sábado, 9 de novembro de 2019

Histórias de partidos na Hispânia



Por duas cabeças bem pensantes. Vasco Pulido Valente oferece um lamiré comparativo com o que se passa em Espanha, e, pessoa de bem, indigna-se com a questão das deficiências patológicas de visibilidade provocatória  servindo de arma de arremesso e provocação, aqui no país, ao que a hipocrisia de aparente seriedade de Pacheco Pereira oferece solução mais caricatural e perversa, para além da sua metáfora astronómica chocarreira, sem grande senso, todavia.
I - CRÓNICA: Diário
Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer perante a cultura identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a ser uma entidade abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este espectáculo me repugna e me enfurece.
VASCO PULIDO VALENTE  PÚBLICO, 9 de Novembro de 2019
O programa do governo desapareceu sob as saias do assessor de Joacine e a política desapareceu sob a pessoa de Joacine ela própria. Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer perante a cultura identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a ser uma entidade abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este espectáculo me repugna e me enfurece. Quem leu as dezenas de artigos de propaganda que Rui Tavares escreveu tentando convencer as pessoas que o partido, absurdamente chamado Livre, era a esquerda europeia não pode deixar de ficar embasbacado. O submundo das querelas radicais continua a fervilhar como uma infecção, mesmo quando nós não damos por isso.
3 de Novembro: O debate entre os chefes dos partidos espanhóis foi surpreendentemente calmo e bem-educado. Deu muito a pensar à direita. E muitíssimo mais à esquerda. O Podemos atacou constantemente o PSOE pela simples razão de que quer ir para o governo com ele e o PSOE não quer (e não só por causa das divergências a respeito da Catalunha).
Em Portugal acontece exactamente a mesma coisa: o Bloco quer uma aliança, como eles dizem, “estável” e “a prazo” com o PS, isto é, para a legislatura, e o PS não quer.
O que Pedro Sánchez e António Costa temem acima de tudo é que a social-democracia europeia, vigente nos seus partidos, seja invadida e substituída pelos radicais à sua esquerda. Não sei bem o que se passa em Espanha. Em Portugal é óbvio que não há nenhuma diferença entre a direcção do Bloco e a esquerda do PS. Por isso Costa promoveu a direita do partido e a gente da sua confiança, e deixou Pedro Nuno Santos dependente da sua graça pessoal. Infelizmente, com o tempo, suspeito que o Podemos e o Bloco vão ganhar: o radicalismo urbano tendeu sempre a chegar às últimas consequências.
6 de Novembro: Duas técnicas da Segurança Social, seja isso o que for, estão acusadas de tirar duas filhas à mãe. Essa mãe era vítima de violência doméstica e fez, em protesto, vinte e seis dias de greve de fome (vinte e cinco chegam para matar o adulto médio) e ainda hoje só pode ver as filhas duas vezes por semana: aparentemente, o grande crime dela, que não se provou, foi ter abandonado a criança mais velha, de quatro anos, num café.
Uma pessoa pasma que dois funcionários administrativos – é isso que em última análise as duas “técnicas” são – possam separar uma família ao seu arbítrio pelo simples exercício de um poder que o Estado lhes conferiu. Mas podem. O jornalismo que por aí se esfalfa a examinar a justiça portuguesa nunca deu por esta barbaridade, que se instalou calada e burocraticamente. Quando a descobri, num noticiário da SIC, tremi de medo. Um dia destes aparece-me um “técnico” em casa, com um papel na mão, declara-me incapaz e mete-me num asilo; nenhum dos nossos políticos vai achar que se tratou de uma violação dos direitos do homem. A Constituição que se lixe. Colunista
II -OPINIÃO: Planetas, planetas anões e satélites
Alguns planetas estão a passar a planetas anões, caso do CDS, e pode ser que alguns dos actuais anões passem uns a cometas e outros subam de categoria para planetas propriamente ditos. Esta legislatura vai ser decisiva para a sorte dos pequenos partidos.
JOSÉ PACHECO PEREIRA         PÚBLICO, 9 de Novembro de 2019
Vários micropartidos chegaram à Assembleia. Não é tão novidade quanto se diz, mas revelam tendências de voto que são relevantes para a análise eleitoral, tanto mais que acompanham o encolhimento dos grandes partidos PS e PSD, que no seu conjunto estão a ficar longe do peso eleitoral que, em percentagem, tinham no passado, e acentuam o papel da ideologia nas escolhas, diminuindo o chamado “voto útil”. Todos os partidos de poder, o PS, o PSD e o CDS, e mesmo o BE e o PCP sofreram essas consequências. Mas convém lembrar que não é assim tão difícil eleger um deputado, desde que o voto esteja muito concentrado, por exemplo em Lisboa. Veja-se o caso muito esquecido do PSN de Manuel Sérgio. Isto acentua o enorme falhanço da Aliança que, nesta