo. Somos hoje comparativamente muito mais ricos
do que éramos há 50 anos? Somos: de 1960 para cá o PIB per capita
multiplicou-se por cinco. Mas o número de filhos que temos caiu para menos de
metade. Porquê? Lendo os jornais parece que é porque o Estado – sempre o Estado
– não arranja casas suficientes para os casais jovens. Como se essas casas
existissem há 50 anos.
Mas claro,
não temos culpa. Nunca temos culpa, como notava certeiramente Alexandre O’Neill
num livro em que descrevia os portugueses. Nós até já arranjámos a melhor forma
de não ter mesmo culpa nenhuma, que é poder dizer “eu até não votei neles”, o
que fazemos ficando em casa no dia das eleições.
É por isso
que estes casos vêm e vão tão facilmente, durando pouco mais do que alguns
ciclos noticiosos. Atiram-se as pedras e passa-se ao caso seguinte. E mesmo
parecendo à superfície que são os políticos que sofrem, por serem sempre “os
culpados”, na verdade este toca e foge também permite que escapem a um
verdadeiro escrutínio e responsabilização.
Um exemplo
simples, retirado do debate desta semana com o primeiro-ministro. A certa
altura, confrontado com a quantidade de escolas fechadas ou com problemas por
falta de auxiliares, António Costa atirou com um número: nos últimos quatro
anos passou-se de um auxiliar para cada 26 alunos para um auxiliar para cada 22,6
alunos. Uau!, que progresso. Ninguém ripostou. Ninguém notou o logro: fazendo
as contas às horas úteis, a passagem das 40 para as 35 horas significa que para
manter o mesmo serviço era necessário passar de um rácio de 26 alunos para um
de 22,75. Ou seja, estamos como estávamos há quatro anos, provavelmente pior
porque é mais difícil fazer horários de 35 horas do que horários de 40 horas.
Mas a discussão seguir em frente. Toca e foge, já fugiu.
Eu sei que
nestes tempos de esfuziante optimismo (ou ainda será irritante optimismo?)
estas minhas palavras a pedir mais compaixão e mais responsabilização e menos
sentenças de bancada e moralismos de poltrona não dão com o espírito do tempo.
Mas daqui a
seis meses, quando olharmos para trás e tratarmos de saber o que aconteceu ao
bebé, onde entretanto estará a mãe e procurarmos ver se as tendas ainda
continuam no mesmo local ou foram para outro canto mais discreto, talvez
fiquemos a saber mais sobre o nosso país do que em todos os debates quinzenais
que vamos ter até lá. Vai uma aposta?
COMENTÁRIOS
João Marques: Ó Zé Manel
Fernandes, francamente. Prosa de uma prolixidade intratável e de um
moralismo invertido deplorável. A mim o teu sermãozinho de virtudes plásticas
não causa certamente o menor embaraço ou condiciona minimamente. Ao invés desta
menoridade intelectual e sentimentalismo de cordel, para benefício de todos, os
negócios das nações prósperas e civilizadas são e devem ser conduzidos
exclusivamente à luz da razão esclarecida, da objectividade dos factos, das
leis e nada mais.
Eu
próprio sou o terceiro de seis irmãos e irmãs. Cresci rodeado de imensas
dificuldades económicas e, num grau que estou certo tu jamais terás conhecido
ou conhecerás, tive conhecimento directo de situações de pobreza extrema e
alienação social ao nível, se não piores, dos desta mulher e dos seus
companheiros. Tal como os ricos, pobres há os de boa índole e há os totalmente
desprezíveis. Nada, absolutamente nada, e muito menos o contexto
económico-social desta mulher, justifica ou explica o acto terrível que
cometeu. Sobretudo, quando considerados os comportamentos alternativos que
livremente, e sem quaisquer consequências pessoais, patrimoniais ou
financeiras, poderia ter adoptado. Isto já para não mencionar o grau de
calculismo e premeditação que vão associados com o esconder de uma gravidez
durante nove meses.
As
acusações de julgamentos apressados, de atirar pedras e a invocação da parábola
da mulher adúltera são de todo desajustadas. Em face de factos incontroversos,
numa sociedade livre, as pessoas têm todo o direito de formar as suas opiniões
e total liberdade para as expressar. Exactamente como tu aqui fazes ao
condenares quem o fez.
Depois,
ao invés desta menoridade intelectual e sentimentalismo de cordel, a razão
objectiva e o interesse do país exigia que, por exemplo tu, nesta crónica,
tivesses questionado que leis e serviços de imigração tem este país, que, pelo
que se vê por todo o lado e com as consequências que se podem constatar, se
traduzem na importação livre da mendicidade do mundo e de alguns plutocratas
criminosos.
Mais,
ao invés de apelos irracionais e popularuchos ao questionamento e condenação da
suposta severidade da decisão judicial, que determinou a prisão preventiva da
mulher em causa, o que se impunha era sim uma ponderação racional dos factos e
da lei, como seguramente terá feito o tribunal neste caso. Sendo que a decisão
do tribunal é não só correcta e completamente adequada aos factos, como, estou
seguro, foi uma decisão tomada com os olhos postos em primeiro lugar nos
interesses da própria mulher, os quais defende e protege de uma forma que
nenhuma outra decisão do tribunal poderia ter defendido. Neste momento, em
lugar nenhum, nem tão-pouco em instalações médicas, que, aliás, não existem
adequadas, estariam os interesses e necessidades humanas e sociais desta mulher
melhor protegidos do que, como está, na cadeia, sob um regime de protecção
especial. O que a concretização da demagogia popularucha e irresponsável como a
desta peça significaria era termos esta mulher de volta a dormir por aí em qualquer
esconso vão de escada, sem qualquer apoio médico e social e a prostituir-se ou
a roubar para comer. Ou, pior ainda, sujeita à influência nefasta dos que cá fora,
em primeiro lugar, contribuíram para o estado a que chegou e à eventual mercê
de um qualquer maluco apostado em "fazer justiça" por mão
própria. Sendo ainda instrumentalizada por gente como Rebelo de Sousa e a sua
trupe mediática de populistas irresponsáveis.
Finalmente,
é lamentável que aqui venhas fazer coro com a demagogia, irresponsabilidade e
aproveitamento de gente como Rebelo de Sousa, uma magistrada e um advogado,
cuja a conduta é a todos os títulos lamentável. Os primeiros porque, tendo em
vista as suas funções e deveres institucionais e profissionais, se deveriam ter
abstido de interferir em casos concretos, sob apreciação dos tribunais, para
irem ao encontro do sentimentalismo das massas. Como sabes, era suposto sermos
um país civilizado, com respeito pelo princípio da separação de poderes e da
independência da administração da justiça. Quanto ao advogado, pelo que li, nem sequer é o
advogado do caso, atravessou-se de uma forma inqualificável no trabalho de um
colega de profissão, ele sim responsável pelo caso, na medida em que é
candidato numas quaisquer eleições dessa profissão.
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