ecologia eleitoral, tinha, à partida, algumas vantagens e perdeu tudo à chegada. O Chega é outra coisa, falaremos disso depois. Se quisermos usar uma metáfora astronómica, deixamos de ter na Assembleia os planetas gigantes, que são gasosos e estão a perder muito gás e a aproximar-se dos seus núcleos sólidos, temos planetas propriamente ditos, temos planetas anões e temos satélites. Alguns planetas estão a passar a planetas anões, caso do CDS, e pode ser que alguns dos actuais anões passem uns a cometas e outros subam de categoria para planetas propriamente ditos. Esta legislatura vai ser decisiva para a sorte dos pequenos partidos. De qualquer modo, como se verificou com o despromovido Plutão, que passou de planeta a anão, mas apesar disso, quando o podemos ver de perto, revelou-se muito mais interessante do ponto de vista científico do que se imaginava. Até um coração tem. 
Os Verdes rodeados pela “acção climática” por todo o lado
Os Verdes nunca tiveram a oportunidade de serem “verdes”, nem o quiseram, nem o podiam. Criados pelo PCP, e dependentes do PCP para poderem estar nas listas da CDU, com a conta exacta para duplicar o número de grupos parlamentares de que os comunistas dispunham, nunca concorreram a eleições sozinhos. Foram de facto pioneiros em algumas questões ambientais, com a solitária companhia do PSD numa sua fase também pioneira, mas a sua voz nunca se ouviu como uma voz independente. Agora é tarde. Com partidos que rapidamente se moldaram às modas da “acção climática”, sem grande tradição ambientalista como o BE e mesmo o PAN cujo “animalismo” rapidamente se cobriu de ecologia, o PEV não tem chance de emancipação.
O Livre e o problema de Joacine
Eu não quero saber das saias do assessor para nada, nem da bandeira da Guiné (e a da União Europeia nos outros?), mas quero saber de duas coisas que estão cada vez mais interligadas, a radicalização do Livre e a politização da gaguez de Joacine, à direita e à esquerda. A radicalização do Livre não se mede apenas pelas suas propostas programáticas, mas também pela forma como o estilo da campanha e as escolhas das pessoas fazem uma mutação invisível nessas propostas. O estilo, no caso do Livre, é hoje mais revelador do que as propostas e o estilo, que tem a empatia da imagem, vale de facto mais do que mil palavras. A politização da gaguez vem em pacote com o estilo e ameaça ocultar qualquer discurso racional, se ele se tornar deliberadamente inaudível. Não há nenhuma razão para que um deputado eleito não seja mudo e “fale” apenas em linguagem gestual. Essa linguagem terá que ser traduzida por um intérprete, e isso não muda nada de essencial no estatuto e função do deputado. Uma solução próxima para Joacine, com alguém a ler as intervenções da deputada, deixando para o discurso directo os debates e as discussões, diminuiria o ruído e o papel da gaguez. Mas isso depende, como é óbvio, da vontade da deputada. Só que o Livre e a sua representante parlamentar têm que ter consciência de que essa escolha tem implicações políticas.
A Iniciativa Liberal e o voto dos pobres A tese da Iniciativa Liberal de que “a pobreza de muitos é aquilo que segura o PS no poder” e que, por isso, o PS não combate eficazmente uma força que o mantém no poder, é um absurdo. Se tivesse dito “a riqueza de alguns é aquilo que segura o PS no poder” estaria mais certo.
O Chega e a eficácia: A primeira tentativa da direita radical de ter um partido na competição eleitoral foi o PNR. Mas o PNR nunca conseguiu ter uma componente populista que fosse o instrumento de que essa direita precisava. Durante os anos da troika, a necessidade de ter uma expressão política para a direita radical foi resolvida pela aliança do PSD-CDS, traduzida no governo de Passos e Portas. Esta direita é fortemente pragmática, ou melhor, alguns dos seus mentores são pragmáticos, querem é resultados. Não precisava de procurar votos por si, o PSD dava-lhos para as políticas que precisava. Nunca teve tanto poder, no limite do afrontamento constitucional, com o apoio da troika e da União Europeia, e a flacidez do PS, daí a enorme orfandade quando Lopes perdeu perante Rio. Por circunstâncias que combinam, como sempre na história, intenção e acaso, o Chega chegou e tornou-se o pólo de atracção populista que nunca existiu autonomamente desde o 25 de Abril. Fez uma excelente campanha eleitoral, começou a servir de magneto para toda a direita radical, desde os saudosos do salazarismo, aos nacionalistas e aos identitários, absorveu parte do PNR, parte dos lesados do BES, os proto-gilets jaunes, penetrou na polícia e na GNR, e começou a crescer no terreno fértil que vai das redes sociais à rua. Com um tribuno capaz na Assembleia, com o treino dos debates do futebol, tem todas as condições para crescer. É apenas um começo… Colunista

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